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J Capítulo L
K Capítulo minus L
Current 93: From broken cross, locust
Dead can dance: Yulunga(spirit dance)
Meio-dia. A sai do alojamento com ar de chulo, lamento dizê-lo. Veste calças brancas e um blêizer igualmente branco. Falta só a gravata e o sapatinho platinado. Vou contar-vos isto na primeira pessoa para ser mais fácil:
É a hora de transfixar a minha realidade, enfim... é hora de ultrapassar paredes, é hora de reencontrar a minha consciência, vou visitar I à prisão, levar-lhe cigarros à biblioteca e debater os princípios do manifesto. O destino, a fé é assumida. O referendo interno aproxima-se. É necessário obter votos, passar com distinção e pensar nos primeiros slogans, nos testes, na campanha eleitoral, eis o rascunho com as questões a abordar:
Libertem a consciência de Id, definam o sexo de Id. É o que me apetece dizer.
Eu escondo-me no ruído que crio para tirar os meus nabos da púcara alheia, para que o alheio seja o meu professor anónimo. Questiono-me, questiono-te, continuo a negar a tua existência mas vou visitar-te, tu és o meu espelho, sigo o teu caminho por meios experimentais, comi gajas iguais às tuas. Pergunto se há vida além da morte mas penso mais, penso também nos primeiros cinco minutos após, o que será, como será, ver-se-ão apenas luzes negras e esqueletos e crucifixos arranhados? Continuo por circuitos de radiação, diagramas de Smith e outros palavrões, por fases de lua e lunáticos. Esses teus rivais vêm à procura de mel mas com eles nada há a partilhar, eu não partilho com os meus iguais que nada de desentediante têm para partilhar. Não tenho paciência para virgens, mesmo aquelas que se renovam todos os meses. Estou a ficar velho e já não sei o perfil que procuro. Que Ela procurar, que filosofia ainda é valida? O que compilar? Deveria fazer um ficheiro... que filosofia, pergunto que Ela procuro. Porque catalogo dados pessoais? Talvez porque não tenho mais nada para fazer. Nunca um artista pode ser mórbido, um artista pode dar expressão a tudo. O pensamento e a linguagem são instrumentos de arte para o artista. O vício e a virtude são matéria de arte.
Foda-se, A! Onde ouvi já eu isso? Disse-o Oscar Wilde, digo eu esbardalhando: Oh filho, é o mito do eterno retorno, eheh. Tenho os olhos fechados. Penso na primeira estrela pop. Abandono-me com a gravidade de um pêndulo e rio-me como um menino escolar, sem a sabedoria do político mas com todo o fogo na língua. És Tu uma inteligência tipo B de Berta ou Belinda ou uma D de Dina? Negativo ou positivo? O facto é que esqueci. Qual a tua preferência? É tudo uma questão de preferência? De que modo és tentada?
A resposta da minha consciência surge sobre a forma de um aforismo da cartilha: a sinceridade de um escritor manifestar-se-á tanto mais verdadeira, mais pura, mais sublime quanto mais se libertar de todos os vestígios ilógicos e largar as falhas súbitas no universo, o amor, os objectos, os crimes, as impessoalidades.
Mas aqui pergunto: é o contexto ou a forma que interessa? É o valor do que se faz ou o que se é aquilo que interessa?
A realidade seja ela qual for. Cada vez mais é necessário separar o valor do ser, aquilo que se é é diferente daquilo que se vale, são conceitos distintos, ser valor contexto forma. Para o perceberes, se calhar, é só explicar o porquê de desejares atingir a lua, a luz branca e nua de uma auto-realidade, objectiva e histórica. Tudo isto que vives é um real de fantasia, onde tudo tem uma explicação escondida. Tu tens apenas de olhar porque, se não olhares, a lua pode não estar em Lá.
Insisto que será necessário despir tudo, tirar todos os adereços, todas as flores abrirem, se depois murcham... azar, não será preocupação nossa. Insisto em procurar o branco, puros brancos, passeios marítimos durante o Verão, tambores vindos de qualquer Lá. Mas apenas existem fotografias covardes, chupa-chupas, actos filosóficos e solitários, ascensão de mais degraus, utilizando os suportes?
