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Acabou. Cheguei à conclusão que acabou este período da minha vida. Falta talvez definir este estilo de vida e o porquê de ter acabado. Já agora definir como acabou. Acabou. Tenho de me ir embora outra vez. Mais uma vez sinto a necessidade, tenho de fazer a trouxa e partir. Mas partir para onde e será que para melhor? Partir para um local onde possa recomeçar tudo de novo. A partir do zero. Tenho de morrer para este lugar, para estas pessoas e renascer noutro lugar com novos vizinhos. Uma vez mais a sensação se repete, o desadaptado, o alienado, o aluado tem a sensação de ser necessário partir, para que possa continuar a existir, para que não me sinta mais angustiado como nestes últimos dias que vão passando lentos. Ficar seria fechar-me ainda mais sobre mim próprio, perder a noção do mundo à minha volta, hibernar e acordar noutro planeta.
Hoje decidi mudar a rotina destes dias e, depois do almoço, saí para tomar café no centro da cidade. Apanhei o metro, caminhei e comprei um caderno e uma caneta, entrei e sentei-me, pedi um café, tomei-o e comecei a escrever as frases que me têm atormentado e com as quais tenho cismado, ir embora, deixar um local estabilizado mas que me angustia agora, procurar um novo local do qual nada conheço para me tentar uma vez mais integrar, a minha vida parece-me isto, não passa disto, tentativas de integração e descalabro previsto, necessidade e ruína, caos e desejo, «eu quero é ser feliz» diz a minha amiga que, cheia de problemas, deixou de me visitar, e eu digo «porque nos é impossível fazer durar essa felicidade?, porque nos transformamos em ruínas onde nem o musgo cresce feliz nem os ratos arranjam comida, porque nos fartamos da hipocrisia e não conseguimos viver sem hipocrisia porque assim ficamos sozinhos?»
Mas não é só a falta do carinho da minha amiga que me faz estar sozinho, livre e infeliz e com vontade de me ir embora e arriscar um novo desconhecido, é algo mais, algo muito mais que outras situações igualmente desconcertantes que se vão passando à minha volta e o modo como vou sendo reduzido a menos-que-zero pelas pessoas que não me compreendem, uma sensação que vem de longa data, veio antes de eu viver na Irlanda: o menos-que-zero sentido durante uma recuperação de uma tentativa de suicídio; e veio depois da Irlanda com os internamentos e os começar do zero, na Irlanda tudo correu bem com a excepção de que o contrato não foi renovado nos moldes desejados por mim: iria ficar a ganhar menos porque perderia a bolsa de estágio dada pelo programa Leonardo (o Erasmus dos recém-licenciados) durante um ano. Isso fez terminar esse período de quinze meses de aprendizagem de vida e fez-me voltar a um ninho do qual sempre quis fugir, este país, esta cidade, as pessoas. É-me difícil às vezes explicar sem me autocriticar ou sem me queixar dos outros, como se fosse um coitadinho, porque parece que a confissão para algumas pessoas é sempre forçada, e só um coitadinho se autocritica ao mesmo tempo que se afirma misantropo.
Sou uma pessoa que não suporta bem as idiossincracias das outras pessoas porque elas muitas vezes não suportam as minhas e sou uma pessoa que tenta escrever esse porquê para que o dia lhe faça algum sentido e para que se justifique cozinhar um jantar digno de me saciar a fome criada pelo esforço feito para me sentir com sentido, com um senso racional, mas fico sempre a achar que, quando pego na caneta ou teclo no portátil, as palavras me falham. Durante a viagem de metro, os meus pensamentos pareciam-me mais vivos, mais urgentes, parecia-me necessário tentar fixá-los, escrevê-los e agora só me lembro da frase «tenho de morrer para renascer noutro lugar». No metro, esta frase parecia-me poesia, quase uma oração, mas agora ao escrever sinto que me repito e não pareço avançar na página, pareço estar a perder o que tinha começado por querer dizer, a loucura ou estado místico só é possível descrever em poesia ou relatando as condições que levaram a essa consequência, e por não ser capaz de me libertar da consequência sinto-me angustiado, sinto a necessidade de me desalojar e realojar outra vez, a minha vida é isto: ruptura again porquê? Que me explique portanto, que fale outra vez para o meu próprio ventríloco:
Sinto esta necessidade de mudar porque a comunidade onde vivo, a ilha acabou, perdeu o interesse, as amizades odeiam-se. Já não me sinto em comunhão com os meus vizinhos, chateei-me com eles do mesmo modo que me chateio com toda a gente, eu primeiro ofereço os meus serviços e depois retiro a confiança, faço o contrário das pessoas que primeiro aproveitam os serviços que recebem de quem não gostam e depois ganham confiança, chateei-me com o único que ainda se parecia dar comigo e com o qual eu sentia afinidade, a afinidade da poesia, da palavra, do acto de escrever e nunca desistir do acto criativo, viver mesmo em função dele, tornar-se louco na sua vontade de resistir aos contras do mundo, ser livre mas nunca pedinte. Chateei-me e ele chateou-se comigo e por um pedido estúpido de acesso ao facebook. Uma vergonha. Quero me ir embora por causa de uma vergonha, ter-me chateado com a única pessoa que valia a pena na ilha, ter-me chateado com o poeta por causa do facebook, merda eu sentia-me ligado ao poeta!, mas o poeta chamou-me de previlegiado e rico e de incorrecto, fino e mal-agradecido, só porque eu o não deixei ir ao facebook no meu portátil.
