sábado, 11 de julho de 2020

Ex-xenofónico


Juandrés Vera : ′′Me, myself and I"



Há poucos dias mandei uma mensagem pelo facebook à minha prima de Lisboa, disse-lhe: se me quiseres ouvir, eu às vezes preciso de falar e não tenho com quem.
Ela respondeu dizendo que ligaria no dia seguinte mas entretanto meteu-se o problema das matrículas dos alunos, que pelos vistos até foi falado no telejornal, e só hoje me ligou. À tarde.
A minha prima é dois anos mais velha que eu e é formada em psicologia embora não exerça, ou melhor, vai exercendo no dia-a-dia, no trato que dá à sua comunidade de vizinhos, na educação dos filhos, e também na atenção que me dá. 
O assunto da conversa seria talvez os encontros clandestinos 'na paz do senhor e sem maldade' com a minha amiga, mas o tema desviou para o facto de eu estar a preparar mais um volume em formato a5 com textos do meu vizinho Giuliani. Ela já me perguntara antes o que eu achava do trabalho dele e eu até lhe enviara um pdf já realizado para ela própria avaliar. Agora comentamos este facto e ela diz que não aprecia muito poesia porque às vezes não a entende. E eu digo-lhe que concordo com ela, que também sou mais de prosa e que, digo eu agora que escrevo isto, às vezes os poetas são tão abstractos e tão herméticos que apenas eles compreendem. Acabo por lhe dizer: é triste dizer isto mas eu não gosto muito do trabalho do meu vizinho, mas faço-o para o ajudar a vender depois exemplares e ele ganhar algum dinheiro, além disso, ele começou a pagar-me estes últimos trabalhos e eu acabei por aceitar fazer a transcrição para computador e preparação para impressão digital e encadernação porque este dinheiro me faz jeito. 
Digo-lhe por exemplo que acabei de passar uma parte em que ele diz que acabou com a guerra do vietname ao escrever o poema três meses antes. A minha prima compreende a ilusão do poeta e diz: sim, como se eles tivessem lido o poema. Sim, digo eu, ele é como eu, é o síndrome de Jesus Cristo, o Giu pensa que é o salvador e eu penso que sou o diabo, que o que escrevo faz mal às pessoas, lhes bate. Mas, digo eu, ele está pior que eu, ele não tem consciência, ele não se acha esquizofrénico. Eu sei que sou, eu tenho essa consciência de pensar que mudo o mundo mas sei que é doença, é um sintoma.
Acabo por lhe falar que estou zangado com os vizinhos à excepção do Giu e conto-lhe por alto a violência daquele que eu designo por comandante. Digo: sabes prima, eu, que tenho um curso superior e fui assim treinado para ser um membro das classes superiores, cedo me fartei desse modo de vida e cedo me desleixei e fui perdendo os empregos de estagiário em engenharia ao mesmo tempo que a minha actividade se desviava para a pintura e para uma ideia de pobreza: o ter dinheiro a mais faz-nos mal. Prima, eu sou uma pessoa simples, que tenta falar com toda a gente, com o grande e com o pequeno, de igual para igual. Eu, ao vir morar para esta ilha, quis fazer-me amigo do povo, do pobre, mas acabo por ver que o pobre só tem inveja do grande e quer ser como ele não se importando de fazer pior que o grande. E eu aqui, vejo a garganta deste comandante, diz que fez e aconteceu, é filho de uma mãe rica e de uma família com nome ilustre, e é mais básico que um cepo e é violento,é um pouco parecido comigo embora eu não bata em ninguém. Ele obriga pela violência física, eu só mando umas bocas foleiras e retraio-me porque depois perco a convivência se me desboco. 
Assim, vivendo no meio de pobres, ou de pobres mentais, sou estranho a eles do mesmo modo que sou estranho à minha família (remediada, de classe média baixa) e estranho ao grande, seja em estatuto e fama, ou posse de dinheiro, ou valor intelectual. Digo-lhe: eu acho que não fui muito bem educado pelos meus pais, eles delegaram a minha educação na escola e nos professores e eu cheguei à universidade e não sabia nada da vida. Não me quero queixar dos meus pais agora porque eles fizeram o melhor possível. 
Sim, diz a minha prima, sabes que eles nunca contaram nada a nós sobre a tua vida mas eu fui sabendo, até uma vez fui aí ao Porto e te fui ver ao hospital, mas os teus pais gostavam de ti, tiveram a preocupação da escola particular, tu eras um bom aluno até mais que nós, bonito e inteligente mas eras mau às vezes, e nós éramos mais velhos e tinhamos de te pôr na ordem, os teus pais talvez não te impusessem limites, não te davam uma palmada como às vezes merecias porque tu eras bom aluno e eles desculpavam, tu quando não conseguias o que querias vingavas-te e davas um pontapé. 
Sim, eu sei, eu era mau, tens toda a razão. Mas era porque não tinha liberdade, só o facto de ter uma carrinha escolar que nos levava ao externato era controlo a mais, por isso a escola pública, lá ao menos todos somos iguais, e não os filhos do senhor de tal que tem uma mota ou um carro, e eu não tinha porque os meus pais já faziam um esforço enorme para nos terem no colégio.
-- Sim, tu já na altura falavas da escola pública e como era bom andar lá.
 -- A sério, já não me lembro do que a gente falava.
E depois, a conversa acaba com a minha prima a dizer que agora vai ver a mãe e o irmão e sua família, os meus primos, vão desconfinar num jardim porque a minha tia fez anos recentemente e desde Março que não se reúnem. Diz-me que me liga amanhã da Costa, ou seja, vai ver o sol da caparica. 
Desligamos e eu fico a pensar: então, era eu pequeno e já pensava em vingar-me. Começo a relembrar. Descubro o motivo e tem a ver com o facto de eu ter dito à minha prima que passei a juventude a pensar que o meu pai não gostava de mim e que hoje e já há alguns anos sei que ele gosta de mim. Começo a desfiar o que não disse à minha prima e chego à evidência, eu no dia do primeiro internamento estava eu na sala de observação e os meus pais assomaram à porta, e eu sabia que dali não saíria e queria levar uns quantos atrás de mim e lembrei-me de dizer, de insultar o meu pai, os meus insultos são sempre cínicos mas este foi revelador, disse: lembras-te pai do que me fizeste quando eu tinha quatro anos?
Isto, que o meu pai me fez e que eu não especifiquei e apenas com raiva e vingança lhe atirei à cara com o intuito de o magoar, foi algo que eu bloqueei desde esse instante aos quatro anos e só aos vinte e sete no internamento se revelou e como catarse... e o que foi?
Um miúdo de quatro anos gosta do pai e o meu pai estava doente no hospital e ele um dia à noite volta do hospital para casa e o filho vem à porta com saudades do pai e o pai atira-lhe com um chinelo. E o filho ainda hoje não sabe mas certamente que chorou por esse desamor do pai, certamente que reprimiu essas lágrimas e bloqueou o momento, esqueceu-o no fundo da memória e reprimiu-o, em seu lugar cresceu o desejo de vingança contra o mundo e contra o desconhecido.
É esta a causa da minha esquizofrenia, estou certo e sabê-lo e aceitá-lo como algo brutal mas imponderável e ter feito as pazes com o meu pai quando há uns anos ele esteve para ficar inválido e saber que ele gosta de mim (à sua maneira), tem feito com que eu deixasse de ser «xenofónico», palavra que ouvi no programa Portugalex da Antena 1. 
Sou um ex-xenofónico.
Agradeço à minha prima o ter-me proporcionado este pequeno apontamento. Ela conhece-me bem.

