sábado, 21 de julho de 2018

Comunidade

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Eu não escrevo mais porque não sei fazer ficção, não sei inventar uma história longa, não lhe sei dar pormenor, eu escrevo sempre a partir da minha realidade, ultimamente envolvo a comunidade, a ilha em Derza onde moro. Escrevi no passado a minha história com uma ou outra imaginação, nunca uma invenção, imaginei cenários a partir de uma ou outra música que talvez estivesse a ouvir no momento, apropriei-me de versos musicais e um ou outro pormenor alheio, concatenei-os, incorporei, distorci, adicionei o meu ser a tudo, dei-lhe um toque, escrevi três livros de contos, o terceiro concatena a realidade do dia-a-dia visto pelo meu prisma, com alguns textos escritos em estado de descompensação psíquica, com textos narrados para um microfone, com palavras de apelo ou ameaça rasurados em guardanapos ou guardados em cadernos ao longo dos anos, tornei-me um autor epistolar, escrevo cartas, comentários, tenho um livro de versos sem rima num blogue e dedicado à minha última companheira em que tentei escrever o que ela me fez sentir, o bom e o mau, o antes e o durante, tenho um quinto livro já encadernado e em fase de revisão pessoal e que antologia textos escritos em zines, com  epístolas em conto sobre os meus últimos dez anos, desde o último internamento, com os restos que sobraram da auto-censuura à psicose e que me levavam a escrevinhar cartas-bomba, eu tento hoje não esconder a minha realidade, apenas lhe dou um toque porque há verdades que não são fáceis de escrever nem de emcontrar as melhores palavras para definir a situação, as realidades não são muitas vezes bonitas, não se anda por aí a atingir epifanias bonitas todos os dias para que se possam escrever coisas bonitas e simples, a realidade é complicada e relativa, está cheio de perspectivas e cheio de pessoas que se julgam absolutas, às vezes, é preciso um espelho não para admirarmos o nosso poder mas sim para reparar na nossa fealdade.
E eu não escrevo mais porque compreendi que eu, enquanto louco, agia como um absolutista, um fascista, queria para mim todo o poder, não será exactamente assim mas imaginem um trampas a ameaçar os parceiros de negócios, a insultar, a urrar... eu era assim como o trampas, eu era um ressabiado sem causa, era um ressabiado, que se vitimizou, porque a mulher que me mudou a vida se recusa a comunicar comigo, ressabiado porque não tinha qualificações para um emprego, ressabiado porque dependia da proteção económica da família, ressabiado porque a família não gosta de nada do que eu faço e apenas me dá a assistência económica e se amor me têm é por eu ser filho deles e não filho-de-deus e se não fosse filho deles seria um filho-da-mãe, apenas porque eles são muito correctos e nunca os ouvi dizer um palavrão, eles são mais de dizer «sopeira, cigano, preto, monhé, terrorista» quando descrevem os migantes na tv ou os moradores do bairro mais próximo e eu, que sou branco como eles, fico envergonhado por ter de me dar com eles, ressabiado também porque não tinha mais amigos que me achassem uma boa companhia, não havia mais um sentimento de pertença. estava em fora-de-jogo.
Foi nesse estado de espírito ressabiado e permeável às influências boas e más que escrevi três livros para a gaveta, o quarto enterrei-o num blog e o quinto comecei-o a alinhavar já nestes últimos anos em que tenho um blog oficial. agora já não escrevo para a gaveta e as diferenças notam-se, os textos são mais directos e curtos, escritos num fôlego entre dois ou três cigarros enrolados com aroma eheheh, são textos em que eu tento dar um ar bonito à minha vida, tento contar algo de positivo, continuo a ser epistolar mas acontece que me auto-censuro, quando escrevia no escuro era mais livre, talvez mais honesto no momento de expressar a minha agonia em viver neste mundo.
Acontece que o mundo mudou desde que uma noite às cinco da manhã na rua a olhar para as estrelas senti medo de elas serem olhos acusadores e espias de mim, esses cogumelos que tomei mostraram-me quem eu na realidade era: camadas e camadas de referências e heróis, peles e mais peles, máscara em cima de máscara, nessa noite tive medo que não houvesse nada em mim, que eu fosse só o vazio que já me tinham dito várias vezes, que eu não tinha personalidade, que era nada. É só natural que  isso ajudasse a colapsar, mas talvez fosse necessário que eu colapsasse, encaro-o hoje como uma revolução necessária contra mim próprio..
