domingo, 3 de outubro de 2021

O radical do meu medo

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Chegamos a rua e separamo-nos dos rapazes. Rob e eu, vamos para casa de Rob. A escuridão, as ruas hoje parecem estranhas, as pessoas, tudo, algo não está bem, pressinto, será esta realidade uma alucinação só porque comi cogumelos ou são os cogumelos apenas placebos? 

As situações mais estranhas são aquelas em que eu não sei distinguir a realidade da alucinação, ficar na dúvida. Por exemplo, ao ver uma balança de peso daquelas de consultório médico dentro de um café com um balcão e petiscos, tirar uma fotografia, revelar o rolo e verificar que esta balança não foi impressa nem está presente no negativo, duvidar se, de facto, a balança estava no café em vez de na farmácia ou se era a máquina fotográfica que estava enfeitiçada e funcionando mal, filtrando a realidade como consequência ou se apenas fotografei a farmácia sem me lembrar lá ter entrado.

O radical do meu medo em distinguir a realidade da ficção psicológica é ainda não ter perdido por completo a ilusão do quão grande poderia ter sido no passado, e tendo preferido tudo esquecer renegando o passado e, agora já sem passado, estar em vias de perder a minha identidade na metáfora da cabeça às vezes fálica e, agora já sem corpo pedir, desejar mesmo o mal menor, o toque eventualmente violento de uma nova forma, o implante no meu corpo, já sem forma, de uma metáfora: uma estrutura nova e com afinidades que se desejam sociais. 

Mas ainda recuso esta caridade porque não gosto que tenham pena de mim, eu mesmo sentindo-me um vagabundo tenho vergonha e não quero caridade por pena ou por medo do que o meu aspecto possa provocar.

O radical do meu medo é poder explodir e tudo à volta do meu centro ser destroçado nas réplicas. Não é o desejo de morte, é mesmo o desejo de não morrer e não fazer vítimas, de não ser eu ou eles, é aceitar sofrer por um canto, um pouso cujo ângulo se abre para a envolvente de um mundo real que desejo sem ilusão.

Caminhamos calados. 

A certa altura, ele toma um caminho diferente. Pergunto porquê e ele diz que quer ir por aqui. Digo-lhe que é mais longe por aqui. Ele repete que quer ir por aqui. Sigo-o. Começa a chover. Subimos as escadas ao lado da catedral de St. Finnbar. Rob pára debaixo de umas árvores. Pergunto-lhe porque paramos. Diz por causa da chuva. Mas já não chove, digo. Continuamos a andar. Eu não quero parar. 

Desde que tomamos este caminho mais longo, estou desconfiado. Rob já não é Rob. O casaco que Rob usa, um casaco parecido com os casacos da tropa, já não é o casaco que Rob usa, é o casaco roto e vagabundo de um aprendiz de informações da Inteligência.

É o meu eu. Ele quer queimar-me. Tenho informação sensível. Ele é o irmão que eu nunca tive. Vejo nele a autoridade de um mais-velho, de alguém que, embora mais novo, sabe mais que eu, e ele quer-me queimar, eu sei. Tenho problemas em seguir a autoridade porque, para isso, é preciso fé e a fé é uma espécie de amor, eu sinto que a autoridade se parece impor sobre mim recorrendo à insídia, tentando-me com vantagens, ignorando a minha voz se hesito e rejeitando os seus avanços. Ponto por ponto. Etapa por etapa. A autoridade do mais-velho vai-se impondo como uma fé, como um amor de sangue, de irmão para irmão, o irmão que nunca tive.

Ele tem as mãos nos bolsos. Calça botas cardadas. Parece forte demais.

Desconfio que me esteja a levar para algum lado perigoso onde pararemos por causa da chuva e me assassine dentro de um túnel e invoque mais tarde ser um polícia no cumprimento do seu dever. 

Por isso, não paro e caminho no meio da rua alguns metros à sua frente, enquanto ele vai na sua paz pelo passeio. Existem alturas em que detesto o Jean Genet. 

Olho as casas, para todo o lado, rio de medo, Rob diz: descansa, apenas quis vir por este caminho mais distante e já vais ver onde isto vai dar. 

Olho para o céu e imagino que este azul-escuro com poucas estrelas se move, digo-lhe a rir que este céu parece um grande ecrã de cinema. Vejo um filme onde entro como espectador de «Phaedra’s Love» na sala do teatro e na rua durante a matança final.

I am not so bad, eu não mereço morrer, não tenho tanta culpa como Hipólito que vivia ali entre búrgueres, carros telecomandados e socas inseminadas, que havia também uma mulher para esquecer e que outras havia, vinham, apareciam e se apaixonavam pela nossa rudeza de subúrbio, queriam ajudar queriam ajudar e acabavam humilhadas jurando vingança e produzindo a prova. Não, não sou tão mau.

I am not so bad, mas tinha de ir embora para casa depois do espectáculo dos Corcadorca recusando o convite para tomar chá dos colegas de trabalho que vieram comigo ver a peça. Senti-me Hipólito, identifiquei-me com ele, identifiquei-me com o padre e com Fedra e com todos os que tentam ajudar, senti-me opressor e vítima, nada me bateu tanto, fiquei em choque, vivi o meu assassinato quando o pai esventrou Hipólito. O meu pai matou-me, um padre confessou-se, um amor etéreo subiu ao céu com a santificação da vítima. Existem alturas em que detesto a Sarah Kane. Take it easy, you’re gonna make it man, take it easy.

É verdade, consegui, chegamos a casa de Rob. Cinco da manhã. 

Ao entrarmos na sala da televisão, vemos o americano Joe, que vive com eles de borla pois não tem dinheiro, dormindo no chão. Digo a Rob que vou para a outra sala, a sala interior que tem três sofás. Rob fica e eu vou, quero dormir, quero fugir ao que me parece a matança, tenho medo de todos os pais, de todas as famílias que vou adoptando no meu percurso, ou seja, quero esquecer e acordar amanhã num novo dia e melhor, mas não tenho grandes esperanças em adormecer. A minha primeira vontade talvez não seja adormecer mas, sim, ficar sozinho, porque durante o caminho senti um medo inexplicável de toda a humanidade, humanidade que se personificou no corpo de Rob. 

Fico só e sinto-me em segurança ao pensar que o pior medo é aquele que sentimos por nós próprios, o medo de não confiarmos na nossa mente, o medo de o chão desaparecer e nós cairmos, cairmos num poço sem fundo, muito fundo, para todo o sempre desligados da realidade consensual onde somos obrigados, por convenção, a viver porque nem todo o humano é ou pretende ser um animal, ou como Caroline me disse uma vez quando eu não conseguia encontrar uma determinada sequência numa cassete vídeo: «take it easy, you’re gonna make it.»

Tento então dormir. Olho para o escuro desta janela dando para o mundo exterior, sem cortinas nem estores, janela carregada, neste momento, com uma tira em vermelho escuro e espesso, difundindo-se no negro vertical do resto da janela à superfície do meu pesadelo. Pergunto onde estará o inferno se existir, se dentro desta sala ou fora desta janela dando para o mundo, a janela, sem sombra de dúvidas, é a porta que dá entrada. 

Sempre me perguntei se quando sonho sonho a preto e branco ou a cores mas, uma vez, o sonho veio a preto e branco como normalmente e, depois, acordei assustado após ver surgir a cor, a realidade fotográfica de um pequeno quadro que tinha feito anos antes. 

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John Moore



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