E como ele começasse a protestar contra o que ele dizia ser uma injustiça para ele e um previlégio para mim (ter um computador com facebook), e como eu não estivesse para o ouvir queixar-se mais uma vez de lhe terem dado um computador e ele o ter perdido ao fim de cinco dias, de o pai professor lhe bater nas aulas, de ter gasto a fortuna com os irmãos e a ele não lhe ter dado nada, apesar de o pai já ter morrido há vinte anos... como eu não estivesse para ouvir estas queixinhas mais uma vez, cortei ali o assunto dizendo que lhe já tinha dito que não o deixava ir ao facebook e que não ia sequer enrolar a ganza que ele dera para nós fumarmos naquele momento. Foi esta minha recusa, recusar fumar um cachimbo da paz por ele oferecido para me corromper e lhe deixar usar o computador, foi esta recusa que na realidade desencadeou as suas palavras: «És rico e mal-agradecido!».
São estas palavras, é este ódio que me faz querer ir embora outra vez, cortar todas as ligações e recomeçar noutro lugar. Um ódio vindo de alguém que eu estimava e com quem me identificava apesar das diferenças, mas alguém que escrevia, que escreve, que se sente e foi de facto inustiçado, um poeta sem reconhecimento oficial mas que, como todos os poetas, se sente o melhor do mundo e a merecer o Nobel, um poeta no qual reconheço uma ilusão mediúnica que eu já tive, a ilusão de escrevermos e as pessoas certas o lerem e as nossas palavras mudaram o curso do mundo, causarem mudança, a palavra ser magia: um poeta que diz que escreveu um poema destinado a acabar com a guerra e que as suas palavras levaram à paz nessa guerra, um poeta que quase não foi ainda editado, que quase ninguém conhece fora desta cidade e a quem não vale a pena dizer (porque ele parece não compreender) que para ser Nobel teria de ter vários volumes traduzidos em várias linguas estrangeiras e até em sueco. Um poeta assim inédito chama-me rico e vomita-me ódio por não lhe enrolar o charro e não o deixar ir ao facebook, um poeta que não sabe sequer enrolar um charro sozinho, um poeta vítima de ser pobre e ter uma reforma de pobre chama-me de rico quando eu tenho uma reforma de pobre semelhante. A diferença é que ele não paga nem renda nem luz nem água nem alimentação e eu pago tudo isto com um subsídio da minha mãe e quando ela me faltar serei mais pobre do que o poeta que se diz pobre e gasta a sua reforma em tabaco, ganza, café e bolinhos e comida para a gata, enquanto eu gasto a minha reforma em comida, livros, discos, algum tabaco e ainda alguma ganza mesmo que esteja lentamente a reduzir os consumos. Como disse à minha psiquiatra, agora que reduzi os consumos tenho mais dinheiro disponível, «até vou comprando uma frutinha!», mas isto o poeta não percebe, chama-me rico porque não pareço pobre, apesar da minha reforma ser de pobre, no Alentejo (ouvi hoje na rádio) há duzentos e cinquenta mil pessoas com a mesma reforma de pobre que nós, ouviste ó poeta!
Mas de nada lhe vale dizer que ele gasta dinheiro a mais na ganza e que às vezes acende um cigarro quando tem outro ainda a queimar no cinzeiro, que a maior parte das vezes dá o charro a fumar ao cozinheiro do seu jantar ou áqueles a quem paga para lhe fazer companhia e ouvir as suas queixinhas ou o alto valor dos seus versos, para que não se sinta só e o rei regresse e ele continue a dizer que é de esquerda e uma vítima dos pais que o desprezaram quando ele se entregou às drogas. Ora como eu não choro como ele e o dinheiro me chega ao fim do mês, não pareço pobre, logo não sou pobre, para o poeta ganzado sou rico!
