sábado, 18 de abril de 2020

Talvez o desenho seja a forma de o trazer de volta

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Cláudia, quero contar-te acerca de uma senhora que conheci. Ela passa hooras a desenhar, tem sido sempre assim desde que perdeu o marido. O meu avô. Ela passa horas a desenhar em papel triste, acabrunhada preenche de formas esguias o mesmo desenho, com mais ou menos saber, enquistou naquilo e agora não quer saber de outra coisa, é surda e desenha para se afastar ainda mais do mundo que nunca lhe deu nada. Perdeu o marido e vive numa casa com outra senhora, qual das duas morrerá primeiro, pergunto-me nas horas fáceis. Nada ouve e o sorriso sem razão de ser embala-lhe a mãozinha retorcida, enganchada em voos de corvo aleijado, reescrevendo o remorso infantil dos dias, todos os dias repetidos no cismar vago do desenho. É chamada para o almoço, para o jantar, mas nos entretantos o mundo é todo dela, e afaga a possibilidade de uma nébula contínua por onde possa largar suspiros de adolescente comovida. Depois mostra o desenho, a outra sorri, e logo esquece aquele esboço e recomeça o mundo numa folha em branco. Esta mulher perdeu o marido e a casa porque lha tiraram, e agora deu-lhe para se afundar ainda mais no lodo das aguarelas, apetrechada do pincel molengão, lembra-se da casa onde viveu toda a vida, agora penhorada, onde não voltará, e impinge cor a cada móvel, gaveta, planta, tudo no seu lugar exacto, justinho nas suas formas concretas. A outra começa a ficar preocupada, a mulher não faz mais nada senão desenhar, horas seguidas de horas naquilo, só com as interrupções de um banho ou de uma fralda que precisa de ser descartada. Recorda com um sorriso pisco e ergue o fio da casa, milímetro por milímetro, e se lhe perguntarem o que foi o almoço de ontem jura que não se lembra, mas da casa sabe tudo e alisa as suas rugas num papel baratucho, com uma calma redentora de quem espera a morte de mãozinhas afogadas no tormento lento da braseira. A minha avó surda preocupa a outra senhora, e por isso lhe arranjaram agora uma cadelinha para ela se entreter, para largar de vez a mania dos desenhos, e ela pega na cadelinha, ri muito num estertor grosseiro e deita a cadelinha no seu colo, festinha-lhe o lustro do pêlo e diz-lhe coisas improváveis, que só ela compreende. A cadelinha adormece com o festinhar e a mão da avó renasce e é um fogo soprado às aguarelas, ao pincel que recapitula o recheio da casa moribunda. Do meu avô não parece ter saudades nunca fala dele mas talvez o desenho seja a forma de o trazer de volta, nessa discreta paisagem do ódio, quiçá forma menos chula de cumprir as ordens que acatou a vida inteira. A lua empoeirada transtorna-lhe a visão, ciscos daninhos maltratam-lhe a hora sonâmbula, mas ela prossegue equilibrada num finíssimo cordel de mágoa, escavaca a parede do papel com a rosa do seu punho frágil, alheio às cabeçadas do primeiro quebranto, e do pequeno televisor brota árduo o som das caricaturas da telenovela, esses rostos telúricos que devia estar a seguir, como todas as outras velhas do bairro, do país que nunca foi o seu porque nunca se deu o acaso de se apresentarem um ao outro.
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páginas 174 - 175

''Fazer de morto''
Frederico Pedreira
edição Língua Morta

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