segunda-feira, 22 de abril de 2019

Eek-a-Mouse oié

O Zulmiro é tão insolente que chega a ser fino, um mano gentil para todas as lojas de discos. Quando lhe chegam as notas azuis à mão, o Zulmiro que também é Maria faz a festa, começa por acordar sem despertador precisamente antes de se inciar a transmissão do programa Palavras de Bolso na rádio clássica e felizmente pública (para qual o Zulmiro Maria, que é Belo de apelido, paga uma taxa na factura da luz àquelas três gargantas chinesas e ao Ameixa, Ximenes Laurindo, seu primo que também beneficia por ser o homem do cadeirão). Depois de ouvir as vozes do programa, levanta a pressiana, oscula o ar, verifica se o sol está presente. Dirige-se à cozinha, prepara café, toma uma chuveirada rápida no polivã, recolhe a chávena de café, volta para o quarto e, enquanto os jornalistas culturais da rádio falam e apresentam as novidades do dia, ele começa a pensar em listas. Ele não sabe o que nasceu primeiro: se as notas azuis, se as listas de discos a obter, aquela reimpressão daquele álbum lendário que acaba de chegar à loja da taune, o Zulmiro pensa «Ora, disco é cultura, cultura é droga fixe, a droga mata a fome, com esta nota azul vou comprar o Gonçalo F. Cardoso e as suas Impressões de uma Ilha, vou ouvir o disco e vou ser feliz ao imaginar-me em Zanzíbar a viver da pintura de cocos», diz Zulmiro que também é Maria que também é Belo, que se vestiu de fato branco do melhor tecido e com um gorro branco a dizer Hamster D, para ir à loja.
Como habitual em todas as lojas que frequenta, em que é um habitual, de cada vez que lá vai é bem tratado, gostam dele em todas as lojas, gostam também quando ele compra aquele disco que mais ninguém compra. Zulmiro sente-se extasiado quando sente que chegou ao disco primeiro que outro vagabundo qualquer e tão insolente quanto ele, gostam tanto dele que a Maria chega a ter ciúmes de tanto sorriso e apertos de mão e promessas que transpiram, porque o mundo vive de promessas, eu cá acho que eles pensam que ele é rico, porque gasta tantas notas azuis em discos como o vizinho em tabaco Regina, os padrinhos em jantares a dois com licor Beirão. O que eles não sabem é o que eu vou contar a seguir, eu que sou o espelho do Zulmiro que também é Maria e também é Belo, fui eu que lhe dei o nome, uma homenagem orgulhosa à tia, e ao maior surrealista António Maria e também ao Ruy, o saudado e saudoso Belo. Tenho a dizer-lhes o seguinte: «O Zulmiro é um drógado!», é um viciado em música em suporte físico, também faz dauneloudes mas se gostar quer ter aquele disco, aquele capa em cartão, «ah!» como ele gosta de observar aquela serigrafia em cartão e capa do segundo disco dos Cassiber à luz do sol, como ele gosta de desmaiar quando ouve o sax do Albert Ayler a chorar em Vibrations... só visto!, eu sei do que falo, estou presente como espelho de canto de quarto nesta sua nova casa, vejo a moca que ele apanha quando pôe o cd gravado da k7 ''Super'' dos Nihil Aut Mors, enfim que dizer... eu quase que aceito o modo de vida dele, ele é feliz assim sendo um drogado musical. Mas para muita gente põe-se um problema: donde vêm as notas azuis? As lojas não se importam, querem é que ele consuma, mas os vizinhos já o acusaram de ser contrabandista e traficante, chegaram a dizer que a droga entrava à noite em casa pela calada, palhaços!, grandes estrumpfas do calhau mais longe do sol!, nem sequer imaginam que a droga vem via postal e entregue pelo carteiro, ainda hoje chegou uma edição de 180 gramas em vinil preto da banda sonora do filme do Gainsbourg, sim o Jetaime!, mas aí o Zulmiro até que ficou desiludido, achou que a música era como droga marada, daquela rena que sabe a petróleo ou acetona (quando não é mesmo madeira, chegou a acontecer), tanta versão do jetaime e nem uma única cantada pela Jane e pelo Serge. Mas o Zulmiro arranjou solução, sabe de um dealer nos Baixos Países que tem para venda uma reimpressão do single, vejam lá!, sete polegadas de droga com a voz da Jane e do Serge por apenas um conto de kenga mais portes... o Zulmiro espera ansiosamente o próximo dia oito, o dia em que chegam as notas azuis, entretanto ele mandou-me enviar, a uma irmã que ele conheceu recentemente numa caixa de comentários, um video de um jamaicano chamado eek-a-mouse:






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2 comentários:

  1. Sobre o tema, ainda não escutei - só o faço em tendo disponibilidade física e mental, o que a música sempre me exigiu e merece. Mas agradeço já! ;), ao Zulmiro drógádo musical, que também é Maria e Belo de apelido.

    ( a descrição dessa ansiedade pela volta do carteiro fez-me sorrir de reconhecê-la no meu filho - é raro não ter música encomendada e, enquanto aguarda, a primeira coisa que pergunta quando chega a casa - por vezes ainda no exterior do prédio, pelo interfone- é, olhos a faiscar de excitação: "a minha encomenda já veio?")

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    1. comigo é um stress, como a campainha não funciona e nem sempre o correio é registado e logo não posso seguir a encomenda via site dos ctt, acabo por ficar as horas com a rádio, com o volume baixo, na antena 2, a secar, a secar... até que o mister carteiro me devolve a alegria :)

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