Colapsei também porque eu, depois do medo, não me escondi mais e se andava a fingir e a fazer alguma ficção, comecei a revelar, a descascar tudo o que via em mim, até encontrar o resíduo, até conseguir Ser, não mais um «Sou forte como um touro», isso que escrevi quando agia como um estrumfe trampas, mas um ser que tenta viver o dia-a-dia o mais simplesmente possível, na companhia de ou tendo ao alcance de uma videochamada as pessoas que hoje conseguem gostar da minha companhia.
Se sou hoje ainda um ressabiado serei telvez um ressabiado arrependido, arrependido de não ter sido capaz de no passado agir da melhor maneira, decidi muitas vezes errado mas no final das contas o principal prejudicado fui eu, não falo só dos internamentos, falo também das pessoas que perdi, da perda de confiança da família em mim, tudo o que eu sei deles é o que apanho das conversas que mantêm durante o almoço dominical, nada me dizem directamente e sou apenas um 'conhecido' do face e se quero saber de alguma coisa tenho de perguntar, tenho de sentir empatia com o seu novo-riquismo, falo também do dinheiro que podia ter ganho se me tivesse de facto dedicado a um emprego onde me sentisse preparado. eu agia como um trampas sem saber que o era, no fundo eu era um nihilista que achava que obteria tudo facilmente sem esforço, compromisso ou luta. hoje talvez seja um nihilista a quem cairam as ilusões, se há anos escrevia que não me queria sentir um objecto sexual, e escrevia-o quando já não tinha ninguém, hoje sei perfeitamente que já não sou atraente ao olhar, tem de ser o meu interior a ser bonito.
Foi isso que aprendi a fazer: a tornar o meu interior bonito tentando ajudar o meu mais próximo com a narração da minha experiência, aprendendo a ser um amigo quando o amigo precisa de mim.
Lembro-me agora que, uma vez, o meu melhor amigo da altura e quando eu lhe perguntei o que ele queria da vida, ele me respondeu: acordar, foder a mulher, ir trabalhar, voltar a casa, foder a mulher, jantar, foder a mulher outra vez, dormir e repetir a dose no dia seguinte. Eu achei que sim, que era um bom projecto de vida, igualmente para mim. Mas foi um projecto que eu nunca concretizei: primeiro, nunca tive um emprego estável ou não tive simplesmente emprego; segundo, nunca tive uma casa que chamasse minha, sempre vivi em quartos alugados ou com os meus pais; depois, desde a universidade e quando voltei a casa dos meus pais nunca mais tive namoradas com quem tivesse pontos em comum e afinidades, simplesmente a infância não me deu amigas para as quais voltar, tive uma ou outra relação momentânea e geralmente catastrófica, eu não cansei de ser sexy, eu simplesmente deixei de o ser. Se estou igualmente arrependido de não ter casado? e de não ter construído uma família minha?, tive uma companheira com quem vivi e que, no fundo, me tirou essas ilusões, não, não estou arrependido, se tivesse casado e com alguma delas... o mais certo era estar hoje divorciado e com os filhos a detestarem-me do mesmo modo que eu, às vezes, não compreendo o meu pai, estaria com dívidas de empréstimo bancário para casa, carro, provavelmente continuaria sem emprego e desgraçado ainda mais do que, às vezes, me sinto hoje. 
E eu hoje sinto-me o melhor possível e não deixei muitos efeitos colaterais, pessoas há que me detestam e pessoas há que eu deixei de procurar, tenho no fundo que deixá-las ir, eu sou ou fui ressabiado porque no fundo se fiquei sozinho foi porque errei, é certo, mas também porque essas pessoas erraram igualmente e me desprezaram para sempre, talvez não fossem as pessoas mais correctas comigo, fazem parte de um passado e de um passado que eu não quero esquecer para não voltar a errar no mesmo local, o passado é o meu arquivo de memória onde eu procuro as raízes de um presente e penso no futuro, o passado é um livro, o presente é os vizinhos da ilha e as duas únicas amigas que são verdadeiramente minhas amigas, que me respeitam, que impulsionam e dão-me força para eu pintar, que me dão uma palavra bonita e um carinho, que não exigem aquilo que eu não tenho posses de dar, que gostam de estar comigo e falar comigo, as horas passam e a conversa é terna, os vizinhos igualmente aumentam esta comunidade, tenho igualmente um carinho pelas minhas primas que estão longe, é bom sentir uma pertença, quando vivia com os meus pais não sentia as minhas raízes lá, hoje a ansiedade é minima,  a partilha é máxima. é isso a comunidade, o meu pequeno mundo.
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Claudio Mur

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