terça-feira, 28 de abril de 2015

«Vou sonhar com a minha cura.»

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-- Estou doente, mas não muito -- disse o tio de Catherine Tekakwitha.
-- Deixa-me baptizar-te -- disse o Vestido Negro.
-- Que nem uma gota da tua água me caia em cima. Já vi muitos morrerem depois de tu lhes teres tocado com essa água.
-- E agora estão no Paraíso.
-- O Paraíso é um sítio bom para os franceses, mas eu quero estar entre os índios, porque os franceses não me hão-de dar de comer quando eu lá chegar, e as francesas não se hão-de deitar connosco debaixo dos abetos frondosos.
-- Temos todos o mesmo Pai.
-- Ah, Vestido Negro, tivéssemos todos o mesmo Pai e nós havíamos de saber fazer facas e casacos tão bem como vocês.
-- Ouve, ancião, tenho, na cova da minha mão, uma gota mística que te pode salvar da eterna maldição.
-- E eles caçam no Paraíso, fazem a guerra, vão a banquetes?
-- Oh, não!
-- Então eu não vou. A preguiça não faz nada bem.
-- O fogo infernal e os demónios aguardam-te para te torturar.
-- Porque é que baptizaste os nossos inimigos Hurões? Hão-de chegar ao Paraíso antes de nós e correrem connosco quando lá chegarmos.
-- Há lugar para todos no Paraíso.
-- Se há assim tanto espaço, Vestido Negro, porque é que guardas a entrada tão ciosamente?
-- Já não nos resta muito tempo. Irás certamente para o Inferno.
-- Temos muito tempo, Vestido Negro. Nem que eu e tu falássemos até a doninha ser amiga do coelho, não havíamos de quebrar a corrente dos dias.
-- A tua lábia é diabólica. O fogo aguarda-te, ancião.
-- Sim, Vestido Negro, uma fogueira agradável, à roda da qual estão sentadas as sombras dos meus parentes e antepassados.
Quando o jesuíta o deixou, o tio chamou por Catherine Tekakwitha.
-- Senta-te ao pé de mim.
-- Sim, tio.
(...)
-- Escuta e olha. O que te vou dizer não pode ofender deus nenhum, nem o teu nem o meu, nem a Mãe da Barba nem a Grande Lebre.
-- Eu escuto-o.
-- Quando o vento me abandonar as narinas, o corpo do meu espírito vai iniciar uma longa viagem até casa. Olha para este corpo engelhado e curtido enquanto te falo. O belo corpo do meu espírito vai iniciar uma viagem difícil e perigosa. Muitos não chegam ao fim da viagem, mas eu sim. Vou atravessar um rio traiçoeiro em cima de um tronco, enfrentando os rápidos tumultuosos que procurarão atirar-me às rochas escarpadas e o cão que me vai morder os calcanhares. Depois, hei-de continuar por um estreito caminho, onde as pedras dançam umas contra as outras, e muitos serão esmagados, mas eu hei-de dançar com as pedras. Olha para este velho corpo Mohawk enquanto te falo, Catherine. À beira do caminho há uma cabana de madeira. Na cabana vive Oscotarach, o Fura-Cabeças. Inclinar-me-ei perante ele para que me separe o cérebro do crânio. Faz o mesmo a todos os crânios que por ele passam. É a preparação necessária para a Caçada Eterna. Olha para este corpo e escuta.
-- Sim, tio.
-- O que vês tu
-- Um velho corpo Mohawk.
-- Muito bem. Agora cobre-me. Não chores. Eu não vou morrer já. Vou sonhar com a minha cura.
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, página 128
"Belos vencidos"
Leonard Cohen
Traduçao de Margarida Vale de Gato
Edição Relógio d'Água, 1997




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