domingo, 27 de outubro de 2019

Willalee, o Cantor de Gospel e a menina Marybell

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Willalee soluçava de olhos fechados, baloiçando-se de um lado para o outro sobre os joelhos. O Cantor de Gospel, afligido pela crescente certeza de que era o responsável pela situação de Willalee, olhou fixamente para ele, incapaz de dizer nada. Por fim, agarrou Willalee pelos ombros e disse:
-- Sossega, vá. Sossega. Ouve, eles não te vão fazer nada. Estás a ouvir? Eu estou contigo. Agora pára com isso e levanta-te. Eu estou contigo.
Willalee levantou-se e sentou-se na beira da cama de ferro. O Cantor de Gospel foi até à janela e olhou para fora. Por baixo, ao longo de todo o comprimento de Enigma, a multidão redemoinhava agora, num marulhar de cor e som. Por detrás dele, Willalee continuava a falar, num tom uniforme e pesaroso.
-- Tu sempre tiveste comigo. Desque fui salvo, nem um instante tiveste longe de mim, nem um. E eu tou salvo, percebi logo isso quando foi que assucedeu. E sei que continuo a tar salvo, é o que diz no Evangelho. Mas tenho o sangue da menina Marybell nas mãos... no coração.
-- Ouve -- disse o Cantor de Gospel, voltando costas à janela e desejoso de reconfortar Willalee, de lhe contar a verdade, embora ciente de que a verdade causaria ainda mais dano do que aquela fantástica teia de mentiras. Mas o que viu ao virar-se tornou desnecessária qualquer palavra. Ali, sobre a cama de ferro, estava uma enrugada fotografia sua, cuidadosamente alisada, mas velha e a desfazer-se nos vincos. Willalee, cujos lábios se moviam, continuando a falar, estava a olhar não para o Cantor de Gospel, mas para a sua imagem.
O Cantor de Gospel atravessou devagar a cela até à cama.
-- Onde é que arranjaste isso?
Willalee não ergueu os olhos da fotografia.
-- ... ela que fez tudo. Se ela num tivesse vindo no bairro eu continuava a ser a pessoa que era. Um preto ruim, com cortes de navalha nas costas e que se deitava com mulatas. Ela mostrou-me o caminho. -- Enquanto falava, o dedo caloso, tremendo, de Willalee traçava o contorno da cara do Cantor de Gospel na capa da revista.
-- Ela ajudou um preto ruim a endireitar, e depois disso nunca mais cortei-me nas costas, parei de invocar o nome de Deus em vão e de dormir com mulatas. Ela falou-me do Cantor de Gospel. Falou-me como era. A menina Marybell, a menina Marybell. Ela que arranjou a igreja. Que preparou tudo. Que pôs tudo a andar. A menina Marybell. -- Olhou momentaneamente para as suas mãos, voltando as palmas para cima, enquanto abanava a cabeça, ainda a falar, numa voz sonolenta e monótona. -- Congregar. Vamos congregar na igreja quando ele voltar a casa. Arranjamos a igreja, temos tudo pronto e quando ele chegar vai entrar na igreja, vai olhar à volta e dizer tá muito bem. Sim, tamos preparado pra quando ele voltar a casa. Sim. A menina Marybell disse logo que souber quando ele chega vem avisar a gente. Veio a meio da noite. Um home nunca sabe o dia e a hora. Ela... -- Fez uma pausa, inclinando ligeiramente a cabeça, como para ouvir algo. Espetou um dedo no centro da testa e pressionou. -- Ela disse: vim pra te contar a verdade sobre o Cantor de Gospel. Eu disse: quando ele chega? Ela... -- Um cinzento de cor de cinzas humedecidas perpassou pelo rosto de Willalee. Uma veia inchou-lhe na fonte. -- Não -- disse, num sussurro. -- Eu sou pastor. Eu tou salvo. -- Voltou a olhar a flácida fotografia do Cantor de Gospel. -- Não, Senhor, não. Ela disse: Foste salvo com base em falsidade, a igreja é falsidade, o Cantor de Gospel é um falso. Disse: Deus é um home coas calças em baixo, Deus é uma braguilha desabotoada. Ela disse: o Cantor de Gospel... e eu cravei nela o picador de gelo. Agarrei-le pelo pescoço e espetei outra vez, espetei, espetei, espetei... -- Desatou a soluçar, com a cara enterrada na cama e os punhos cerrados.
Mais do que ajudar voluntariamente, o Cantor de Gospel caiu de joelhos. Colocou o braço em volta de Willalee.
-- Por favor -- pediu. -- Por favor.
Willalee ergueu os olhos. Parara de tremer. Já não chorava. Parecia até que ia sorrir.
-- Eu sabia -- disse. -- Eu sabia que contigo ia descobrir o porquê que matei a menina Marybell e fazer as paz co Senhor. Agora tou pronto. Agora já ninguém pode magoar-me porque agora sei o que fiz e sei que ofendi o Senhor. Vou pra casa.
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páginas 212 - 214
'O cantor de gospel'

Harry Crews
tradução de José Miguel Silva
edição Maldoror

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