A troca de palavras com o pai ocorreu umas horas antes de Clemente sair novamente para o trabalho. Nesse dia, Clemente não tinha lá muita vontade de ir vergar a mola. Acordara às duas da tarde com o corpo dorido da noite de trabalho que tinha sido problemática. Almoçou com os pais, e pediu à mãe para lhe tentar lavar a camisa branca de serviço que tinha salpicos de sangue nos braços e no bolso. Ainda bem que ele tem uma camisa branca suplente. Tomou café e voltou para o seu quarto. Pensou em ligar ao patrão, ligou:
-- Sr. A, acordei agora, dói-me o corpo todo...
Ele adivinhando interrompe: -- Ó sr. Rogério, veja lá. faça um esforço.
--Sr. A, doem-me as costas, eu ontem na bulha bati com as costas no paralelo, tenho o joelho todo esfolado, tenho uma grande nódoa negra no braço... não me pode dar folga hoje à noite?
-- Sr. Rogério, veja lá, tome um Benuron, eu não tenho quem o substitua...
-- Não pode chamar a dona Fábia?
-- Não, porque ela amanhã vai fazer a folga da dona Estrela, vá lá, faça um esforço.
Clemente pensou: «Apesar de ter o corpo dorido, tenho a cabeça limpa, enfim... lá se foi a minha tentativa, que ninguém diga que não era justa...» e assegurou ao patrão que iria trabalhar. Ficou a pensar: «Ele chamou-me Rogério, ora isso significa que eu só sou clemente na minha imaginação, e esta ei?»
Então, de que se tratava afinal a situação? O que se passara com Clemente para ele, sempre tão cumpridor do seu dever, querer fazer gazeta? Cheiro enxofre mas não será perfume? Canal número 9 ou Luís Vitinho?
Bem, como ele escreveu numa mensagem por telemóvel ao pai logo às oito da manhã na padaria tomando o pequeno-almoço: «Tive uma bulha com um cliente indesejável esta noite. Tenho sangue na camisa. Pede à mãe se ela ma pode lavar. Eu estou bem. Vou dormir.»
Escreveu a mensagem na padaria mas só a enviou ao chegar a casa e depois de verificar que os pais estavam a dormir, para que eles não acordassem antes dele chegar a casa e ficassem alarmados ao ler a mensagem antes dele chegar. Foi à casa de banho, tirou a camisa e pôs no cesto da roupa suja. Saiu e desceu a escada para o anexo.
A coisa aconteceu deviam ser duas da manhã. Não estava a ter especial trabalho até aí. Tinha dois quartos livres que poderia alugar e estando tudo o mais feito e concluído igualmente o trabalho de secretaria, Clemente tinha-se posto a descansar. Às duas e pouco a campainha toca.
Era o Hélder, um cliente que já dera problemas. Clemente tinha ordens para não lhe alugar quarto.
Clemente disse: -- Estamos cheios.
-- Não acredito.
E forçou a entrada.
-- Estamos cheios.
-- Ora deixe-me ver a folha de serviço.
-- Estamos cheios, já lhe disse.
-- Sempre que eu venho aqui, você diz que estão cheios! Dê-me o livro de reclamações.
-- Já lhe disse que estamos cheios.
-- Quer que eu acorde toda a gente? Quer que eu o parta todo aqui?
-- Vou chamar a polícia.
Aqui, Clemente sai da porta de entrada e entra na sala da recepção onde está o telefone. Hélder vem atrás dele. Quando Clemente se aproxima do balcão onde está o telefone, Hélder que vinha atrás repara na mochila do Clemente ao lado do sofá de descanso e vê uma carteira lá dentro. Tira-a e sai a correr porta fora.
Clemente pousa o bocal do telefone e sai a correr atrás dele. Salta as escadas da entrada e acabam os dois no chão da rua, no meio da rua rebolam um em cima do outro.
Dez, vinte segundos depois está Clemente por baixo agarrando-se à camisola de Hélder para não o deixar fugir. Clemente está claramente derrotado mas firme. Puxa a camisola de Hélder e ameaçando: -- A minha carteira, a minha carteira?
-- Está ali. Diz o Hélder.
Clemente olha, situa a carteira no seu campo visual e quando a vê afrouxa as mãos, larga a camisola de Hélder, quer levantar-se e ir buscar a carteira. Aqu, Hélder é mais rápido e recupera a carteira e larga a correr. Clemente derrotado e desesperado grita para Hélder: -- A minha carteira, os meus documentos...
Aqui, Hélder ganha talvez consciência e pára no passeio, revista a carteira e não vendo dinheiro, devolve a carteira em mão a Clemente que entretanto tinha conseguido chegar perto dele. Clemente nada diz e volta para dentro do Tijuana.
Verifica que tem sangue na mão, apalpa o joelho, chupa o sangue da mão e deita-se no sofá a arfar, dói-lhe ao respirar. E adormece.
Às cinco e meia acorda, verifica a mão, vai lavá-la e a ferida mal cicatrizada começa a jorrar outra vez, é um pequeno arranhão, acaba a sujar de sangue o bolso da camisa onde guarda os cigarros. Fuma um cigarro coo se nada de anormal se tivesse passado mas no entanto pensa: «Se tivesse recebido ontem à noite como era para receber, teria sido roubado.»
Quando o patrão chega às seis e meia, Clemente conta tudo. Ele alarmado pergunta se ele já desinfectou a ferida e mostra-lhe o kit de primeiros-socorros, diz que a partir de hoje a porta de vidro vai estar sempre fechada para que Clemente possa controlar melhor quem chega, diz:
-- Ainda bem que você não teve medo...
-- Ó sr. A, eu tinha de ir atrás dele senão ele deitava a carteira num bueiro ou no lixo e depois eu iria ter de tirar novos documentos, era uma carga de trabalhos, fiz o que tinha a fazer. De qualquer modo, ele era vinte anos mais novo que eu, logo mais forte, se ele me quisesse bater ele tinha batido mas ele só queria dormir. Como eu lhe disse que desde a última vez em que foi necessário chamar a polícia para o tirar do quarto porque ele não tinha pago e se preparava para mais uma noite sem pagar: «desde essa noite que tenho ordens para não o deixar entrar», foi o que eu lhe disse, ele reagiu mal, quis-me roubar.
-- A droga... sabe, a droga faz destas coisas.
Eu não respondi mas não tinha nada a ver com droga ou álcool. Hélder estava perfeitamente sóbrio, foi mais aquele sentimento que eu próprio já tinha escrito como um desabafo: «às vezes, a gente rouba quem não aceita a nossa moeda.»
O patrão acaba por dizer antes de se ir embora: -- Olhe aqui esta bengala, é feita de fios de cobre torcidos.
Clemente olha e vê e mal pensa em usar aquilo para se defender.
Sete da manhã. Daí a meia-hora termina o turno e passa as contas à dona Mari.
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