domingo, 9 de abril de 2023

A única fuga que resulta é viver sendo invisível

 '

Um poeta inclina-se sobre os seus poemas: vinte foi quantos escreveu. Vira as páginas, uma após outra, e dá-se conta de que cada poema lhe desperta um sentimento muito particular. Debate-se com grande dificuldade, procurando descobrir que coisa é essa que paira sobre ou à volta dos seus poemas. Pressiona, mas não surge nada; empurra, mas não sai nada; puxa, mas tudo fica igual, ou seja, obscuro. Afunda-se no livro aberto com os braços cruzados e começa a chorar. Já eu, em contrapartida, o malandro do autor, debruço-me sobre a sua obra e reconheço com incomensurável facilidade o enigma da sua tarefa. São simplesmente vinte poemas, um dos quais é simples, outro é pomposo, outro mágico, outro entediante, outro comovente, outro piedoso, outro pueril, um bastante mau, outro animalesco, outro tímido, outro ilícito, outro incompreensível, outro repugnante, outro encantador, outro comedido, outro fabuloso, outro genuíno, outro inútil, outro pobre, outro inexprimível e um outro que já não pode ser mais nada, pois só há vinte poemas distintos que, através dos meus lábios, encontraram, se não um juízo justo, pelo menos célere, o que, pelo menos para mim, supõe sempre algum tipo de esforço. Uma coisa é certa: o poeta que os escreveu continua a chorar, inclinado sobre o livro; o sol brilha sobre ele e a minha gargalhada é o vento que sopra tempestuosa e friamente sobre os seus cabelos.

'

Robert Walser, página 51 - 52 em

«Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos»

selecção, tradução e prefácio de Ricardo Gil Soeiro

edição Assírio & Alvim, colecção Gato Maltês


Sem comentários:

Enviar um comentário