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«Não posso acreditar!» As palavras saltaram-lhe espontaneamente. Ele não fazia a menor ideia de como foi assustador ouvi-las. Tive uma sensação esquisita de tontura, e tapei os olhos com a mão. Aquilo tudo invadiu-me, o medo da loucura, de não me acreditarem. Não sabia o que dizer, como lho dizer. Mas ele com certeza adivinhou, pois acrescentou, passado um instante: «É claro que eu acredito em si, Menina Spencer, se mo está a dizer.»
Mas os seus olhos estavam perturbados quando os encarei.
«Ninguém acredita na maldade até a encontrar cara a cara. Eu nunca tinha acreditado.» Tremia e mal pude acender o meu cigarro. Ele tirou-mo o isqueiro da mão e acendeu-o por mim.
«Por favor, Menina Spencer, não fique aborrecida. Eu não fazia ideia, é claro, de que o meu esforço para ajudar resultasse mal.»
«Não resultou... só que... é que levaram o Standish e ele teve uma morte tão solitária na ambulância. Senti-me responsável. Os inspectores já não permitem que pessoas tão doentes fiquem aqui. E está certo. Só que elas agora odeiam-me.»
Foi um momento terrível. Eu senti que lhe arruinava a visita, a ele e a mim também. As lágrimas caíam-me pelo rosto como chuva. Não pude evitá-las. «Nada pode mudar aqui,» consegui dizer quando me controlei. «É um mundo trancado.»
«Não tem de ser,» disse ele com firmeza. «Da próxima vez que a Lisa cá vier, há-de entrar nem que seja à força. Isso posso garantir.»
Para mim tinha sido uma recaída violenta na dor que eu tinha mantido afastada desde a morte do Standish. Mas com ela veio um rasgo de visão. Era que aqui as coisas podem mudar, mas só através de um acto violento. Se eu perder a cabeça põem-me no escuro outra vez. Mas se eu um dia deitar fogo a isto, posso abrir este mundo trancado - ao menos a morte pelo fogo, que é melhor do que a morte por maus cheiros e bacias de cama e mentes perdidas em corpos que definham sordidamente. Tive vertigem por causa deste rasgo. As lágrimas estancaram de súbito e endoideci de alegria, falei que me fartei, contei-lhe do John, fiz-lhe uma crítica bem humorada ao enorme romance que me tinha trazido, como uma caricatura forte mas aberrante da vida - aquilo em que as pessoas querem acreditar, não o que é verdade.
E isto levou-nos de volta à velhice e à morte. E por fim ao meu cavalo de batalha, a maldade, e o que fazer quando estamos perante ela, como lidar com ela.
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, página 83
'Prepara-te para a morte e segue-me'
May Sarton
Edição Livros Cotovia
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