quinta-feira, 14 de abril de 2022

Totó, consequência da guerra

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Lentamente a minha moral, a minha vontade tem vindo abaixo. Noto-o desde o início da guerra, pedir aos ucranianos que se rendam e aceitem a paz segundo os termos russos para que não morram todos e todo o mundo também só porque alguém carregou no botão nuclear é absurdo demais. 
A TV tem estado desligada, o meu pai não quer ver a guerra e eu também não, a TV é adictiva e faz-nos mal, deixa-nos nervosos, a minha mãe só quer ver a novela da tarde antes de ir para a loja da paróquia, o meu pai diz: e se eles mandam um míssil, e se nos invadem?
-- Bem, pai, a guerra não chega cá, mas vocês fugiriam para a aldeia, e eu teria de me fazer à vida e juntar-me a um grupo que os sabotasse, que os combatesse, eu não sei pegar numa arma mas algum lugar haveria para mim.
O meu pai não replica e continua a sua refeição em silêncio.
Outra coisa que me está a deitar abaixo é os CTT, tenho três encomendas enviadas há mais de um mês que ainda não me chegaram a casa enquanto uma em correio registado enviada depois já chegou, fiz perguntas e ouvi: o carteiro habitual está de baixa e não está a ser convenientemente substituído, o correio está atrasado, vá perguntar no armazém dos carteiros, fica por detrás do bairro.
-- Pois é, pai, os CTT eram do estado e davam lucro e dividendos, privatizaram-nos e agora os CTT continuam a dar dividendos mas já não dão lucro, fecharam postos de correio, freguesias inteiras ficaram sem agências, despediram pessoal, os preços aumentaram, o serviço piorou. Nem é pelo dinheiro que gastei nas encomendas, é mais pelos discos e livros que se vão perder no caminho, ontem, vi o carteiro substituto, ia de moto à chuva com as cartas no colo da moto, sei lá se ele acerta na nossa campainha ou se alguém não fica pelo caminho com os meus discos? Pelo menos, já contactei os vendedores, eles informaram-me que me contactarão se as encomendas voltarem para trás, eles informaram-me mas não todos, o único que não me respondeu foi o vendedor português... é pai!, somos um país de ladrões, queremos vender o nosso produto, receber a pasta e, depois, que mais ninguém nos chateie, queremos sempre fugir entre os pingos da chuva, a culpa nunca é nossa se alguém é roubado, a culpa nunca é de ninguém, e se se descobre um culpado verídico, este pede desculpa, diz que tinha fome, que o filho tem uma doença, que não fez por mal. E quem se lixa é o mexilhão consumidor.
E assim anda a minha moral, piorou há pouco mais de uma hora, eram seis e meia da manhã quando, como habitualmente todos os dias, tiro o balanço multibanco do hotel, enganei-me três vezes no código, o cartão supervisor ficou bloqueado, fiz a minha primeira grande merda da grossa nestes seis meses que levo de trabalho, agora o patrão vai ter de ir ao banco, vai demorar uns dias para o sistema voltar ao normal e nós temos a páscoa à porta e a casa cheia e o pagamento multibanco inactivo, por minha culpa!
-- Ó, senhor A, eu não tenho uma razão para o engano, fiz esta operação durante seis meses e hoje...
-- Ó, senhor Ru, nem a senhora T que é uma totó...
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Claudio Mur

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