quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Eliminadora de Milionários


'Eliminadora de Milionários'
desenho a grafite em papel de 300grsm, 50cm por 70cm
2019 por ZMB




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A divisão social assenta, tanto quanto no estrito rendimento, na percepção do mundo que o lugar ocupado na pirâmide permite: as disposições são condicionadas pelas posições. A penúria devasta o espírito ao mesmo tempo que o corpo. O seu poder prende-se com a submissão daqueles sobre quem ela pesa. Transmite-se como uma herança e inúmeros ódios remontam a humilhações infligidas em épocas recuadas, espinhos cravados na mente e legados de geração em geração. A pior pobreza é a do espírito. Aliás, a miséria nem sempre apresenta sinais exteriores. Crianças de barriga vazia podem arvorar roupas ou sapatilhas de marca, fachadas imponentes podem dissimular pardieiros onde os inquilinos se amontoam a dez por quarto, um vestido luxuoso um pouco fora de moda pode não revelar que se trata de uma prenda da patroa. No entanto, aquém de um certo limiar, as condições mínimas de manutenção da dignidade fazem notória falta. Há populações inteiras de refugiados. Ora, aquilo que nas sociedades ricas constitui tão-só uma margem -- de que os Estados por assim dizer não se preocupam, deixando as associações de caridade tratar do assunto -- pode representar, numericamente, a maioria dos habitantes de um país do «terceiro mundo». E essa miséria é praticamente sem solução: atingindo uma população rural desfasada em relação ao modelo social urbano, afecta a consciência e a imaginação, logo a liberdade de acção, no sentido sartriano de escolha, e a possibilidade de sair dessa situação. A miséria, no melhor dos casos, reproduz-se. Inventa as suas próprias regras sociais com vista à sobrevivência, não hesitando em infringir os códigos civis, mas acabando sempre por sofrer com isso. Há prisioneiros que vivem melhor na choldra do que no seu pardieiro! Aqueles sobre quem ela se abate só possuem a sua força de trabalho, cada vez mais inútil num universo de alta tecnologia. Yi era pobre no Japão, mas vai descobrir na Argentina uma míngua que ela nem suspeitava. No bairro de lata, toda a gente se levanta cedo: as crianças para irem vasculhar no lixo da descarga e recuperar, antes que o sol acelere a putrefacção ao aquecê-los, os restos de comida despejados durante a noite; os homens para irem alugar ao dia os braços aos empresários das obras públicas que os recrutam à saída da cidade; as mulheres para irem buscar água de que necessitam diariamente em grandes bidões de plástico. Woribata vai ao mercado abastecedor para respigar alguns peixes de calibre insuficiente para confeccionar o seu sushi. A partir das seis horas, a polícia patrulha as ruas para garantir que esses miseráveis não se passeiem pela cidade quando burgueses e funcionários irão, por sua vez, para o trabalho. A cidade pode continuar entregue às suas ocupações habituais, ignorando, ou fingindo ignorar, a existência dos seus bas-bonds e respectivos habitantes.
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página 70

'O acaso abolido'

Saguenail

tradução e posfácio de Regina Guimarães

edição Editora Exclamação

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