sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Ik ben a zombie



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São aproximadamente cinco horas da manhã. Deixei o Armenia em plena paz, hoje diverti-me sozinho, outra vez Muslimgauze e os grilos na cabine de DJ. A chuva continua a cair miúdinha e os poucos candeeiros intactos reflectem-se nas poças de água existentes no passeio. Sei que estou sem rumo definido mas estou cansado, vou-me sentar num banco do jardim. Vou enrolar um cigarro. Tenho, no entanto, a sensação de que alguém me espia, alguém que poderão ser muitos, três mil pessoas a apontar o dedo ao consumo de fumantes no local de trabalho. É melhor ter cuidado.
C deita-se ao comprido enrolando-se na sua longa camisola cinzenta. Quando em estado de sonolência, o sino comeca a tocar a Sexta sinfonia, segundo movimento de Glenn Branca. Quando adormece entra num cenário artificial. Está num leito de madeira usando uma camisa fina, branca com folhas à caubói e umas calças pretas de flanela. Está descalço. Numa fracção de segundo, uma pequena luz branca toca-lhe nas virilhas mas logo se esvai para longe. Então, C acorda sobressaltado olhando para todos os lados, para as seis barreiras que o separam do espaço real. Nem uma só janela. Ao longe, nos cantos dessas barreiras minúsculas fosforênciais, formas que sugerem pirilampos comecam a luzir. Ao princípio inofensivas, depois começando a agitar-se. Alongam as suas espadas de laser em várias direcções mas sempre aproximando-se, os tentáculos chegando perto. Nao sabe o que fazer. Nem uma só janela. Uma luz verde atinge-o no ombro, é a sua cor favorita, a marca fica registada, torna-se o símbolo de uma primeira acção. Um olho verde. Um risco verde imiscui-se na cor branca da camisola que transparece a cor vermelha do seu corpo. Uma voz de igreja diz-lhe: eu perdoo-te C, eu perdoo-te, eis a minha benção. Não sabe o que fazer. Sente calores frios pelas costas abaixo. Nem uma só janela. Agora é a serio. As luzes lançam-se de frente para ele e sem lhe tocar, vão-lhe tirando as medidas exactas, esquadrinhando ângulos, amplitudes. Já não está deitado, sentou-se na borda do leito de madeira. Puxa de um cigarro mas uma luz vermelha tira-lho da boca. Compreende então que está perdido. Nem uma só janela. Repara que, do seu lado direito, um fusil de Napoleão espera que ele lhe toque com carinho. Os calores frios então invertem o sentido da sua marcha, encontrando-se agora ao nível do pescoço. Dentro de breves momentos estarão já a subir pelas faces albinas em direcção às poucas madeixas que ainda possui. Surgem então os tambores. Vêm do lado daqueles poderosos lasers. Começa a limpar o fusil. Repara que só tem um cartuxo, tem ainda, para o caso de precisar, a baioneta Justincase. A luzes continuam a fazer-se notar em movimentos tipo tiro e fuga. Faz tenção de colocar o velho fusil no ombro direito e olhar pela mira telescópica uma rua calcetada ao fim da tarde e ou a fachada de uma casa de pedra. Desce a rua sempre com os olhos na mira, apontando às luzes que continuam a surgir. Pára numa fonte. Do outro lado a casa acabou e tu e ou ele pode ver uma cerejeira com pequenos gémeos idênticos, idênticos e violeta e púrpura, um menino e uma menina. Então, uma luz surge uma vez mais, uma luz púrpura e ele não resiste mais. Foca o alvo e bang... um pequeno melro cai em espiral a seus pés junto aos cantos da fonte. Continua a olhar pela mira e vê esse melro transformar-se num gato bebé com um pequeno ponto cruz no seu peito, o ponto de mira verifico eu. Quando a ferida sara, levanta-se e ronronando vai beber um cálice de Porto e desfrutar deitando-se a seus pés, pedindo alimento enquanto C olha de pé o fusil, que sendo comprido é o seu terceiro membro. Após uma breve interrupção, as luzes voltam, surgem agora aos milhares. Começa agora a suar de verdade. O fusil roda no ar e na ultima extensão do seu corpo, as luzes atingem-no em todas direcções, electrochoques cegam-no momentaneamente, destroem-lhe os nervos. No entanto, não desiste e continua a apontar o mais que pode, consegue até que as luzes se extingam por momentos, sendo substituídas por tambores em compasso de espera. Agora, tambem ele espera, ouve, está sentado numa sanita imunda. Tem o fusil em pé, é o seu terceiro membro, ele espera a descarga, pressiona o esfíncter. Os tambores deixam de tocar e ela surge, a luz negra, o eclipse total. Então, C levanta o fusil, vira-o de encontro a si próprio com a baioneta mesmo à frente do rosto. Ela, esta luz é agora parte constituinte do fusil e pretende engolí-lo. Um ultimo compasso, um ultimo tambor. R puxa para dentro de si a baioneta, a luz apaga-se e tudo termina.
