sábado, 4 de abril de 2020

Largar, à aventura!...

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A cidade amanheceu toucada de neblina. Líquido, o Sol trespassou-a, derramou-se irisado sobre os altos, escorreu pelas encostas, inundando praças, avenidas. E ainda as finas transparências se desprendiam suavemente da beira do rio, já o céu era todo azul, profundo e puro, salpicado de nuvens brancas.
Na frescura do ar, o recorte colorido e nítido das ruas cruzava-se de pessoas, carros vozes. O rumor dos gestos, jogo de luz e som, subia da cidade.
-- Que bela manhã, ó freguesa!... -- saudou, sorrindo, a mulher da fruta.
-- Linda!... -- ecoou a freguesa, sorrindo.
-- Como estas maçãs! -- disse a mulher da fruta.
Sorriram uma para a outra, junto do dourado monte de maçãs, que o carrinho trazia.
-- Vem aí o autocarro -- avisou o homem da lancheira.
-- Quero lá saber do autocarro! -- sorriu o camarada. -- Nem que me descontem meio dia na féria, hoje vou a pé!
-- Tens razão -- responde-lhe o da lancheira, metendo-se a caminho. -- Manhãs destas não se fizeram para um homem passar por elas a fugir.
-- Não te esqueças! -- prevenia a mulher, debruçada da janela.
-- Ia-me lá esquecer!... -- gritou o homem, que saía da porta, a piscar os olhos à viva irradiação da luz. -- Esquecer, eu!...
Mas durante muito tempo, esqueceu tudo, caminhando na surpresa ofuscante da manhã.
-- Não és capaz de me apanhar!... desafiava a menina, correndo leve e furtiva como um pássaro.
-- Ah!... -- gritava o rapazinho, que a perseguia cheio de esperança. -- Se eu te agarro!...
O guarda-nocturno da fábrica, ao chegar à portaria, viu-os desaparecer à esquina com a mala dos livros a voejar-lhe nas costas. Só então se apercebeu da manhã que fazia. O céu, as cores do casario a descerem até aos iates das docas, até aos cargueiros e aos transatlânticos e às barcaças atrás dos rebocadores, pelo rio. E o porteiro ouviu-o murmurar.
-- Ter um homem que ir deitar-se!...
E disse a rapariga, que ia no segundo piso do autocarro a olhar através da janela:
-- Ir para o escritório numa manhã assim...
Ao lado, a colega ainda não acreditava que isso pudesse ser:
-- Numa manhã destas!...
-- Não sei que tenho... -- inquietou-se o sinaleiro. -- Pois não me está a dar vontade de mandar seguir todos os carros ao mesmo tempo!...
-- Largar, à aventura!... -- pensava o homem, no comboio subterrâneo, a caminho do emprego. Os olhos vogavam-lhe pelo mar, vasto e verde, lá longe. E a sensação de amplitude ansiou-o. -- Que manhã para partir por esse mundo fora!...
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página 49-51

''Tempo de solidão'

Manuel da Fonseca
Edição Arcádia, 1973

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