quinta-feira, 4 de junho de 2015

Mais do que admiração e quase pura veneração:
«Podia fazer dele [de mim] o que quisesse.»

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-- E o canto?
-- Não gosto muito de cantar. Aprendi algumas canções tradicionais, evidentemente, enquanto dançava, e canto-as sofrìvelmente; mas quanto às novidades tenho de me limitar ao que oiço na rádio e nunca me sinto segura com estas imitações. Tenho a certeza de que se rirá das minhas interpretações pessoais! Além disso, quando canto para alguém que conheço bem falta-me sempre a voz. É muito melhor quando estou na presença de estranhos: mais firme e mais ampla.
(...)
-- Com que então a fazer-se caro? -- gracejou Komako, cujo lábio esboçou um movimento encantador, ao mesmo tempo que colocava sobre o joelho o samisen e, com o olhar grave, transformada noutra pessoa, não teve mais olhos senão para a partitura colocada à sua frente. -- Desde o Outono que ando a preparar esta música -- afirmou.
E foi uma canção de Kanjinchô que ela se se pôs a tocar.
Instantâneamente, Shimamura sentiu-se como que electrizado, percorrido por um grande arrepio que lhe pôs todo o corpo como pele de galinha. Parecia que as primeiras notas cavavam um vazio nas suas entranhas, vazio esse onde vinha repercutir-se, nítido e puro, o som do samisen. Havia nele mais que admiração: era uma estupefacção que o havia derrubado como um golpe bem ajustado. Levado por um sentimento que estava perto da pura veneração, submerso, afogado num mar de mágoas, comovido, perdendo o pé, incapaz de resistir, só podia deixar-se levar por aquela força que o arrastava, entregando-se sem defesa, com alegria, ao bel-prazer de Komako. Podia fazer dele o que quisesse.
Mas como podia ser?
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, página 76
"Terra de neve"
Yasunari Kawabata
Tradução Armando da Silva Carvalho
Edição Publicações Dom Quixote


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