C acorda do banco de jardim todo encharcado e cheirando mal. A seu lado, vê no chão estilhaços de um candeeiro preto. Passa o coveiro com a sua lamparina antiga a óleo. C olha para o relógio. Seis horas da manhã. Decide segui-lo, ele vai completamente nas nuvens, nem parece reparar. Entretanto, C recuperou os velhos sapatos e a camisola cinzenta. Faz agora planos de enrolar um cigarro enquanto sobe a rua atrás do coveiro. Com uma medalha de cem metros olímpicos do fundista Bolt na lapela, este entra já numa álea em terra batida rodeada por árvores enormes, que não consigo identificar e que dão acesso ao cemitério. Do outro lado da rua, vê-se a silhueta de um megaempreendimento de alojamento local com piscina privativa. Quando finalmente C o apanha, o coveiro começa a falar:
Ontem, o meu filho contou-me uma história que ouvira sobre o malogrado regresso de um homem após uma longa estadia no éter. Aterrara no mesmo lugar de onde tinha partido trinta anos antes mas agora nada de pompa ou circunstância. Tudo vazio. À saida, apenas viu uma pessoa velha de bengala. Pensou em chamar um táxi mas desistiu. Comprou a bengala ao velho. Seguiu a pé decidido a encontrar alguém que lhe explicasse o suicídio. Nem sem sequer um ramo de flores. Finalmente, entrou na cidade às dez da manhã, a coelhinha da páscoa vinha na sua direcção, ouviam-se os pássaros saindo dos ninhos numa palmeira, fugiu dela atravessando a estrada fora da passadeira, encaminhou-se por um carreiro em terra, que cortava o caminho, evitando o semáforo. Ao virar a esquina à direita, viu um vulto de cavanhaque e careca mas não o reconheceu logo, ficou com a impressão que o conhecia de algum lado. Foi uma visão de milisegundos. Viu-lhe a t-shirt preta que nas costas parecia dizer Polícia, estava acompanhado de outro homem. A visão foi momentânea e aterradora, fez por não ver mais nada, imaginou uma rusga, que andariam eles cuscando? Passou por eles e, à sua frente, outro elemento os tinha deixado, pensou nele como um paisano indo averiguar as redondezas. Segundo o que o meu filho me disse, o homem, o cientista que voltara do éter, durante trinta anos não tomara a medicação simplesmente porque não havia farmácias no éter. Atacado por delírios paranóicos de perseguição e tendo um flashback ao ver os três agentes de autoridade, ficou petrificado por momentos quando ouviu um deles chamar, viu o terceiro olhar para trás para os seus colegas e também para ele. Foi como se também o homem de cavanhaque o conhecesse. O nome pareceu-lhe um som familiar mas antigo e distorcido, seria eu quem ele queria interrogar? Diz o meu filho que o homem escreveu umas frases assim e meteu-as num envelope que mais tarde foi encontrado. Ficou paralisado mentalmente mas isso não o impediu de ignorar o chamamento e seguir caminho. Não se podia denunciar, não podia denunciar ninguém. Caminhou pela rua apoiado pela bengala e tropeçou numa velha vigorosa que se dirigia para a igreja, de olhos cegos falando-lhe em modos incompreensíveis. Dizem que era a sua única mãe, diz o coveiro fazendo uma pausa. Então, continuou a andar estupefacto, viu três sombras verdes saindo das lojas de conveniência. Resolveu ignorar. À sua frente, viu três velhos vestidos de fato e gravata, mostrando cartões a meninos e dirigindo-se igualmente para a igreja. Pensou em igreja e pensou em pedofilia. Parou nos semáforos dando prioridade aos táxis amarelos e laranjas surgindo desgovernados. Quando finalmente a sua prioridade verde surgiu e atravessou aquela rua, parou numa montra para ver uma serie de quadros com o nome de Cenas de um covil. A princípio, não quis querer mas os seus olhos não o podiam enganar com tanta certeza. O homem, continua o coveiro, ainda não pronunciara uma unica palavra. Mesmo na compra da bengala, avaliara primeiro e oferecera um valor generoso, limitara-se a apontar para a bengala com uma mão e a colocar as notas no bolso do velho. Não dissera uma única palavra, não lhe saíra sequer um ai, um pio que fosse, um insulto contra a desolação, nada. Foi esse o erro. Quando gritou de espanto ao ver aqueles quadros, não reconheceu a sua própria voz, aquela voz doce que a sua mulher, de cabelos ligeiramente pretos, lhe dissera que ele possuira. Então, acreditou que era mesmo ele, aquilo que via no vidro quebrado da montra era ele. Não havia um pingo de dúvida, não havia um moks para fumar, não havia escape para a angústia, nunca mais dormiria oito horas seguidas, nem mesmo recorrendo aos mesmos narcóticos que assassinaram o Prince. Uma cópia, uma imagem, um ser disforme e retorcido, sem dentes, sem cabelo e verde, muito verde. Destroçado, continua o coveiro, decidiu largar a bengala, já não precisava dela, ultrapassou a ponte e chegou a estátua de Cristo, subiu a custo lá cima, observou com calma, com toda a calma possível do momento o espaço, tão diferente de tudo aquilo que deixara para trás em prole da descoberta cientifica, e atirou-se. Morreu na cidade vermelha. Foi transladado para este cemitério.
