domingo, 2 de fevereiro de 2020

A propósito de qualquer coisa…

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A propósito de qualquer coisa…
Qualquer coisa como a dama de negro que acabo de ver entrar no Café PassaTempo, hoje reabilitado, remodelado e tornado num café fino de arquitectura barroca e café a duzentos escudos. Longe vão os dias da má clientela e das rusgas policiais. Antes de toda a gente ser intimada e ir arrotar os costados para a pildra, antes do imóvel ficar devoluto, o café era conhecido na gíria dos índios por passa em pó. O T do letreiro tinha sido apagado com o tempo mas era um sítio excelente para concertos de música subterrânea. Nos seus primeiros dias de universidade, C lembra-se de passar pelas paredes em ruína do PassaTempo e ainda ver os cartazes anunciando o herético triple joint: um concerto de Lucrécia Divina seguido de Pop dell’arte e, para terminar, os Mão Morta, na cave. Isto no tempo em que estes se cortavam com lâminas em palco e os Pop beijavam dragquínes. Eram estas as notícias musicais que começavam a chegar pelos jornais à consciência de C e a ele parecia que tinha nascido dez anos atrasado. Agora, o Café PassaTempo era um estabelecimento para executivos no rés-do-chão onde os caloiros podiam ir cheirar a arte do negócio e sentir que o futuro, esse seria deles. A cave era um dancíngue privado onde antes havia pipas de vinho e almas em formol e, no primeiro andar, ficavam os alojamentos da dama de negro, os primeiros que ela habitou. C conhecê-la-ia no futuro como a Joana que moraria na Vitória mas, agora e por enquanto, ela era a dama de negro que entrava no café. A dama de negro era o mistério que todos gabavam e que ninguém tinha.
C está ao balcão e repara, olha para ela e ela olha para ele e vai-se sentar nas mesas ao fundo. C volta a prestar a sua atenção a Maria e começa a dizer: falávamos de fiéis, Maria? Digo-te isto, sinto a necessidade não totalmente abstracta de desequilibrar a balança da minha vida socioemocional. Percebes? Uma balança. Este conceito de balança não balança permanece ainda estático para mim, eu não balanço, a minha mente não oscila entre dois pólos, eu sou polar quando queria ser circular, oscilar, pendular, bipolar... e não, eu só tenho um pólo, um eu e só tenho o eu do espelho com quem dialogar. E o eu do espelho não serve de segundo pólo nem de segundo prato na balança, não gosto de me sentir um urso e pentear apaixonado a barba ao espelho, preciso de outras fontes de inspiração, outros estímulos, outros eus que não eu, outras consciências, personagens com quem dialogar, com quem discutir ideias. 
Conta-me uma história, diz-me ela sonhando e desviando o assunto. Quando nos conhecemos, tu prometeste contar uma história diferente todos os dias... C?, ouve... conta-me uma história... 
C ignora Maria e continua: sabes qual é a verdade? Sinto-me uma criança por detrás desta aparência. Isto por nunca tive pontos de referência, na juventude não havia pessoas, só havia imagens válidas e sustentáveis na televisão, algumas na rádio, na vida real só havia imagens perdurando com um significado obscuro, esotérico à laia de Bruno... e depois hoje há este B estúpido que nos persegue... é, aquele gajo tira-me do sério, aparece na foto da audiência de todos concertos... foda-se!, eu explico melhor, por exemplo, quando entras no teu talho preferencial, olhas para a arca congeladora, perguntas a como está a carne hoje e pedes uma meia dúzia de bifes de porco, diz lá se não gostavas que ele te cobrasse menos?, e isso é tão fácil de conseguir, nem tem nada a ver com ética ou a falta dela, tem tudo a ver com querer perder ou gastar menos.
Não percebi patavina do que contaste. É essa a tua história?
Err... conheço um gajo que quando lhe chamam de egocentrista, ele considera o dito como um elogio e não um insulto, mas isso é porque o J é alienado ou tornou-se um alienado, ele nem sabe o verdadeiro significado de egocentrista, ele diz que é egocentrista mas não egoísta, mas é ele que não pesca nada, ele de tanto se humilhar perante os outros na sua tentativa de arranjar cada vez mais trocos para comprar cavalo, ele que nunca roubou, ele que nunca foi paneleiro como ele diz, ele que nunca foi prostituto para obter dinheiro para a janada dose de j, ele que vai comer a sopa dos pobres e no caminho pede a todos os que passam com olhos vermelhos e lágrimas e obrigados e deus-o-abençoe, ele J já perdeu o eu, está sem consciência, ele não vê ninguém ao espelho nem vê já o próprio espelho, e por isso se não tem eu e é alienado não pode entender o eu de outras pessoas, entra em choque com elas, quer que o seu sem-eu se torne eu pelo simples facto de ele o dizer e de o dizer maior que o eu dos outros. o seu egocentrismo é uma tentativa de existir, porque ele de facto não existe, ele é um nabo, e depois é talhante, é um carniceiro. 