Ah mas, e então a multidão museológica de um rio em cascata, a praia verde ensolarada de cio e o pinhal ao fundo, se tomas café acompanhado de pessoas que lêem por catálogo ou por ordem alfabética? São elas os primeiros catalogadores, os analistas do mercado. A náusea pode vir ao de cima, esse é um dos dilemas que te peço que analises.
É fácil, é só imaginar alguém, uma espécie de Ela definitiva, a última solidão? Sou muito novo mas estou a ficar velho cedo demais. Será apenas o desejo de ronronar por Elas que eu imagino. Vá lá, responde!
Não, como eu disse ao senhor grelos, eu vi revistas pornográficas aos quinze anos, e ele respondeu que o nu não lhe interessava. A gente começa a pensar na máxima daquele gajo que, uma vez, disse que não gostava que duvidassem dele e que não gostava de estar e duvidar dessas mesmas pessoas, e a gente começa a duvidar... há que ter respeito, nestes dias, eu, a consciência é a tua voz de confiança, a que não tinhas antes mas eu levo-te à perdição, pressinto-o porque entendes tudo errado.
Quando o FC Porto marcou o golo da vitória naquela tarde, e eu saí do café para fumar o cigarro enrolado, estava mesmo a pensar: para o R pintor, que nada tem de comum com aquele ser duvidoso benfiquista que vi agora mesmo, ela reflecte-se de cabelo azul iluminado sobre o ombro, o seu ser reflecte-se no futuro. Sóbrio é o desenho dos seus olhos... as sobrancelhas, a cana do nariz verde, maçãs bege, a boca vermelha. Será através da manifestação de um duplo, a existência de um deus supremo provada? Segundo o génesis apócrifo, L criou um homem como ser final à sua imagem, nós somos o último degrau, a última versão. Será L egocentrista, será um caranguejo? Não será o primeiro Adão um só ser andrógino contendo homem e mulher, gémeos e idênticos?
Misturando-se, confundindo-se, andando às turras porque idêntico não, não pode ser, dizem: só um uno ad aeternum. Urge criar criancinhas para a posterioridade. Terá esse ser sido criado por deus e o seu duplo para que pudessem, finalmente, comunicar após se fartarem do tédio?
Faz-se tarde ao não partires o espelho, se o espírito dos samurais habitasse dentro dos caranguejos, talvez a profecia se cumprisse.
Vai daí, pergunto-te, minha consciência condenada: O tutor dá-se bem contigo? Entende-te, dá-te dinheiro? Ainda moras naquele local?
Hã, naquele cubículo... não! Fui convidado a sair. E depois, toda a casa cheia de paisagens tropicais, muita saudade para o meu gosto. Fiz asneira. Lembro-me do senhorio, era simpático mas... o tutor mudou-me de senhorio.
Queres contar como foi?
Basicamente, disse-me que não podia ficar lá. Não me facilitava a utilização da cozinha e, por causa disso, teve o cuidado de me colocar um fogão na sala de estudo. O problema é que os maus cheiros subiam ao primeiro andar onde ele vivia.
Hum, cheiros do fogão, aromas, ela em éter, afrodisíacos talvez?
Sei que não me quis lá devido a essa metafísica rebelde.
Pois.
Agora estou bem melhor, classifico a casa velha onde vivo como uma clínica clandestina, quartos enormes, duas casas de banho, várias salas, chão de madeira podre, abandonada, pelo menos dois idiotas tiveram já a ideia original de filmar este covil, ninguém lhes pediu promoção ou baptismo, já temos a nossa fé. Pobres tipos, nunca consumarão. Vive lá um tipo esquisito, um velho de cabelos brancos, ele parece pintar, é raro vê-lo, oiço mais depressa a sua música, imagina lá tu isto... um gajo, às duas da manha, põe John Cage, uma música esquisita, sabes, pianos preparados, põe o cadeado na porta, esquece-se da janela aberta, as luzes estão acesas talvez tentando atrair a audiência, enorme população de pombas, rolas e cotovias. Sai de casa fechando a porta a cadeado. Talvez procure alimento ou um público que o compreenda, o público virgem mas até ele sabe que as conversas sonhadas lhe são inúteis, não serão as virgens brancas que o salvarão, nem sequer as virgens, se calhar ao primeiro toque partiriam as suas lágrimas de cristal, que aprendem a esconder enquanto se penteiam todos os dias com dedicação ao espelho. Não sei, eu só há pouco tempo ali cheguei. Ele saiu e deixou a janela aberta uma destas noites e as luzes acesas e, depois, a história conta que, a muitos quilómetros de distância, ocorreu o assalto à residência do procurador geral.
