domingo, 27 de novembro de 2022

Eu disse: você é filho de cobra. Você é cobra também. Seu nome vai ser Urutu.

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Quando fabricamos o primeiro vinho da jurema, fizemos um festa muito alegre. Bebemos e cantamos muito. Era tudo alegre. Cantamos para os nossos mortos em Jacuípe, celebramos nossos guerreiros que tombaram naquele dia para salvar as nossas vidas. Quem cantava contava aquela história, e falava o nome de cada um dos nossos que tinham morrido.

Depois, fizemos muitas outras festas: a festa da colheita da batata, a festa do milho, a festa da mandioca, a festa da caça e também a festa da pesca. Eram muitas festas que fazíamos, alegres, com cantos e danças e muita bebida.

Os caçadores iam longe, reconhecer as distâncias, saber se havia curraleiros por aquelas regiões, porque eles podiam nos atacar de novo. Tínhamos visto que eles eram muito perigosos para nós. Ou eles faziam de nós prisioneiros para seus escravos, ou nos matavam. Eles pegavam nossas crianças e levavam pra suas fazendas. Cortavam nossas mãos, cortavam nossos pescoços, quebravam nossas cabeças com paus, com pedras. nos feriam com muitas balas que saiam de suas armas. Por isso, tínhamos medo que eles nos achassem.

Dinaman fez a cabana pra mim, longe de todos, pra eu poder esperar meu bebê, e depois, pra eu fazer meu resguardo. Me ensinou um caminho por onde eu podia ir sozinha até um lugar no Riacho dos Umbus. Eu ia lá, tomava banho e voltava. Ele trazia caça para eu comer, trazia peixe. Eu tinha panela, tinha ralo, tinha testo para assar a mandioca e fazer farinha. Todo dia eu cozinhava, eu moqueava caça, assava batata e ficava esperando o dia que meu filho ia nascer. Eu ia matar meu bebê e depois comer. Não ia jogá-lo na terra para as formigas comer. Ele ia voltar para o mesmo lugar de oonde tinha vindo, dentro de mim, onde bichos não podiam comê-lo.

Então chegou o dia. Eu estava sozinha quando ele nasceu. Mas na hora que ele nasceu, minhas mãos não quiseram que eu matasse. Meus dedos encolheram quando eu quis tapar sua boca e seu nariz. Eu escutei a voz dele. Ele chorava. Eu fiquei olhando pra ele. Era homem, mas não vi o homem branco nele. Ele era igualzinho aos bebês de meus parentes. Então eu pensei: ninguém vai saber, ele é igual aos outros. Só os olhos. Os olhos eram um pouco descorados. Não tinham o preto dos outros. Olhos de água de lagoa, ou puxando aos da cobra verde. Eu pensei: ele vai ser valente como uma cobra. Traiçoeiro como a cobra surucucu. Vai saber se esconder pra atacar o inimigo quando ele menos esperar. Eu arregalei os olhos dele com os meus dedos pra ver mais, e o meu coração tremeu.

Abandonei o plano de matar. Cortei o cordão com uma pedra e fui mergulhar com ele nas águas do riacho. Eu disse: você é filho de cobra. Você é cobra também. Seu nome vai ser Urutu.

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«O Língua», página 22 - 23

Eromar Bomfim

Edição VS, 2022



https://youtu.be/d2VvBLeCQ9w: «A voz que cura»


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