Mas todos somos assim ou não?, essa é muito curta para mim, explica-te.
Imagino-o a caminhar com uma faca na mão e na outra os teus bifes tenros. Ele tenta avaliar, comparar o bife e o seu preço de modo a vender-to no acto e tu ficares satisfeita ao ponto de voltares lá outra vez. Ele corta do lombo de porco, pousa a facão e coloca os bifes no prato esquerdo da balança, ele é uma balança, ou melhor, é o fiel de uma balança, no prato direito coloca um peso enferrujado. Repara que não é uma balança electrónica, ainda não é dessas que vimos anunciadas na tevê como as novas maravilhas da técnica de pesagem, o J é antigo, não está a par das notícias e muito menos tem dinheiro para reinvestir o talho com equipamentos topo de gama. Por isso, o J é o fiel de uma balança antiga do tempo dos sixtís na aldeia, uma balança com pratos enferrujados e pesos enferrujados. Por isso, suponhamos que a balança se desequilibra para o lado dos pesos, não gostarias nada pois não?, que farias?, eheh e então, ele retiraria esse peso e a balança tenderia para o teu lado e tu?, ficarias um tanto mais contente?, não, talvez soasse forjado, então ele colocaria um peso maior mas igualmente enferrujado e andaria nisto em movimento harmónico igualmente enferrujado até toda a ferrugem ser retirada e o preço ser justo... mas quanto é, qual o preço justo?, quais as verdades fundamentais e quais os equilíbrios, quais os valores que estão neste jogo do balança não balança?
Sim... e dai? Élou... tásme a dar seca!
C continua, eu continuo o meu discurso, tento perceber-me ouvindo a minha voz e tentando explicá-la o melhor possível à minha namorada Maria. Continuo o raciocínio: penso que para encontrar as verdades fundamentais, devo procurar mudanças radicais mas... o que eu não sei é onde as encontrar, aqui no PassaTempo vem muita gente mas é tudo pessoal com o qual nada se aprende, sinto-me aprisionado neste sistema... 
Tu devias era mudar de vida, largar essa literatura mal cheirosa que andas a ler e dedicar-te às aulas e aos laboratórios, em vez de estares aqui a parlar de bifes de porco cortados por um desgraçado que não tem onde cair morto.
Minha querida!, vamos lá ver se me faço entender: não existe verdade no equilíbrio quando se sabe que se atinge sempre o objectivo sem pagar nada. A verdade para mim está no oscilar entre os dois pólos do circuito electrónico, andar de um lado para o outro com descargas de frequência nos condensadores. Para te dizer isto é porque hoje fui de manhã às aulas, revemos a lei da impedância, falámos em bobines e naquilo que, nas traduções brasileiras que me chegaram às mãos, se chama de capacitores. A balança é magnética e, de um lado, estão os teus bifes de porco a minha felicidade e, do outro lado o preço correcto, o meu preço.
Mas que dizes?! Tentas assim comprar a felicidade?!, pergunta ela oscilando entre desilusão e raiva. As tuas palavras, C, são ambíguas, não as percebo, têm algo de gongórico. Ouve-me, a felicidade não se compra, ela existe por aí à espera que a agarrem, chama-se a isso oportunidade, não custa nada, é só esperar e ir fazendo pela vida. Acima de tudo, não desesperar.
E então, Maria vê C a trilhar os mesmos caminhos de seu pai, lembra-se que o pai tentou comprar aquilo que podia ser para ele a felicidade, ou como ele próprio admitiu um dia, a ilusão de felicidade, porque não? Maria recorda as consequências, as conclusões foram o que foram, o seu preço justo foi o seu internamento compulsivo no Centro de ReEducacao Alimentar de Derza. Maria ficou sem pai em casa. 
Maria transtorna-se com este reviver do passado e grita de súbito: fica-te pelo que tens e não entres em promessas!
Está bem, digo eu, a felicidade não se compra, atinge-se, mas a felicidade tem de existir como um processo, durante esse processo é necessário oscilar deveras entre quase tudo, como chegar ao cimo da escada, ao último degrau. O problema é que não sou budista e estou farto de esperar!
