domingo, 17 de janeiro de 2021

Cuja residência se situa a setenta metros e tem binóculo

 '

Eu nem o vi. Mandei três praças com ordem de prisão por ofensa à moral e escândalo público, mas tinha-lhe dado a macacoa e foi de charola para o hospital. Isto pouco depois de a ambulância ter transportado para o mesmo destino as duas senhoras envolvidas na ocorrência. Trata-se de um tal Elói Anjos da Breca, de 26 anos de idade, morador na Rua de Trás, em Lisboa, desconheço número da porta e código postal. Segundo os autos de detenção, o citado Breca chegou a esta localidade com duas turistas estrangeiras, cujos nomes estão apontados.

Ouvido o guarda da passagem de nível de Cadavins, que se encontrava fechada como normalmente acontece, declarou ter o malandrim perguntado qual o apeadeiro mais perto, com a intenção, segundo ele, de tomar o comboio para Lisboa no dia imediato aos desacatos constantes dos autos. E mais disse que o indivíduo quis saber a distância que faltava para esta localidade, tendo então informado o depoente que as ditas senhoras, vendo-o na Rua Portas de Santo Antão fazendo horas para a matinée, o convidaram a acompanhá-las na viatura em que se faziam transportar, a qual é cor de tijolo e tem matrícula de fora, encontrando-se apreendida à guarda deste posto.

Foram os três pernoitar na vivenda A Nossa Casinha, alugada pelas referidas, que há seis dias ali se tinham instalado com bom comportamento. O escândalo teve início pelas 20 e 30 horas, conforme testemunho do senhor Ulgino Calção, cuja residência se situa a setenta metros e tem binóculo. Afirma o declarante que o citado trio, de janela aberta e luz acesa, se entregou durante toda a noite a práticas imorais, algumas delas nem suas conhecidas, e continuavam na mesma pelas oito da manhã, altura em que se viu obrigado a abandonar o seu posto por cansaço da vista. Alertara entretanto alguns vizinhos, os quais presenciaram delito atrás de delito, assustando-se ao meio-dia com o aspecto esfalfado das forasteiras, não dando o delinquente nacional sinais de fraco. Tentaram então forçar a porta da vivenda, sendo obrigados a fugir devido às tentativas de violação por parte do energúmeno.

As primeiras informações do hospital, ainda não oficiais, indicam como atenuante que o citado Breca foi drogado, com cantáridas ou outro produto eficaz, mas também deve ser assim de sua natureza.

Estes são os factos apurados, que vão seguir os trâmites legais. Dê no que der, a minha opinião particular é esta: hospitalidade, sim; mas também não pode ser a mata-cavalos.

'


págins 49 - 51

«Histórias do fim da rua»

Mário Zambujal

edição Círculo de Leitores

Sem comentários:

Enviar um comentário