quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A jangada sume-se na profundidade das loucuras antiquíssimas

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Meter palavras em papel metido em canto: não sei como isso possa ser sem que o escrito saia talhado, leite lanche de vermes.
Recordo. Tempos em que temi ser diferente. E mais: o sossego sol de Abril quando percebi que o era mesmo, segundo as leis de ser pessoa. Só que muitos poucos ousam abertamente as consequências, e são então explosões ou os pequenos golpes da cuidadosa, afiada sacanice. Quem frequentou determinados casamentos, ou tavernas em noites de jorna, viu.
À parte isso, a cada qual um destinar-se. E assim desenham-se impressões intransmissíveis, digitais. As minhas também, talhadas por sucessos em que a própria vontade não jogou, e me safaram dos hábitos do canto em coro. Reforços recebidos para o concelebrar, mãos de estar-com dadas a algumas criaturas que me apareceram, a quem apareci. O meu saber o mundo desde o começar: situação de naufrágio. Foi como se nascesse a bordo de jangada onde pessoas inseguras andassem reinando ao estamos-num-paquete. Vi água entrando como em passador, e lá-vai-d'eu, nadar até trepar noutra jangada. Quando esta segunda geringonça naufragou, foi nova natação até que entrei numa terceira. Já estou (momento actual) de novo a dar aos braços e às pernas; que a jangada III se está sumindo na profundidade das loucuras antiquíssimas.
De todas essas reproduções miniaturais d'O Naufragar ficou-me a memória perfeita do que amei: os camaradas de jangada e risco, meu lote no respiro. Ficou-me pois o horror de ver a maioria deles ir ao fundo por carência de saber apredejar de riso o tenebroso. Vi-os cair a pique no abismo como caranguejos enfeixados uns nos outros.
Não sei se houve Barca inicial, acho que não. Acabaremos por construir alguma? Ignoro, e não é desse iinterrogar que me vem rasto. Sinto: nadar para aguentar o próprio do corpo, e então cresce conjunto de promessas no dar e receber dos mútuos, múltiplos impulsos. Vou mais: da fortaleza em companheirismo se descobrirá talvez nosso destino, que o passado profetiza. Peixe deu animal de seco, anos depois nós-mesmos. Homem é apogeu desértico. Entrevê distantes águas e talvez seja miragem, talvez não. Possível que o oceano venha, e nós a ele. E água e gente uma misturação de respirar completo, mudança do presente noutras luzes por sumidos o passado e o futuro.
Donde: cercado por detritos de jangadas e viventes esbracejando à tona das areias, parece-me que o meu nadar tem exacta relação com as metidas frases no papel - a outros destinado. Nas noites mornas do Quartier Latin, nos intervalos entre fogo e sangues, quando um vagabundo músico toca aceitavelmente, o grupo silencioso que se forma no passeio em escuta fica, por momentos, reunido mediante a audição dos mesmos sons de jazz, anónimo.

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,página 113

'A noite e o riso'
Nuno Bragança
Moraes Editores,
3ª edição 1978

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