Engraçado, não ria há muito tempo. Rio-me mais do que digo do que da situação mas... iá, ele sai de casa e, depois, volta pela madrugada, sai do táxi podre de bêbado acompanhado de duas mulas valentes e... eis que, de súbito, um carro surge, atropela-o e, no hospital, dizem-lhe que ficou inválido... iá, estou mesmo a ver, Morton Feldman e flores em cima da mesa de cabeceira. Mas essa estéril compulsão está lá. Não acredito. De qualquer modo, a Seigneur é podre de boa mas não acredito.
Claro que não é plausível. Eu não sou o Roman P. Volto a dizer-te que o velho é passado dos carretos.
Ok, claro que acredito.
Jura? Estou habituado, aqui dentro, ao mesmo olhar que me deste agora. Olha. Repara à tua volta. Não será preciso procurar muito. Olha, vê ali ao fundo aquele par, pai e filha, não os achas deslocados? Terão eles ar de maus?
De facto, não parecem nada. Não sei responder.
O. É o nome dele, tenho falado com ele, é um verdadeiro psicopata, um genuíno, tenho ouvido também muitas histórias sobre ele, acredita, não há ninguém como ele, é um bom motivo. Nunca o tinha ouvido antes mas, uma vez ao almoço, estendeu-me a mão gloriosa e, em duas ou três palavras, contou-me a história da sua vida. Sabes que toda a gente tem uma história para contar. Às vezes, a história é contada repetidas vezes ao longo de toda a vida... chatamente interessante mesmo muito interessantemente chata, afirmo-te que põe o teu Genet de joelhos e todos os teus depressivos na algibeira, e ainda pede aos guardas para lhe engomarem as calças. Ah sim... digo-te, ao lado dele todos os teus depressivos são caloiros.
A minha consciência delira e eu penso: este casal é um caso de fundamentalismo, chamar-lhe-ão de santo, ela será uma estrela pop, parece pura e tão natural, será santa?
Olho para eles. Vejo também aquela criança que passa discretamente um pequeno embrulho a um recluso ali à frente naquela mesa, um pai jovem, outra inocência. Observo o terrível erro. O edifício é protegido por câmaras de alta sensibilidade cuidadosamente colocadas...
Ouço o que parece ser uma sineta vagamente parecida com a das missas de Domingo na aldeia. O guarda E dirige-se discretamente na direcção da cafetaria, detém-se duas mesas à frente perante os ecrãs de vídeo, apreende o objecto, oh… era apenas uma caixa de bombons!, dirige-se à caixa, à sala de locução, para anunciar que, por ordem superior, os privilégios de comunicar estarão interditos de hoje em diante. A sessão de visitas terminou.
Como vês tudo é possível.
Murmuro espantado: ela vai alimentar o seu gato malhado que está calmamente observando o canário e a rola dentro da gaiola.
Conto-te a história noutra ocasião. Fica bem, A. Obrigado pelos cigarros.
Três da tarde.
As pessoas vão saindo, dirigem-se de volta à cidade. Apanham comboios.
Eu, deixando a minha consciência ser levada pelos guardas, saio da biblioteca do CReEA e sigo em direcção ao jardim onde um grupo de miúdos, que não deverão ter mais de cinco, seis anos, joga a bola num espaço entre castanheiros. Sento-me no banco...
Ah pois, saíste do encontro homoerótico com ar de chulo e foste ver os meninos ainda meninos, pois é, explica lá isso bem.