C interrompeu perguntando: essa historia foi inventada ou está escrita?, que idade tem o seu filho, é albino?
O coveiro respondeu que todos o somos um pouco mas que isso não passa de um pormenor que em nada pode alterar os propósitos pelos quais você me seguiu.
Havendo dito isto, parou num túmulo e disse: aqui pode ver com os seus próprios olhos a campa desse homem que nunca foi reconhecido, pode ver também que, por ele, velam dia e noite, consegue ver não consegue?, um anjo com sombra e um pote de flores albinas.
Sim, vejo um anjo azul, lindo como nunca tinha visto antes. Obrigado.
O coveiro sorriu da crendice e da humildade presente neste agradecimento, esteve uns momentos olhando para C avaliando o seu coeficiente de inteligência e pensou que Lombroso estava definitivamente errado. Sacou, então, de um charuto havano, deu dois bafos profundos, osculou ao som dos pássaros madrugadores porque sofre de doença pulmonar obstrutiva crónica e resolveu-se finalmente, abriu o jogo de modo paternalista.
O homem, sabe, passara uma temporada na Holanda, a única frase que conseguiu aprender foi esta que está no epitáfio, ora veja, veja se consegue ler, o musgo enferrujou as letras, e sabe que mais, quem contou a história ao meu filho foi um amigo numa noite de borracheira, foi o filho do homem e de uma dama evangélica, o filho nunca assumido pelo pai, este homem que morreu nunca soube que foi pai duas vezes. Este homem era violento em casa, na realidade não era nada um cientista, era um mero transportador de malas com dinheiro e sabe-se lá que mais, bares de alterne em Sta onde grupos de espanhóis pedissem para trocar as pesetas... ele saberia que as pesetas e os escudos lá ficariam, fumadas e bebidas, acordariam na tarde do dia seguinte dentro da sua mala. Ele, na realidade, fugiu para a Bósnia, ofereceu-se como enfermeiro numa milícia de ciganos. E fugiu porquê? Porque a mulher baptizara a primeira filha sem lho dizer, sem ele próprio saber o dia. Pois, quando soube nesse mesmo Domingo de baptizado, desfez os cunhados com as próprias mãos. E fugiu, já estava a apresentações semanais por violência dioméstica, um dia faltaram-lhe trinta contos da mala e verificando os passos do dia, lembrara-se de perguntar à mulher, a mulher cuspiu-lhe na cara: sim fui eu, aliás não precisas de tanto graveto. Ele raivoso, deu-lhe uma chapada tão violenta que a deixou com um hematoma, depois bateu no próprio irmão que acudira aos gritos da cunhada, o homem... era um mastodonte, desfizera com um cepo de carvalho um grupo de vizinhos que jurara vingança e lhe fizera uma espera na linha de comboio, quem os fodeu foi ele. Depois fugiu. E não voltou do éter coisa nenhuma, voltou simplesmente num avião repatriando os refugiados de guerra, o seu advogado dissera-lhe que seria amnistiado, o consulado pagou as despesas. Sem cheta e deprimido e sem notícias de familiares vivos, a filha morrera num acidente de viação, o homem, quando soube, saltou da janela do terceiro piso do miradouro sobre o rio. A mãe contou finalmente ao filho a verdade sobre a identidade do seu pai e este filho recolheu os pertences e mandou escrever o epitáfio, este que vê aqui: Ik ben a zombie.
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Claudio Mur

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