quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A cabeça limpa

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«Se os soldados limpam latrinas, eu também posso limpar a minha casa, ora que raios!»
Foi com estas palavras que Zulmiro se encarou lá bem no fundo da sua alma quando o senhorio lhe disse: «Sr. Zul, eu nem acredito como você consegue comer em cima desta toalha encardida, tem de ganhar brio ou arranjar uma mulher, o senhor ainda é novo, acho que você tem pouca estima por si próprio, sei que ganha pouco mas cinco euros numa loja de chineses fazem milagres, experimente e surpreenda-me no próximo mês.»
A Zulmiro retiniram aquelas palavras, fez delas um aviso, chegou a pensar que se não limpasse aquilo que designa por «a cabeça» poderia muito bem ver-se a morar debaixo da ponte, brevemente o senhorio nem conseguiria entrar em casa por causa do entulho respigado pelos cantos cheios de aranhas e moscas mortas, das baratas esmigalhadas pela bota atenta, da colecção de canudos de papel higiénico. Lembrou-se do que a mãe lhe dissera em pequeno sobre os ciganos que, há quarenta anos quando foram morar para o bairro pronto a estrear, puseram os burros à janela e a dormir na banheira e sim, Zulmiro disse: «Como os compreendo... e eu afinal pareço um deles, pareço um tolo a correr no meio da ponte comunicando afogueado com as estrelas por intermédio de um braço de chuveiro a servir de telefone e arrancado à lama e ao verdete do mármore da casa de banho... mas eles sempre viveram na natureza, junto ao pó da terra, sem água nem luz, nunca foram à escola, não têm geracionalmente a rotina de ir à escola aprender os conceitos que dizem nos irão servir no futuro... eles estão num processo de aprendizagem, de sedentarização e eu parece que estou num processo inverso de nomadização, a mim deram-me educacão, estudei e agora... ando a perder qualidades, isso é que é, o senhorio deu-me um aviso, vou ter de me pôr fino, os turistas podem alugar quartos, eu não, estou aqui em condições muito favoráveis, não consigo igual em nenhum outro lugar. Depois percebe-se porque a minha amiga desapareceu, foi isso que disse ao pessoal: olhem lá, lá por vocês acharem que a minha casa é um brinco, a verdade é que se houvesse uma gaja gira na qual eu estivesse interessado, e a convidasse a vir a minha casa, ela quereria ir fazer um chichi e assustava-se!» A Zulmiro tinha o senhorio dito: «Ela olhava, abria a porta, dizia-lhe que tinha uma cólica, desculpava-se, saía porta fora e nunca mais, senhor Zul, você a via.»
Zulmiro já uma vez tinha ouvido falar do ácido muriático, uma amiga usava-o na limpeza da sua cabeça, ele fez o mesmo. Primeiro passou no chinês e comprou uma escovinha de esfregar, depois foi à drogaria e explicou o seu problema, perguntou se tinham ácido para limpar cabeças, e a senhora que o atendeu recomendou-lhe uma garrafa de Gavecal, disse-lhe «sete partes de água e uma deste líquido», vendeu-lhe uma esponja Nossa Loja, e recomendou-lhe, afirmou-lhe mesmo que devia usar luvas porque a mistura líquida é ofensiva para a pele das mãos. Zulmiro sabia que tinha luvas em casa e por isso não comprou um novo par, fez mal porque em casa só encontrou a luva da mão esquerda, mas como bom epicurista disse «quem não tem cão caça com gato». O problema é que os gatos trabalham só quando lhes apetece e às gatas Zulmiro só lhe apetece que elas façam ronrom, que bebam e disfrutem. Elas andam longe e Zulmiro teria mesmo que fazer sozinho o trabalho de limpar a cabeça. Fê-lo num Domingo imediatamente após tomar o café das duas da tarde.