Arre merda, o escritor é um autoabjecta maledicente, não sou nada um chulo, fui ver o meu eu, olha, não posso ter um blêizer branco e parecer um capitão da marinha de chapéu mas sem galões?, olha que eu sei nadar, não sou como o comandante que diz que foi comandante!, olhamesta, e não posso porventura sair para ir tostar a pele ao sol no jardim? Os meninos a futebolar é mera circunstância, orafôdasse.
Por isso, continuo. Sento-me no banco do jardim. Ao longe o mar. Olho para eles e tento lembrar aquilo que fui e os sonhos que tive. No relvado improvisado, o defesa olha desconsolado o guarda-redes que, furioso, berra com ele. Não devias ter feito falta, agora o jogo acabou, nunca mais vamos jogar a bola, bem sabes como é a vizinha, nunca mais vamos ver a bola, diz ele desconsolado. Pois é, é tal e qual, esta vizinha deles é o cão do senhor Salomão dos meus dez anos, os problemas dos meninos jogarem à bola em qualquer canto do bairro ou mesmo no jardim mantêm-se inalterados, pelo menos desde que inventaram o fute na bola.
Tão inocentes, tão cândidos, tão felizes, quem sabe o que vão ser quando forem grandes?, alguns nem vão ter a hipótese de escolher, outros irão talvez escolher mal, igualmente muitos não quererão escolher, quererão se calhar que escolham por eles, vão entrar no ciclo do deixa andar e não poderão ser ou serão apenas isso... um nada de vómitos e subtex, muitos poderão ficar pelo caminho, é o rumo natural das coisas, não acredito que a luta de classes tenha sucesso, ninguém vence o dinheiro e a letra que tiver dinheiro governará, será forte… há certas letras que nasceram para serem consideradas fortes, outras letras que nasceram para serem consideradas fracas, letras há que nasceram a pensar que eram fortes, outras a pensar que são fracas, nem todas as letras poderão escolher. Quem sabe, deixa lá ver… piloto de automóveis, jogadores de futebol, cientistas, engenheiros, médicos, advogados, ministros, banqueiros ou... o oposto, os pedintes, os bêbados, os ladrões, os drogados, os canalizadores, os pescadores, os pintores, todos estes... deverei classificá-los de os loucos?
Agora, vou fazer uma pausa no discurso. Vou tirar o meu lindo chapéu branco de um modo teatral, vou despir o meu lindíssimo casaco branco e com frugalidade enrolar um cigarro. De momento, ando a fumar Amber Leaf.
É tudo um enorme trocadilho, uma enorme associação de palavras. Às vezes, começa-se a falar de alhos e termina-se em bugalhos. Às vezes. fala-se mesmo de caralhos. Estou alterado ou, se calhar exagerando mesmo muito, às vezes, as coisas devem ou deveriam funcionar ao contrário e para outros alguns arrasar, afastar a conversa fiada... há quem se ache inteligente, há quem diga ser uma boa experiência filosófica, por exemplo, falar com um velho e com uma garrafa de vinho rasca à frente. E eu digo: oh… é bom ter o prazer de duvidar… sim duvidar, ser céptico… ter esse prazer mas escrever com fome aos vinte ou escrever gordo aos sessenta?
Este meu eu, A é o seu nome., hoje ainda é jovem e não sabe nada de política, embora se diga de esquerda tem reservas em relação ao comunismo por causa da liberdade de expressão e dos direitos humanos mas o mito da revolução pela liberdade, o Che e o Clandestino dos Manu Chao, a rebeldia e a anarquia que o haxe traz... são tudo ideias de esquerda que lhe dizem muito como filosofia de vida. A não sabe mas não passa de um ressabiado com palavras que chocam de tão extremas e, porque não o dizer, palavras fascistas, palavras que afastam, palavras que não admitem a sua queda do poleiro. Tudo isto se mistura com sentimentos e acções em que se digna agir como se as outras pessoas ocasionalmente possam dizer coisas acertadas no meio de tantas coisas desinteressantes. Qual a percentagem... setenta, oitenta? Põe-se ele a avaliar. Mas ainda bem, espanto dos espantos!, segundo dizem, deveremos ter o espírito aberto a novas ideias, deveremos ser todos diferentes, todos iguais. Ainda bem que não sei tudo, assim ainda haverá algo mais para aprender. Se na teoria será assim, na realidade talvez não o seja, talvez se devam ignorar todas essas campanhas filantrópicas, talvez o fundamentalismo...