Talvez devesse dizer porque não o deixei ir ao facebook nunca mais no meu portátil, não o deixo porque ele não sabe usar um portátil, não sabe teclar, não vê quase nada de um olho, tem sempre o nariz em frente ao écran e nem sequer vê em que tecla carrega e abre janelas esquisitas no écran que desconfiguram o sistema e depois pede desculpas quando eu me chateio e quase chora coitadinho, e eu que resolva os problemas que ele me criou no computador, merda e logo eu que não gosto nada de informática e dos écrans azuis a dizer «prima uma tecla para continuar e outra para reiniciar.» Mas como todos os chorões que pensam que chorando vão acabar por mamar, chorou mais uma vez e eu fiz-lhe o proibido de fazer a um ganzado: recusei o seu charro. Ele levantou-se, disse que sem computador não pode trabalhar e vai morrer sem ser Nobel.
Eu não disse nada mas apeteceu-me dizer: «Fuma menos ganza, paga a dívida aos indianos e vai trabalhar para o cibercafé deles, aí poderás aceder ao facebook e aí poderás ser enganado pela gaja da Síria que te pediu os dados para te enviar um dinheiro e vir viver contigo!»
Era por isso que ele queria ir ao facebook, e de nada valeu falar-lhe que à minha amiga um gajo lhe escreveu para o facebook querendo os dados para lhe enviar um dinheiro da Nigéria, também ele era só palavras como «querida te amo muito envia a morada amor», de nada valeu dizer-lhe que é mais um esquema fraudulento, ele queria ir fazer no meu computador o que um amigo dele no seu computador não o deixou fazer: ser enganado, ele queria dar os seus dados. Como se fosse possível ela querer vir viver com ele, enviar-lhe dinheiro adiantado que ele gastaria à discrição, e dormir na mesma cama e no mesmo quarto que ele como se a casa deste poeta não fosse uma casa devoluta com pessoas dentro. O poeta diz com orgulho que tem o melhor abrigo da cidade mas o poeta não tem espelho, o abrigo resume-se a uma cama onde ele se deita e recebe os vizinhos que se sentam em duas cadeiras a ouvir as suas palavras e a fumar os seus charros, o poeta não tem espelho em casa e nem a barba sabe fazer, nem a máquina de barbear sabe usar, mas o poeta tem amigos que lhe emprestam dinheiro para ir ao barbeiro, o poeta tem uma sorte que muitos pobres não têm, o poeta ofender-se-ia se o chamassem de rico, se o chamassem de lorde que perdeu as maneiras, que precisa que lhe ponham a comida no prato, que nem um prato sabe lavar, que deixa ficar mal os vizinhos quando vão juntos ao café, o poeta que teve uma infância de rico, que é hippie e só sabe escrever poemas. Sim, este poeta com ódio aos que parecem ricos seria bem capaz de me roubar, «never trust an hippie» diz o meme e eu próprio já lhe disse «tu és mais canetas, isqueiros e livros», já me vendeu livros que, se eu não fizesse escândalo no seu abrigo ao descobrir, já estava com eles na mão prontos para os ir vender segunda vez. Agora chama-me mal-agradecido porque eu não fumo o charro dele, a sua prenda:
-- Mal agradecido és tu, que te fiz, te preparei no portátil dois livros com poemas teus para tu imprimires e ganhares dinheiro, para os quais trabalhei de graça e nos quais pus duas imagens minhas na capa, e tu preferiste dar o dinheiro à fotocopiadora e andas agora a ganhar dinheiro vendendo muitas vezes as tuas palavras à custa da bela imagem de capa, seu palhaço!, sou tão maluco como tu, tão pobre como tu, e andamos os dois a fazer de otários.
Nada disto lhe disse, pensei tudo isto nestes dias e hoje escrevi-o, mandei-o passear, cortei o poeta da minha vida. Mas também eu fico a perder. Ele apesar de ser um chato era uma companhia de vez em quando. Era o único na ilha que valia a pena. Já não tinha amigos, agora já não tenho sequer vizinhos, ouço-os passar pela minha porta, sinto-me prisioneiro dentro do meu próprio quarto. Por isso quero partir, quero ser livre de começar de novo e com novas pessoas. Quero esquecer estas pessoas. Mas partir não é fácil. O mercado de arrendamento explodiu, já nem os estudantes se safam quanto mais um reformado por invalidez...
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Claudio Mur
Acaso desses a ler este texto ao Poeta, seria ele capaz de rir-se? Se sim, nem tudo estaria perdido, ou mesmo nada, caso contrário, bem, caso contrário, sorri tu. E acena, nem só ao poeta.
ResponderEliminar:)
Acho que não se riria, ele é um poeta atacado pela depressão e pelo choro. não consegue perceber que muita da sua infelicidade é provocada por ele próprio quando não se consegue libertar dos traumas recebidos no passado.
EliminarEu também não me consigo rir porque perdi mais uma pessoa. considero-me em parte igualmente culpado.
ambos somos afectados por um problema geral: a vida nao é como a queremos. lidamos de maneira diferente com isso mas o resultado nem sempre difere.
mas aceno-te a ti :) obrigado