quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Im losing my mind

 

Rogério gosta de se mitificar e inventar personagens e desdobrar a sua identidade, falar de si na terceira pessoa. Rogério acaba de decretar que neste texto ele se chama Clemente, o mafioso don Clemente.

Clemente anda feliz da vida. Nunca soube porquê mas ele parece ser um barómetro da sociedade, um reflexo, mesmo uma balança: se anda deprimido o mundo entra em recessão económica e a pobreza abunda, o crime alastra, vêem-se lágrimas de aflição nas mães, as famílias são postas no olho da rua; se anda alegre a corrupção instala-se ao mais alto nível e toda a gente ganha o seu pedaço, cervejas e bombons são oferecidos e todas as amantes inauguram o apartamento, Clemente vê toda a gente rir da palhaçada.

Mas

isso mudou, Clemente continua feliz da vida desde que voltou como filho pródigo para Tintus Rius, mas a sua relação com a sociedade começou a desfasar e a entrar em contraciclo. Expliquemos Clemente.

Clemente mantém um emprego, fez a semana passada doze meses. Deixou de ter preocupações económicas pois não paga renda e a comida é-lhe oferecida pela arte da mãe ou mesmo do pai, pode mandar vir três e quatro discos através da net e pagar vinte euros de portes, ele não se importa, nem se importa de pagar dez euros aos ctt pelo serviço de apresentação do disco na alfândega nem o iva a 23% sobre o serviço de apresentação, serviço que é um eufemismo para quando os funcionários da alfândega escolhem a nossa encomenda para pagar no meio de tantas outras, não se importa, porque diz que o dinheiro é para se gastar. Por isso, é que digo que ele está em contraciclo, há quem fique sem-abrigo ou seja obrigado a ficar no sítio onde está, forçado e a contragosto porque não tem alternativa. Clemente está bem instalado em casa dos pais.

O pai está na cozinha a fazer uma sopa com batata vermelha, corgete, alho francês, nabo, chuchu, cenoura e feijão, uma sopa tão boa que equivale a duas pints num bar irlandês. O pai vira-se para o filho e diz:

-- Clemente, fui há bocado à garagem como me viste tu do anexo porque deixas a cortina aberta e não pude deixar de ouvir aquele barulho... Clemente, desculpa lá, mas aquilo não é música!

Clemente ri-se e responde: -- Pai, a música não é só cantada. Também há o que se chama de música instrumental.

-- Ninguém me convence, aquilo é ruído, é uns trum trum pp tinoni tinoni, aquilo dá cabo da cabeça!

Clemente ri-se e diz filial: -- E depois, dentro da música instrumental temos de ver os instrumentos: é uma guitarra é um piano, ora há outros instrumentos além de uma guitarra e de um piano.

-- Não sei porque compras tantos discos, é para dares connosco em maluco.

Clemente tem a resposta na ponta da língua:

-- Ó pai, ainda ontem estive a ouvir um disco com poesia para meninos de poetas portugueses, poemas ditos pelo Mário Viegas e por uma senhora, a Manuela de Freitas que parece que é a esposa do José Mário Branco, custou seis euros vê lá, e é assim: já me ouviste a ouvir fado também.

-- É discos é livros...

-- Eheh, agora, estou à espera de livros que vêm de Lisboa amanhã ou depois, pensa lá, eu tenho de dissipar algum dinheiro, não posso poupá-lo todo, então vê lá... depositando uma média de cinquenta euros por semana mais o dinheiro da reforma no qual não toco, imagina o que eu não poupo, imagina se alguém investiga, ainda virão a dizer que eu ando a vender droga...

-- Como se fosse crime trabalhar, diz o pai.

Ora, Clemente não vende droga e desde que voltou de Timbuktu nunca mais traficou tecno, comprou aliás duas cópias repetidas do tecno do Green Velvet onde este diz que está a perder a cabeça e a dizer à namorada que não havia rosas na florista e por isso tingiu com o seu próprio sangue as camélias que comprou em substituição na Conceição Florista para lhe oferecer, como é óbvio ele está a perder a cabeça porque a namorada não aceitou as camélias, e se Clemente está em risco de se tornar milionário não é porque transaccionou camelos na candonga, é porque, tirando os cinquenta euros que dá à mãe todos os meses, ele só gasta dinheiro em café, faustosos pequenos-almoços, tabaco, mortalhas e ganza. E acumulando a reforma com o salário semanal do seu trabalho, gasta-o nos seus luxos: livros e discos. Clemente encarna perfeitamente a ovelha personagem da frase Trabalha Compra Consome Morre que se torna paranóica quando diz: «imagina pai se investigam, há por aí cada invejoso.»

Pelo menos, Clemente lê metade dos livros que compra e não faz mais mal nenhum nem a uma mosca nem mesmo à abelha rainha que acaba de sobrevoar o interior do anexo neste momento e ciranda por aqui à volta das minhas orelhas enquanto conto a história do Rogério fazendo-se passar pelo don Clemente.

A troca de palavras com o pai ocorreu umas horas antes de Clemente sair para o trabalho. Nesse dia, Clemente não tinha lá muita vontade de ir vergar a mola. Acordara às duas da tarde com o corpo dorido da noite de trabalho que tinha sido problemática. Almoçou com os pais, e pediu à mãe para lhe tentar lavar a camisa branca de serviço que tinha salpicos de sangue nos braços e no bolso. Tomou café e voltou para o seu quarto.

 

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