Tázaver!? Originalidade?, Direito à diferença? Será tudo isso verdade?, será que não penso em ser original, em ser diferente ou não fui eu que vesti a minha personagem de chulo hoje? Até sou capaz de ter algum jeito para frases sonantes, aforismos ou palavras bonitas... mas não estarei só a tentar viver acima das minhas capacidades?, a dar espaço ao conhecimento?, e se isto é ser original.. então, deixem-me ser, desculpem-me lá se sou original, se sou diferente, se mais ninguém procura o conhecimento.
Pareces o relvas vai estudar eheheh.
Ignoro e continuo: Aliás, estamos em tempos hipermodernistas em fins de milénio com meteoros incandescentes caindo sobre nós e o Armenia em imagem dupla, o antes e o depois, um preto e branco de destruição em apoteose, a originalidade é uma mistura de conhecimentos aprendidos aqui e ali por observação empírica, é bom dizer a mim próprio quais são os meus ídolos e heroas, com quem me identifico, presto, aliás, um serviço ao dito Original, àquele de quem disseram eu, A, ser uma Cópia, reciclo-o, salvo-o do lixo e do esquecimento, tiro-o da garrafa de vinho e aproximo-o da almofada, dorme meu menino dorme, sonha com todos os teus mitos, filosofias e perversões... digo-te, menino, o dito de A Cópia tem valor acrescentado: lê lá o Marx masé, o A C...ópia tornou-se autónomo sem nunca ter sido dependente ou sanguessuga, masoquista talvez mas agora devo ir a procura do meu próprio rebanho... não!, talvez não queira rebanho porque não quero ser líder, uso é meios que não divulgo, não é bom alguém saber como agimos a seguir. Liberto-me crio(me) crio(me), resisto de boca fechada, nada há que dizer, silêncio!, deixo a imagem a vosso cargo, que se criem os duplos e os avatares com nomes de realitíchuis, que não se apaguem as imagens gravadas, viva-se hoje e agora. Devo levantar-me, andar e procurar o meu caminho, digo ao meu ser.
O mal não é eu mentir mas sim fazê-lo a mim próprio, quando o meu desejo é talvez fazê-lo aos outros, talvez por me aborrecer com a sua incompreensão ou a máscara da incompreensão ou será que não me explico bem ou será que deverei falar em burrice?
Talvez o burro seja eu. Às vezes, a eternidade fascina-me, a santidade fascina-me, fascina-me pensar em anjos negros, anjos brancos nunca!, nunca anjos absolutamente brancos porque a cor branca tudo reflecte e nada guarda. Estas coisas sentem-se, não se vêem. Às vezes, penso que tive uma visão onde fui iluminado mas de electricidade.
Gostaria antes de falar do futuro se é que ele existe, se é que ele existe agora que me imagino rico, não é verdade que ganhei a lotaria?
A meio da tarde, estou num jardim africano pensando. À minha frente, um canal, um prédio em construção eterna, uma palmeira ao longe e uma casa pequena, de onde num qualquer filme dos anos vinte o Buster Keaton poderia ter saído. Estou simplesmente a apanhar sol, vendo os miúdos a jogar futebol. Acabo por não saber a que horas combinei com ela algo de tão maçador que nem me lembro do quê, nem conheço bem o local, nem sei se ela está lá ou o que pretende. Decido antes ir falar com D, a minha outra consciência, aquela que me é mais provocadora, quase inimiga, aquela que deixei na loja. É bem capaz de ser aquilo que mais quero fazer neste momento e vai ser já, porque fugindo do novo part-time, Id escapa-se, fecha logo a livraria, e abanca no café ao lado, não podendo eu falar com ele nem podendo olhar para aquela peça etnográfica que me assusta ao mesmo tempo que me fascina, aquele machado de Henrique VIII.