Zulmiro pegou num copo de plástico e encheu-o de água, despejou-o para um alguidar, e recontou sete vezes a operação, abriu a garrafa e despejou um copo no alguidar, vestiu com dificuldade a luva na mão direita e começou o trabalho. Ajoelhou-se, molhou a esponja no alguidar e começou a esfregar a cabeça lentamente. À medida que ia esfregando os minutos iam passando e ele ia-se lembrando outra vez dos ciganos, ia pensando: «Eu acho que os portugueses ciganos andam a ser endrominados pelas igrejas evangélicas, mais até pela Igreja de Filadélfia que pela igreja católica... se não veja-se o caso dos sapos, nunca percebi, uma vez perguntei e os vizinhos disseram que a coisa ganhou fama com a curta-metragem da Leonor Teles, nesse filme a cigana destrói os sapos que estão à venda na loja, dizem que os sapos metem medo aos ciganos, que eles deles fogem, e que é uma atitude racista e discriminatória pôr uma sapo em louça ou cerâmica à janela de casa... é Zul, tu que agoras limpas a tua cabeça, vês como os resíduos nos dentes, nos buracos do nariz se vão clareando aos poucos, esses olhos estão quase brancos, essa mosca no queixo já não é castanha escura como se fosse saída de uma cabeça jovem mas sim um cavanhaque de cor cã como ele é na realidade... eu na realidade perguntei-lhes o porquê dos meus amigos ciganos se sentirem discriminados por um sapo e eles falaram-me que houve um dia uma história em que um cigano rico tinha um stand de automóveis e oferecia crédito ao cliente mas... a coisa correu mal... os clientes conduziam os carros de chave na mão mas saldar os créditos não havia maneira de tal se concluir. Então ele próprio começou a dizer: vai-te cara de sapo, vai-te embora!, e começou a colocar louça de sapo no stand com fins decorativos e paradoxalmente com um fim igualmente exorcista...»
Durante à vontade vinte minutos, Zulmiro pensou neste assunto enquanto esteve a limpar a sua cabeça, ela agora estava a ficar um mimo, alva como a neve, riu-se quando deu conta que agora já dava vontade de sujar de novo, não se esqueceu de, como a drogueira lhe recomendara, verter um copo inteiro de Gavecal nas amígdalas da cabeça e deixá-la assim de um dia para o outro, de manhã era só dar uma puxada do autoclismo, lavar-lhe os dentes por assim dizer. Sentiu-se bem e contente com o seu trabalho, a cabeça estava tão bem lavada que parecia nova, que parecia viva, que parecia que inspirava, que podia ouvir as suas palavras de reflexão, lembrou-se que os antigos celtas cortavam a cabeça dos líderes das outras tribos e as empalhavam e as colocavam no altar de casa e com elas falavam.
Zulmiro sentou-se e começou a falar com a sua cabeça: «Mas os celtas desapareceram quando os romanos lhes mostraram o cavalo continental, os gregos pintavam as estátuas com cor e hoje isso não se faz, e também os ciganos estão a perder as suas raízes, a sua cultura ancestral, estão a deixar de ser pagãos para ser evangélicos, qualquer dia estão a votar nos seus próprios algozes, eu li um livro de um francês que foi iniciado na sabedoria esotérica pelos manouches em França -- um previlégio restrito a outros leigos e a ele dado por ter ajudado a salvar a vida de um curandeiro homem de leis da tribo --, e, se bem me recordo, no livro fala-se que o sapo ou a imagem metafórica de um sapo tem uma significação esotérica para os ciganos... olha, vou à estante buscar o livro de Pierre Derlon e procurar a frase certa.»
Encontrou na página 129 e leu em voz alta: «O sapo, como o mocho e o morcego, é um dos animais favoritos dos feiticeiros. Representa a sabedoria, a luz e a feminilidade.» Zulmiro reflectiu: «A sociedade está a normalizar todo o mundo, qualquer dia as ciganas já nem a sina sabem ler para conseguirem ganhar uns trocos, com a tentativa de normalizar todo o mundo estamos a criar pedintes à porta do supermercado.»
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Claudio Mur

[ A citação de Pierre Derlon é retirada do livro:
''Tradições ocultas dos ciganos'', edição Livraria Bertrand, 1977 ]


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