quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O marido foi enganado pelo patrão português em França

 

Sete da manhã. Daí a meia-hora termina o turno e passa as contas à dona Mari.

Entretanto, do quarto ao lado da recepção sai para o trabalho a dona Ana. Clemente pede-lhe desculpa pelo barulho.

-- Sim... foi por volta das duas e meia, o que aconteceu?

Clemente explica. Dona Ana diz: -- O diálogo eu não ouvi, ouvi só o estrondo da porta, foi aí que acordei, depois não dormi mais.

Clemente volta a pedir desculpa, diz que o hóspede indesejável forçou a entrada. Dona Ana diz que está com pressa para não perder o autocarro e sai.

Dona Mari chega, verifica as contas com Clemente e este sai do turno e dirige-se para a paragem do autocarro fumando um charro. Na pastelaria escreve a mensagem aos pais que não envia logo, come o habitual queque e bebe o habitual galão morno e vê outra Ana entrar na pastelaria.

Ana vem sem casaco. Clemente repara nisso. Pensa: «Olha, a Ana já não está a morar com o filho, também ele a pôs na rua, agora está sem casaco e está a chover, e se eu lhe pagasse a despesa aqui e agora?»

Mas Clemente vê que Ana paga logo com uma nota de cinco euros a meia-de-leite que pediu. Clemente sossega um pouco mas está preocupado. Ana vive na rua desde que a puseram fora de casa, ela antes entregava a sua pensão de viuvez como caução numa casa onde cuidava de um senhora diabética e em cadeira de rodas. Nunca Clemente percebeu como Ana parecia pagar para trabalhar em troca de um sofá para dormir. Depois, essa senhora e os filhos puseram-na a morar na rua porque, ao que parece uma mentira, a Ana deixou queimar com água escaldada os dedos dos pés da idosa diabética. Os diabéticos perdem a sensibilidade cutânea nos dedos inferiores.

«Agora, até o filho se desfez da mãe, miséria!», pensa Clemente saindo da pastelaria e esboçando um sorriso para Ana que está junto à porta de saída, olha para ele e não lhe responde, faz mesmo cara feia.

«Porque será que ela faz sempre trombas para mim? Deixá-la! Lá terá as suas razões.»

Pelo caminho, vem a pensar que a dona Ana do hotel não ficará muitos mais dias no Tijuana, ela hoje de manhã também lhe fez cara feia, até já se queixou à patroa do barulho na recepção à noite.

Clemente chega a casa, verifica se os pais estão a dormir, vai ao wc e deixa a camisa, deixa na cozinha o pão fresco para os pais e desce para o anexo junto ao quintal, onde ele dorme e tem os seus discos e livros. Fuma mais um charro e pensa em escrever esta história «eu devia escrevê-la senão esquecer-me-ei dela, é uma boa história, tem o seu quê de irreal, de inverosímil... mas não estou aflito nem sinto necessidade em escrevê-la já por não conseguir dormir a pensar nela, até acho que no final me saí bem e como me saí bem não tenho insónia hoje, afinal dói-me o corpo todo, tenho os joelhos em ferida, vou masé dormir, depois... um dia destes logo vejo se escrevo.

Clemente adormece. À uma e meia acorda e vai almoçar. Os pais não dizem nada. Pergunta à mãe se o pai lhe contou o sucedido e acaba a explicar tudo.

A mãe diz que vai usar água oxigenada nas nódoas da camisa. Clemente desconfia do resultado final e pensa em comprar outra camisa branca. A mãe pergunta-lhe como se sente e ele diz:

-- Sinto o corpo partido, estou como se tivesse jogado futebol na praceta depois de uma temporada sem pegar numa bola, tu sabes mãe que eu sou sedentário e também não vou ao ginásio, eu ontem em quatro ou cinco minutos fiz o esforço que o Rónaldo faria se falhasse o pontapé de bicicleta por não ter feito a pré-época, ele cairia no chão e partir-se-ia todo, quero dizer, não se assustem, não tenho ossos partidos, estou como quando fui de bicicleta a Ermesinde vender uns fanzines e voltei e fiquei sem fôlego e sem músculo nas pernas e tive de parar antes do fim da subida ainda longe do Pingo Doce.

-- Devias ir fazer um raio x, diz-lhe o pai.

-- Não, não é necessário. Se tivesse alguma coisa partida estaria aqui a gemer e nem a morfina me aguentaria, teria de ir a um hospital de urgência. Ainda assim, logo tenho de ir trabalhar.

Clemente diz isso e a mãe aponta-lhe uma laranja para sobremesa. A mãe está sempre preocupada com o filho. Se o filho comer, metade dos problemas da mãe cessam. Ele às vezes protesta de ser alvo de tanta protecção de uma mãe-galinha, diz:

-- Tanta gente a passar fome no mundo e tu aqui preocupada com eu comer a sobremesa!, olha, mais preocupante foi ter visto a Ana na pastelaria num dia de chuva e ela sem casaco, o filho pô-la fora de casa, foi?

-- Olha não sei, a última coisa que soube foi que ela fugiu do hospital para onde a levaram para a abrigar, parece que ela tinha sarna.

-- Mãe, ela não é doente mental, não tem de ir para um hospital, têm é de lhe arranjar um quarto. Por exemplo, lá no Tijuana, temos agora um casal com uma senhora grávida, o marido foi enganado pelo patrão português em França, este não lhe pagou, chegou o dia de pagar a renda e não havia dinheiro, o senhorio pô-los na rua, o patrão deu-lhe cem euros que nem para um bilhete de autocarro de regresso a Portugal dá, e eles, sei lá como, embarcaram os dois num autocarro em Galieni e desembarcaram na praça da igreja, dirigiram-se à igreja e pediram ajuda, a igreja tem estado a pagar-lhes a estadia no Tijuana. É isso que têm de fazer com a Ana, arranjar-lhe um quarto!

-- Tens razão, filho.

-- Bem, vou para baixo descansar.

Clemente desce para o anexo e pensa no bom que seria ficar hoje sem ir trabalhar. Amanhã de tarde tem consulta de psiquiatria e vai ser tudo a correr. Telefona ao patrão mas este diz-lhe que não pode ser.

Então, à noite, ao chegar ao hotel, a patroa diz-lhe:

-- Você quase que foi roubado ontem, eu hoje nos Correios deixei ficar lá o meu telemóvel e quem veio depois ficou com ele.

-- Peça para bloquear o número.

- Sim, já fiz, vou agora à loja pedir uma segunda via do cartão, Até amanhã, senhor Rogério.

-- Até amanhã, dona A.

 

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