segunda-feira, 20 de julho de 2015

Da adolescência de Gargântua

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Dos três aos cinco anos, Gargântua foi alimentado e instruído com toda a disciplina que convinha por ordem de seu pai, e passou esse tempo como as crianças do país, ou seja, a beber, comer e dormir, a comer, dormir e beber, a dormir, beber e comer.
Constantemente rebolava na lama, mascarrava o nariz, lambuzava a cara, rompia os sapatos, bocejava às moscas, e corria atrás das borboletas, cujo império pertencia ao seu pai. Mijava em cima dos sapatos, borrava a camisa, assoava-se às mangas, deixava cair o ranho na sopa e chafurdava por toda a parte, e bebia da pantufa, e gostava de esfregar a barriga com um cesto. Aguçava os dentes num tamanco, lavava as mãos na sopa, pintava-se com um copo, sentava-se entre duas cadeiras de cu no chão, cobria-se com um saco molhado, bebia enquanto comia a sopa, comia biscoitos sem pão, mordia a rir, ria a morder, cuspia para dentro da bacia, rebentava de gordo, mijava para o sol, e para fugir da chuva, escondia-se dentro de água, malhava o ferro quando estava frio, fazia castelos no ar, fazia-se bonzinho, vomitava as tripas, resmungava para dentro, voltava à vaca fria, fazia tudo ao contrário, batia no cão à frente do leão, punha a carroça à frente dos bois, coçava-se onde não tinha comichão, tirava macacos do nariz, tinha mais olhos que barriga, comia os bolos antes do pão, ferrava cigarras, fazia cócegas a si próprio para rir, comia muito bem na cozinha, dava palha aos deuses, mandava cantar o Magnificat de manhã e achava-o muito a propósito, comia couves e cagava acelgas, via o que entrava pelos olhos a dentro, arrancava as patas às moscas, arranhava o papel e lambuzava o pergaminho, dava às de vila-diogo, bebia como um odre, ia à caça de mãos a abanar, julgava que as nuvens eram sertãs e que as bexigas eram lanternas, matava dois coelhos com uma cajadada, fazia-se burro para conseguir o que queria, e do punho fazia um malho, queria que grão a grão enchesse a galinha o papo, olhava sempre o dente a cavalo dado, misturava alhos com bugalhos, dava uma no cravo outra na ferradura, se as nuvens estavam baixas contava apanhar andorinhas, fazia da necessidade virtude, fazia sopas de qualquer pão, e tanto se lhe dava como se lhe deu, todas as manhãs vomitava as tripas. Os cãezinhos do seu pai comiam na sua escudela, e ele também comia com eles. Mordia-lhe as orelhas, e eles arranhavam-lhe o nariz; soprava-lhes para o cu, e eles lambiam-lhe os beiços.
E sabeis o quê, meus filhos? Que a bebedeira dê cabo de vós! Este malandro estava sempre a apalpar as governantas, de cima para baixo e de trás para a frente -- arre burrinho! -- e já começava a exercitar a braguilha, que todos os dias as governantas enfeitavam com lindos raminhos, lindas fitas, flores e borlas, e passavam o tempo a passar-lhe a mão por cima e depois desatavam a rir quando ela levantava as orelhas, como se gostassem da brincadeira.
Uma chamava-lhe meu espichozinho, a outra meu alfinete, a outra meu ramo de coral, a outra meu gatinho, minha rolha, minha pua, meu berloque, meu passatempo duro e baixo, minha linguiça vermelha, meu colhãozinho.
«É minha», dizia uma.
«E eu (dizia outra) fico sem nada? Então juro que hei-de cortá-la.»
«Cortá-la! (dizia outra); magoá-lo-íeis, senhora; então agora corta-se a coisa às crianças? Ficaria um senhor sem cauda.»
E para folgar como os meninos do país, fizeram-lhe um catavento com as asas de um moinho de vento de Myrebalays
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, página 67
"Gargântua"
Rabelais
edição Publicações Europa-América

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