Levantou-se da cama, vestiu roupas melhores do que o costume e saiu para o pequeno varandim quadrado que tinha à sua disposição. Daqui podia ver as copas das árvores do pomar vizinho. Estava tudo tão tranquilo e cheio de sol que quase encandeava. Pauline, a criada, estava a pôr a mesa do pequeno-almoço ao ar livre. O ajudante já não podia resistir mais a esta visão, o café, o pão, a manteiga chamavam-no para baixo.
Mais tarde desceu para o escritório. Não havia muito que fazer mas, atraído por um hábito quase amoroso, sentou-se ainda assim à secretária, que mais parecia uma mesa de cozinha, e começou a escrever. Ah, mas hoje era só um flirt com a pena, nos outros dias sempre tão séria. As palavras «conversa por telefone» pareciam-lhe tão lavadas e domingueiras como o tempo e o mundo lá fora. A expressão «e permito-me» era azul como o lago aos pés da vivenda Tobler, e os «melhores cumprimentos» que fechavam a carta quase cheiravam a café, sol e compota de cereja.
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página 71
''O ajudante''
Robert Walser
tradução de Isabel Castro Silva
edição Relógio d'Água
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Comecei a conhecer Robert Walser, há dez anos talvez, através do antigo blog dos actuais editores do blog Bicho Ruim. Eles são entusiastas de Walser e transcreviam no blog passagens dos livros de Walser. Deste modo me tornei eu próprio um entusiasta de Walser quando comecei a conhecer pormenores da sua biografia, afinal Walser escrevera livros e vivera as últimas décadas da sua vida longe do mundo, sem mesmo querer saber dele, internado num sanatório.
Mais tarde, Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral apresentaram uma sessão walseriana na livraria Gato Vadio (Porto) que encheu pelas costuras. Naquelas duas horas, Walser foi o presidente adorado de todos nós.
Quem me dera ser ajudante de Walser. Eu que escrevo há anos, sem verdadeiramente me importar em enviar para editoras e ser publicado ou recusado sem resposta, eu que fui já também internado em psiquiatria, e que já me senti mais longe do mundo do que na realidade vou estando e que vou acalmando a revolta dizendo que ainda assim «ainda há gente que come» e eu sou gente, eu como e muitos não, eu olho para Walser como um mestre, em vida e obra, porque a sua obra imita a sua vida, e ele tem tanta fineza de espírito, é um génio de fazer conversação amável e com as melhores palavras com a frau Tobler sem deixar de ser o ajudante do marido, o secretário pessoal.
Onde Walser é refinado eu sou bruto. Walser é desastrado como ajudante mas sabe compôr o ambiente e aceita o destino com naturalidade, o que o patrão desejar está bom. Eu que já fui estagiário e ajudante de armazém e tive os cargos mais básicos dessas empresas, pelo contrário, se fui despedido dos trabalhos não foi por falta de habilidade técnica como talvez Walser-Marti ajudante de Tobler o será quando eu chegar à página e ler o que ela nesse momento diz. Não, eu no meu caso fui mais um Wirsich, um gajo que se passou dos carretos e explodiu e tornou malcheiroso o ambiente da empresa, impossível continuar a trabalhar lá. Mas também a minha mãe ligou a pedir que me readmitissem mas claro...
Tenho pena de Wirsich. Walser substitui-o e leio-lhe os pensamentos, o modo como ele antropomorfiza os objectos, o modo como ele dislexia as relações entre substantivos e adjectivos fazendo-me visualizar pumas esvoaçantes, o modo sinestésico como ele dá cor aos vocábulos, e eu divirto-me, sorrio ao ler, retiro mesmo um prazer sensorial comparado a uma boa conversa com uma amiga, dá uma vontade de não parar de ler, de descobrir o sorriso da moça nas páginas e quiçá aspirar a um amplexo no fim do livro,
Walser é prazer, Walser é grande. Que me importa que eu nunca publique? Walser escreveu o suficiente para descrever a vida de tantos como eu, os meus livros são desnecessários e só ensinam pela negativa. Pelo contrário, os livros de Walser fazem-nos querer ser Walser. Os meus livros são ácidas memórias que corroem, os livros de Walser são flores que se oferecem às damas ou respostas aos nossos emails quando calha escrever a alguém que consideramos.
Walser teve em Seelig um amigo de caminhadas. Eu não tenho ninguém que se interesse verdadeiramente por mim. Ainda vou tendo a minha amiga que me visita quando se lembra mas que não gosta de caminhar, não gosta de andar a pé, afinal tem um parafuso no pé que
é fruto de ter caído de mota numa ribanceira, apostaram com ela e ela ganhou a aposta e, em troca, o cirurgião ofereceu-lhe um parafuso. Coitada, tem os pés pequeninos e chama-me Francstain quando a vou buscar ao metro com a careca no ar, mas eu gosto um pouco dela e ela gosta um pouco de mim, vamo-nos ajudando à distância, ela é quem tenho mais perto de me compreender e de botar por mim a mão no fogo.
Walser retirou do seu mundo as coisas belas sem deixar de dizer em metáfora as coisas más. Eu extirpo as coisas más do meu mundo e nunca consigo dar beleza às coisas boas que também vivi. E sim, tive pessoas belas comigo, boas mulheres, mas só em poucos momentos vi nos seus olhos a admiração, elas queriam um chefe, e eu sou um simples ajudante.
Walser retirou do seu mundo as coisas belas sem deixar de dizer em metáfora as coisas más. Eu extirpo as coisas más do meu mundo e nunca consigo dar beleza às coisas boas que também vivi. E sim, tive pessoas belas comigo, boas mulheres, mas só em poucos momentos vi nos seus olhos a admiração, elas queriam um chefe, e eu sou um simples ajudante.
Walser, eu Mur me ofereço para guardião da tua estátua.
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