Um dos efeitos da pandemia foi eu não ter renovado a assinatura mensal de transporte público e salvo idas mais distantes como a casa dos meus pais, tenho andado a pé. Sozinho, com fones nos ouvidos ouvindo rádio, tenho caminhado e conhecido novas ruas e até fotografado alguns gestos de guerrilha urbana na forma de grafiti. Geralmente, de dois em dois dias lá vou eu.
Nos últimos dias, a minha mãe deu-me um tshirt preta e eu logo a vesti, como estava de calças pretas já ruçadas e cinzentas do uso, disse «nem as tiro, com as sapatilhas e a tshirt preta, pareço um cigano branco, loiro e de olhos azuis, que fixe!»
Nos últimos dias, nos meus passeios tenho conhecido um bairro social onde existem algumas famílias ciganas que instalaram no jardim cadeiras, mesas e até uma pequena piscina insuflável para os pequenos, e eu ao passar por lá, pelo meio deles, senti-me respeitado pelas senhoras que disseram «ai deixe passar o senhor» e até os pequenos calés que andavam em bicicleta roda 18 quase pararam para deixar passar o senhor, que sou eu aos olhos destas famílias. Senti-me bem e agradeci ao passar: «obrigado».
Hoje voltei a passar lá e no mesmo local sou abordado por uma senhora certamente não mais velha de que eu, mas certamente já avó, com o cabelo negro apanhado numa bola atrás da nuca e com um vestido cor-de-rosa de corte modesto e que realça as gorduras extra que todas as mulheres ciganas, pobres e cheias de filhos, ganham a partir dos trinta anos. Diz-me ela:
-- Desculpe, bom dia.
-- Bom dia.
-- Olhe, eu tenho ali muitos polos como esse seu que são tão bonitos como o seu.
-- Desculpe.. mas num tenho dinheiro...
-- Não faz mal.
-- Obrigado. Bom dia.
E vim-me embora para casa feliz. A senhora cigana reconheceu-me como um igual pelo meu modo de vestir, e cortejou-me tentando fazer com que eu lhe comprasse roupa. Hilariei quando me lembrei que aqui há dois ou três anos um grupo de ciganinhas me bateu à porta e eu cheguei à janela para ver quem era e elas mostraram uns soutiens, o que é diferente de mostrar os soutiens, «Não precisa?» E eu a rir-me da janela e a dizer-lhes «Não, não uso, desculpe!»
Sim, esta cigana que conheci hoje no meu passeio sanitário pela urbe... eu até tinha dez euros na carteira, bem que lhos podia ter dado, mas achei que não precisava de mais roupa.
Ué?!, não dei eu um cd de Sheila Chandra à minha amiga que gosta de música indiana? A minha vontade sabes qual é?, é voltar nos próximos dias e dar a esta senhora, ou qualquer outra cigana que me aborde de novo, o meu cedê de Estrella Morente e dizer-lhe:
«Olhe mana, desde que nunca mais soube do cantor Xano cigano e não conheço nenhuma cantora portuguesa cigana, a não ser a avó de todos nós -- a Cidália Moreira, quero oferecer-vos este cedê, é de uma cantora da Andalúzia, para vocês conhecerem as raízes comuns com nossos irmãos espanhóis!
Não sei se alguma vez lhes darei este cedê, mas ficam aqui as palavras cantadas:
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eu serei muralha
para que não te ofendam
e a ti não te tirem eterno amor
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