Sacudo as minhas calças que estão cheias de restos de tabaco, limpo igualmente os meus sapatos novos, levanto-me, para mim tudo é lógico, sinto a Paz pousar nos meus ombros. Mesmo que nada tivesse lógica ou existisse apenas a minha lógica e os meus anjos negros. Saio do jardim, entro no parque de estacionamento, ligo a chave imaginária do meu jipe imaginário e penetro no caos imaginário da cidade em hora de ponta. Chegado ao destino, paro. Entro pelo parque subterrâneo do centro comercial e, ao sair do elevador, vejo uma senhora em desespero pedindo esmola em troca de flores. Dou-lhe a maior nota que tenho no bolso e ela oferece-me um pequeno jasmim amarelo.
Caminho para o posto de correios e envio-lhe por correio azul as flores e um cartão com desculpas e corações. Chego por fim à loja. Seis da tarde. A minha consciência não está lá. Desta vez, começo a sentir-me atraído pela quantidade enorme de garrafas, garrafinhas e garrafões em exposição na montra, pequenas luzes acesas, velas eléctricas imitando as artesanais, as velas de cera do cemitério, estas recuperadas e com um novo design galopante recordando, exigindo, fazendo questão em imaginar as épocas maravilhosas em que as naus e as caravelas cruzavam os mares carregadas com especiarias e ouro, muito ouro roubado.
Olha, deixou a porta encostada...
Como eu não estou e estou no café, entro e ponho-me a folhear alguns livros antigos. Já não se fazem livros velhos. Vendem-se novos e caros, os outros são baratos mas são os restos de uma sociedade alienada que se desfez das suas memórias pessoais, dos livros que deram orgasmos ao tio ou dos livros que nunca obtiveram o devido valor, dos livros que talvez mais valesse não terem sido escritos. Talvez quem vende estas antiguidades a um intermediário como D, não goste de orgasmos, talvez um dia?!, quando todos estiverem mortos (!) seja útil contar mas... valerá aí a pena?
Abro um e leio:
Ele não é gentil ele não é gentil. Estou triste, é preciso que se saiba. Batem as quatro badaladas no relógio da torre de uma catedral invisível. Faz calor. Vi J ontem, ia com um aspecto duvidoso e lamentável, a única coisa que ele quer da vida é ficar cego com a moca. Agora vejo um homem deitado num banco do jardim, cinquenta e poucos anos, é a idade que lhe dou. Parece dormir. Tem um gorro na cabeça e não lhe consigo ver os olhos, talvez por causa deste pormenor possa ele estar salvo e ser anónimo. Nunca confirmei a sua identidade. No passeio, caminham dois homens de uma certa idade com as faces corroídas pelo sol. Talvez pescadores já com rugas e reformados da faina. Procuram um banco para se sentar. Sentam-se perto de mim. Consigo ouvir as suas palavras cheias da rouquidão, do catarro de longa data, quem é fumador sabe distinguir: olha... parece que já tenho programa para logo à noite, dá um jogo importante na televisão.
Largo o livro, a minha consciência parece ausente, o livro é sobre alienação e velhice, é sobre tudo o que eu posso obter se tiver uma má experiência com as coisas que ainda quero fazer na vida. Não quero ser velho, quero morrer jovem, sem palavras e com um belo rosto, um rosto anónimo.
É esta última frase a frase que escrevo no meu caderno preto de linhas como uma das impressões do dia sentando-me à espera que a consciência retorne. Engasgo-me para dar a ilusão de me rir e de analisar o ridículo, tal como o sublime Ionesco, afinal não foi ele que escreveu um livro chamado O Solitário?
Arrumo o caderno no bolso de trás das calças e dirijo-me a outra banca com livros. Reparo numa capa onde se vê uma mulher agarrada à gravata de um homem. Pego nele.