Ela, triste, pede que ele lhe conte outra história, em parte por querer mudar de assunto, pois, ultimamente, tem ouvido tantas histórias meditativas e depressivas que tou que nem posso...
E eu sabes?, nem sequer oscilo ainda. Como posso atingir o equilíbrio?
Contas-me uma história?
Não, hoje não.
Porquê?
Lembro-me do artista de circo que está em cima da corda sempre a analisar porque não cai, sempre a tentar chegar ao fim da corda, ao preço justo. Então, digo a Maria: hoje, não tenho uma história. Estou aborrecido e, às vezes, a história é o meio de explicar um acto. O problema é que talvez se ligue mais à história que ao acto, não sei bem o que achar desse tipo de reacção, não será certamente positiva. Porquê contar a história então?
Estás aborrecido comigo, é isso?
Não, contigo não, com nada, é isso, estou aborrecido com nada.

É apenas natural que esteja aborrecido com nada. É quase fundamental que se esteja aborrecido, mas sempre com o espírito aberto para fazer coisas e merda, muita merda, a maior parte do tempo faz-se merda e, uma vez, somos apanhados pela bófia a tentar desaparafusar uma sinalética nas traseiras de um banco. De registar o espectáculo: dois mânfios imberbes e anarquistas na rua junto ao rio de Derza, noite cerrada, faróis que se acendem e motor que acelera, em cinco segundos temos a bófia em cima de nós configurando um assalto a um banco, e nós com um canivete suíço apenas, tudo por causa de uma pequena e branca placa de plástico dizendo qualquer coisa como Fechado. 
Deixam-nos ir embora sem precisarmos de ir à esquadra, tão infantil tentar roubar uma placa, sem dúvida, apenas para rivalizar com o sinal de trânsito retirado dos acessos à auto-estrada, que dão um bom instrumento de percussão, e com os crucifixos roubados do cemitério, que estão na minha parede pregados e invertidos, acto que excruciará um militante da jota cds que mais tarde me negará um emprego na sua empresa dizendo: tu és sobrequalificado, só te posso pagar cento e vinte. Quando eu digo por mim tudo bem, ele diz vou pensar, vou dormir sobre o assunto.
Sim, é natural estar aborrecido com nada como os melancólicos e a eslava compaixão mas sempre com a caneta e o guardanapo de papel, ainda o pastel de carne e o café, a pastelaria e os fetiches alheios pelas belas e jovens empregadas, eu começo a desenvolver os meus próprios fetiches por damas que trabalham em tabacarias oferecendo ao público um verdadeiro serviço nacional de fumo... mas sim, sempre a angústia de que estamos contra o mundo e o mundo todo contra nós, um dia... quem sabe, faremos algo grande, seremos vistos em toda a cúpula do alfa beto, em toda a cidade do senhor do colarinho branco, as noites do fecho dos alfabetos por todo país do colarinho branco por causa das propinas serão pequenas quando comparadas com o que nos está destinado, sim!... nos viremos nas revistas de arte e literatura, ser-nos-ão feitas entrevistas e nos responderemos coçando a mosca um pouco, plagiando a pose cool do Eduardo Prado Coelho. 
Nessa altura, eu apresentarei a súmula dos loucos anos vinte, é mais ou menos assim: a atitude individual é como o Kill Yr. Idols dos Sonic Youth, não quero saber dos grandes, não quero saber se o Saramago e o Eugénio de Andrade vem conferenciar no auditório da universidade, a gente ignora, eu nunca sequer li Saramago e, outros também não mas talvez por razões ideológicas, não quero saber a polémica das cartas de amor do Manuel Alegre, quero lá saber dos amores de um político, pff!, alguns colegas dizem: não!, estás errado, é historicamente importante.
Sei quem o público considera grande mas não quero saber deles, não são sequer ídolos, são apenas estátuas e já não pessoas, nem sequer se põe a hipótese de se pensar se se gostará de com eles trocar palavras, isso não é comigo digo-te, uma vez o Michael Gira veio dar uma sessão de prosa ao Carlos Alberto, eu fui ver, gostei, havia uma banca com livros e cedês dele, e eu comprei um livro de prosa dele, disseram-me que se quisesse esperar pelo autógrafo ele estava quase a chegar. Mas eu não esperei eu quase fugi, não quis saber. Esta é a minha atitude. 
Ou era naquele tempo. O Saramago não me interessava, até que um dia li O homem duplicado e As intermitências da morte. E fiquei pasmado, surpreso, como foi possível eu ter ignorado o Saramago?!
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Claudio Mur

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