terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Toda a verdade

 Com o pleno funcionamento dos mecanismos da alternância de poder, a jovem democracia pluralista portuguesa dá provas de se achar firmemente consolidada. Os riscos de derrapagem são agora remotos. Edições Mortas acham que é chegada a altura de os portugueses se confrontarem com algumas das mais cruas e extremas realidades do seu recente passado totalitário. Os documentos que aqui publicamos são devastadores, pertencem a uma história das mais sombrias, do período mais negro das relações luso-estadounidenses. E todavia, são também testemunho da singeleza e do tocante desamparo de dois destinos famosos, face ao poder dessa louca e imoderada esperança que se chama, porque não dizê-lo, amor.

Estas cartas foram recentemente desclassificadas do arquivo "top AA" da CIA, o que nos permitiu, através de um agente infiltrado em "cunha", microfilmá-las e introduzi-las finalmente em Portugal. A história em si, porém, embora de acesso reservado, é há muito conhecida nos seus traços gerais entre sobreviventes do círculo mais íntimo de colaboradores do ditador, altas figuras do Estado e alguns historiadores. Esbarrou até aqui, é certo, na falta de suporte documental (presume-se que a PIDE destruiu toda esta documentação na madrugada do dia 25 de Abril de 1974) e, sobretudo, na sua injustifcável mas persistente aura de tabu nacional.

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Sucede que, paralelamente a estes eventos políticos, e à própria actividade dos dois aparatos de espionagem, desenvolvia-se nos dois protagonistas epistolares o lento processo de amadurecimento de uma poderosa afinidade electiva. Salazar enternece-se profundamente pela feminilidade grácil e inocente da actriz, a ponto de esquecer perigosamente Angola e as Lajes. Marylin sonha com o abraço protector daquele homem severo e asceta.

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À ironia perversa da História juntou-se pois, neste complexo episódio, a sempre imprevisível natureza humana, com a sua tocante fragilidade. E é por isso que estes documentos, pertencendo por direito próprio aos anais da espionagem e da política internacional do século XX, são simultaneamente uma obra maior da literatura amorosa, onde ombreia facilmente com Catulo, Shakespear ou as cartas de Mariana Alcoforado. Por estas razões, e só por elas, nos abalançamos a esta edição que sabemos sujeita a variados e perigosos equívocos. Do sensacionalismo malsão dos media ao voyeurismo doentio das massas, vários serão os chacais à espreita de semelhante presa. Quando toda a poeira assentar, porém, estamos convictos, restará um documento humano ímpar e, também, a obra literária de fino recorte e elevada valia que (seja-nos permitida a fraqueza) justamente nos orgulhará por a termos revelado em primeira mão.

Porto, 2 de Fevereiro de 1996


página 7-9 de «Correspondênica amorosa entre Salazar e Marilyn Monroe»

Copyright A. da Silva O.

Edição Edições Mortas


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