Perdendo a noção de onde estou, acuso em alta voz, pensando talvez estar em casa em frente ao espelho admirando o bigode: sou apenas mais um com a mania das grandezas ou com a mania que é diferente dos outros ou um ser superior. Oh... o que acontecerá aos meus cadernos? Oh... o que acontecerá às páginas flamejantes, ao veneno dos meus cadernos??
D, o elemento consciência que entra, vindo do café sem ser visto, ouve A e vê o livro que ele tem nas mãos... e intervém adicionando caos à verborreia: Oh... mas será que alguém os lerá? Oh meu deus oh meu deus ainda existes? Procurei-te vivo ou morto na rede da sociedade da informação, ofereci recompensa, não me parece que deus exista...
O que Id diz dá-me vontade de escrever, ainda bem que Id ouve apenas a minha voz e não os meus pensamentos, pois senão iria ficar para sempre na dúvida acerca dos motivos do sarcasmo. Daria para uma tarde inteira num caderno cheio de explicações mas há uma pulga para ser fichada e, por isso, retiro o caderno preto do bolso e adiciono mais um item:
É a vida. É o seu rumo natural. Ela tanto pode andar por caminhos tortuosos e escuros como por longas avenidas cheias de flores.
Largo o caderno outra vez e pego noutro livro. Introjecto como se arrastasse uma grande mágoa dentro de mim, até que expludo de raiva mas nem eu próprio percebo o meu desprezo mas Id percebe e diz-me com veneno na língua.
Agora A, lê este título de um modo apaixonado, sim meu filho?
Maria, não me mates que sou tua mãe. Interessante. Deixa ver?, Camilo... o quê? Castelo Branco, o quê, é o conde dos realitíchuis? Ahahah, imagino dizer estas palavras tendo um ataque epiléptico. Tento acalmar-me. Pergunto o que se passa. Está tudo bem, não se passa nada. Só me passei com o título. Achei engraçado mas é o melhor escritor português do século dezanove e ele também tinha de comprar pão e circo.
Talvez exagere um pouco ou talvez não seja bem assim e talvez um dia venha a compreender. Sempre o talvez, espero esse dia mas espero sentado, pois a consciência pode demorar muito para conseguir arranjar a cisma do espelho.
D chama-me agora a atenção para uma página dobrada num outro livro. Estranho. Nenhum destes livros tem nome de autor impresso. D aponta-me uma linha do texto e diz:
E agora, sim meu filho? Lê isto de um modo sonhador:
Posso ver, à frente, a lareira da minha mansão de vinte e quatro quartos e seis casas de banho. Aqui, devo olhar para mim porque me aproximo de mim, não me vejo, eu só transmito a imagem que todos vêem, eu não vejo nada excepto as suas reacções, eles não existem como espelhos. Devo ter uma pose longínqua, em som contínuo minimal, em cada casa de banho um funâmbulo, num lugar quente e confortável. Culpa? Não deverá existir. Neste instante, devo levantar o dedo acusador de um juiz. Para que exista um juiz é necessária a existência de um sistema, esse sistema personificado na sociedade pelo símbolo do Alfa Beto. A sentença diz: condenado.
