quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Estas almas feitas de nuvens

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Estas almas feitas de nuvens dão o retrato fiel dos homens e animais mortos, no próprio instante do seu passamento. Estranho é o facto de, no mesmo paraíso, não reinar a paz e, pelo contrário, continuarem as lutas. As mais diversas raças das mais diferentes épocas entregam-se a lutas no céu, ferem-se e matam-se. Das feridas profundas, juntamente com o sangue branco das nuvens que se propaga pelo céu, sai um novo ser. O nascimento incessante destas almas-nuvens realiza-se também através dos narizes, das bocas, de todos os orifícios dos corpos em perpétua transformação.
Estas imagens são dramáticas.
Do local onde se encontra não vê a parte superior do céu, porque a porta que dá para o terraço não é suficientemente alta. Nesse espaço oculto aos seus olhos, supõe, como noutros tempos, que está Deus. Como se hoje fosse proibido contemplá-lo. Por essa razão deixa-se enfiar mais fundo nas almofadas e inclina a cabeça um pouco para trás. Nesta nova posição em que ganhou mais alguns centímetros, descobre, lá longe, lá no alto, uma mão gigantesca que se estende sobre a terra como que para a proteger. A mão de Deus? Porque não mostra o seu rosto? A mão transforma-se na cabeça e pescoço de um crocodilo com um único olho maléfico. O crocodilo volta a ser mão, depois a mão crocodilo. Compreende que o crocodilo vigia o céu.
Muda mais uma vez de posição a fim de ver o que encontra acima do crocodilo. Descobre o rostozinho de um actor muito sobredotado, um rosto em transformação permanente. Será Deus um palhaço?
O rosto adquire as feições de Chaplin.
Depois as de Hitler. Segue-se uma longa série de cabeças que não conhece.
Dirige o olhar mais para baixo, para as nuvens inferiores, e vê a procissão solene e silenciosa dos heróis mortos na infância: tribos de índios! Nadam com os pés para a frente; alguns são transparentes, outros opacos e plásticos. E vê os judeus torturados até à morte no tempo dos nazis. Até ao cair da noite esquadrinha as nuvens e sabe que nesse preciso dia se encontra sobre os telhados das casas do mundo inteiro uma sociedade de seres eleitos, os quais, tal como ela, são nessa noite testemunhas do passado.
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,pag 132
"O Homem-Jasmin"
Unica Zürn
edição &etc


Os judeus deste texto podiam ser os curdos de hoje.
Conheci um curdo quando em 1998 estive na Irlanda.
Combatera o Sadam e refugiara-se em Inglaterra.
Depois conheceu uma irlandesa que trabalhava connosco, casou-se.
Quando voltei para Portugal ele estava quase a obter a dupla nacionalidade.

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