1 comentário:

  1. A minha prima não tem conta google e eu nem sabia que apenas contas google podiam comentar aqui, mas ela enviou um email que reproduzo aqui:

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    Viva, primo!

    Afinal tinha já o teu e-mail.
    Antes de mais, quero dizer-te que fiquei sensibilizada com o que escreveste e o que de mim dizestes e avalias ��.
    O que quis escrever no teu blog sem conseguir era mais ou menos assim: quando se consegue descodificar os medos, a realidade e a compreensão dos outros é maior.
    A infância é primordial e a relação de afectos com os pais são um berço no crescimento e desenvolvimento. Os pais carregam um passado e o nascimento de um filho, principalmente, o primeiro, trás inseguranças, obviamente, alegrias e aprendizagens. Porém, o passado irá condicionar o comportamento na relação pai/filho. Imagina como será assistir à morte de camaradas em combate ou a aflição de estar muma emboscada? Ou seja, ter a vida permanentemente em suspense. Quantas vezes tiveste a tua vida em perigo, por opção?
    Os pais entendem que ocultar aos filhos o que os preocupa, perserva-lhes a dor. Também, há quem defenda que o amor e os afectos não devam ser demonstrados. E outros não sabem como fazê-lo. Enfim, quando um filho nasce, o crescimento deve ser, também, em família para que sejam capazes de se auxiliaram e mutuamente, ultrapassem as dificuldades.
    Quem disse que é fácil ser mãe? Ou pai? Ou filho?

    Bolas, estou a longar-me. Discordas?
    Falamos depois, sim?

    Beijinhos

    P
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    eu respondi:

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    não discordo prima P,

    eu poucas vezes ouvi o meu pai contar histórias, deve ser como dizes o porquê de ele me querer preservar aos infortúnios

    mas sempre que consegui dialogar com ele eu ganhei algo.

    eu só fiz a paz com o meu pai em 2009
    quando ele caiu na aldeia duma ribanceira onde estava a cortar silvas, podia ter ficado tetraplégico já que bateu de cabeça no chão, e eu fui vê-lo ao hospital, foi uns meses depois do meu internamento, ele estava com pesos no pescoço e não se podia mexer, e eu chorei ao vê-lo e ele mesmo como estava me tentou dar conselhos, puseram-lhe um parafuso na cervical, eu reparei que gostava do meu pai e ele de mim.
    depois ele começou a pedir a minha companhia, e eu comecei a acompanhá-lo à radioterapia porque o meu pai teve um problema na próstata, senti-me bem, senti-me útil

    ele agora, que também recuperou de uma morte por cancro e escapou à invalidez motora, está mais vivo acho eu, está mais alegre e de vez em quando conta histórias

    e eu gosto de ouvir e gosto de os ajudar, quando é preciso o meu pai liga e eu vou com a minha mãe à consulta ou vou comprar qualquer coisa que ele precisa,

    agora posso dizer que tenho uma relação pai-filho.
    por isso a minha cabeça tem mais uma causa para estar bem agora


    Quanto a pôr a minha vida em perigo por opção,
    largo aqui uma bomba que não sei se alguma vez a família te contou:

    eu tentei matar-me no último ano da minha estadia em A.
    foi mais uma razão para eu ser internado três anos mais tarde,
    descansa prima!, para mim o suicídio já não é válido, eu quero hoje viver mais do que nunca!


    beijinhos do primo R do poorto câmpiom eheheh

    ''
    ela responde:
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    Primo R!

    Muito me contas...
    Bom saber que te aproximaste do teu pai e ambos tiveram oportunidade de se conhecer melhor.

    Essa bomba que largaste não era do meu conhecimento mas não fiquei totalmente surpreendida com a revelação. Obrigada por confiares em mim. Havemos de conversar sobre esse tema, sim?

    Tem uma boa noite
    Beijinhos da benfiquista lisboeta

    P
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