Mais uma vez, a palavra culpa e condenação presente. Começa a ser repetitivo. Paro de ler. Olho para o tecto, fecho os olhos, abro o livro outra vez e continuo a ler umas páginas mais à frente:
No primeiro andar do autocarro em andamento, beijo os teus seios por cima da camisa, nós indiferentes aos passageiros. Toco-te, tu beijas-me, gemes, mordes e eu sinto o retesar da pele dos teus bicos e o perfume do teu cabelo acastanhado em caracóis compridos. Cheiras a inocência, a virgindade, nasceste ontem durante o signo virgem a dezoito. Beijo as mãos que reflectem o teu desabrochar, a tua pele vermelha toda marcada para que te possas recordar de mim, para que eu me recorde que tu foste a mais bonita que tive e tenho, ups tinha... merda para as recordações, destruam-nas, que se queimem todas as provas. Por outro lado, essas memórias são os pontos de ganza erógenos que me masturbam a próstata. Deverei implorar aos céus, bradar aos céus para que matem este ano condensando-o num instante por oferenda de deus, como no conto do argentino. Mandem um raio e violem-me para que todos se possam rir de mim, e eu também, durante o momento de expiação, o ridículo descarado à minha frente reflectido no espelho, triste… triste… triste muito triste. Eu aqui devo chorar mas já não tenho ninguém com quem chorar, ninguém, ninguém que me ouça. Estou só. Falo sozinho. Suicídio: o acto verdadeiramente filosófico. A vida merece ser ou não vivida? É mais um teste. Se resistir, e aqui deverei voltar a ser sonhador e a ter esperança, se sobreviver deverei dizer certamente: não!, não me matei!, ainda aqui estou, a vida merece ser vivida, quero forçosamente continuar por Cá mais algum tempo, não serão vocês, as consciências enganadoras, os massmédia, as opiniões e as associações, os infames e as bestas que me impedirão. Eu hei-de chamar-vos nomes mesmo na fogueira. O ego levanta o punho bem cerrado e vocifera, lívido e atónito de cólera, olhando em frente uma garrafa de vinho tinto: Estou aqui para vos atormentar e a todos fazer a vida negra. Eu hei-de chamar-vos...
Digo alto estas frases e D responde dizendo que estarei sempre em dúvida permanente sobre a condição do eu, coitado e querido, a mais preciosa flausina. Terminarei eu louco esperando etereamente a morte tal como todos os meus anjos negros? Cansei-me de ti e desse teu livro, não levo nada hoje.
Bom, D, até à vista, vou-me embora. Fica bem.
Desiludo-me, murmuro a mim próprio no caminho de volta: o fim do milénio aproxima-se. Como seria feliz se te tivesse beijado quando bateste à minha porta naquela tarde de Sábado em que eu escrevia à máquina. Haveria destroços por todo o lado. Como gostaria de te ter mostrado o amor que, nessa altura, te escrevia, como o deveria ter feito também quando fui obrigado a optar, como deveria ter desligado o trabalho e ter-te pegado na mão e levado para o quarto. Irias talvez dizer que um fogo avermelhado caíra do céu e que nós, há muito tempo estávamos acabados e só o Platão nos unia e talvez nunca mais valesse a pena começar de novo, porque nada se tinha perdido, porque a cidade poderia estar em transe de se consumir. A voz gritaria: tudo será mais difícil sozinho, o ser uno, eu e ela sozinhos, um ser desfeito. Tremo de medo quando me feres súcuba os ouvidos, o meu amor por ti que não te tenho mais, estou aqui sozinho.
Chego ao alojamento e atiro-me para cima da cama. Ligo o computador, já sei... vou-me ligar a ela por esta internet, esta novidade já em fase de testes no campus, suspiro porque não sei se ela vai atender a chamada telefónica de um número estranho, vou pensando: ah! Miséria, eu não agi quando devia mas... no futuro, a casa alternativa fundir-se-á com a beleza pop se Icata, tu a deusa, te recusares tornares-te um cadáver cheio de rugas e, ao mesmo tempo, a minha consciência sair da clausura provocada pela ilusão mistificadora. Enquanto isso não acontece, vivo entre estas quatro paredes e penso frequentemente em traficar rosas, qué frô?, todas as que forem necessárias, penso em transfixar-me para sempre, penso em pecados clandestinos, penso em ter-te nem que seja às escondidas.
Quando ela atende, A diz: Olha desculpa, sempre apareceste lá no evento e que tal?, recebeste as minhas flores? Não? Pois, amanhã sem falta terás uma surpresa mas agora... lembrei-me, ora pensa comigo, eu tenho uma câmara de vídeo, o teu computador tem outra câmera, eu dou-te o código de acesso, vamos fazer sexo pela rede de informação. Não?! Porquê? Não acreditas em mim? Não, não precisas de pagar nada, eles até agradecem, estamos a experimentar-lhes o serviço, mas nunca fiando... liga o antivírus, ok?
Bai pastar a toura, é a linguagem que tu entendes, não me ligues mais. Para ti morri.
Mas querida...
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Claudio Mur