sábado, 24 de maio de 2014

Philip K. Dick - O homem duplo, 1977

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Charles Freck, cada vez mais deprimido pelo que estava a acontecer a toda a gente que conhecia, decidiu pôr fim à sua história. Nos círculos que frequentava não havia problema quanto a uma pessoa pôr fim a si mesma: comprava-se uma grande quantidade de vermelhinhas e bastava tomá-las com vinho barato, tarde na noite, com o telefone desligado e sem ninguém a interromper.
O planeamento tinha que ver com os artefactos que seriam depois descobertos junto do corpo pelos arqueólogos. Para saberem a que estrato pertencia. E assim podiam concluir onde estava a cabeça quando tinha feito aquilo.
Passou vários dias a tratar dos artefactos. Muitos mais dos que precisava para decidir matar-se e aproximadamente o mesmo tempo necessário para arranjar todas aquelas vermelhinhas. Seria descoberto de costas, sobre a cama, com um exemplar de The Fountainhead, de Ayn Rand (o que provaria que ele fora um super-homem incompreendido e rejeitado pelas massas e assim, de certo modo, assassinado pelo desprezo delas) e uma carta inacabada à Exxon protestando contra o cancelamento do cartão de crédito da gasolina. Dessa maneira criticaria o sistema e conseguiria qualquer coisa com a sua morte, muito além do que a morte em si conseguiria.
Na verdade não estava muito certo do que a morte conseguiria e os dois artefactos conseguiriam, mas de qualquer modo tudo se combinava e ele começou a aprontar-se, como um animal que sente que o seu momento chegou e que actua com a sua programação instintiva, estabelecida pela natureza, quando o seu inevitável fim está próximo.

No último momento (quando o fim do tempo chegou) mudou de ideias quanto a um pormenor decisivo e decidiu beber as vermelhinhas com um vinho muito especial, em vez de Ripple ou Thunderbird, portanto saiu pela última vez com o carro, até ao Trader Joe, que era especializado em vinhos finos, e comprou uma garrafa de Montavi Cabernet Sauvignon de 1971, que lhe custou quase trinta dólares - tudo quanto tinha.
Uma vez em casa, desrolhou a garrafa, deixou-a respirar, bebeu alguns copos, passou alguns minutos a contemplar a sua página favorita do Livro Ilustrado do Sexo, depois colocou o saco das vermelhinhas a seu lado, deitou-se com o livro de Ayn Rand e a carta inacabada de protesto à Exxon, tentou pensar em qualquer coisa sem sentido mas não pôde, ainda que continuasse a recordar-se da garota da página do livro e depois, com um copo de Cabernet Sauvignon, engoliu todas as vermelhhinhas de uma vez. Depois disso, consumado o fito, recostou-se, com o livro de Ayn Rand e a carta sobre o peito, e aguardou.
No entanto fora tramado. As cápsulas não eram de barbitúricos como lhe tinham afirmado. Eram de uma espécie qualquer de psicadélicos esquisitos, de um tipo que ele nunca tomara antes, provavelmente uma mistura nova no mercado. Em vez de sufocar calmamente, Charles Freck começou a ter alucinações. «Bem», pensou ele filosoficamente, «é a história da minha vida. Sempre a ser tramado.» Tinha de enfrentar o facto de que estava sobre uma grande pedrada - considerando a quantidade de cápsulas que tomara.
O que soube a seguir foi que uma criatura interdimensional estava ao lado da sua cama a lançar-lhe um ar de reprovação.
A criatura tinha muitos olhos, e roupas ultramodernas e de aspecto dispendioso e a sua estatura andava pelos dois metros e meio. Além disso tinha muitos olhos, toda ela era olhos, e roupas ultramodernas e de aspecto dispendioso e a sua estatura andava pelos dois metros e meio. Além disso tinha consigo um enorme rolo manuscrito.
- Vai ler-me os meus pecados - disse Charles Freck.
A criatura disse que sim com a cabeça e quebrou os selos do rolo.
Freck, deitado impotente na cama, acrescentou:
- ... e vai demorar mil horas.
Fitando os seus olhos multifacetados nele, a criatura interdimensional esclareceu:
- Já não estamos no universo mundano. As categorias inferiores de existência material tais como «espaço» e «tempo» já não se aplicam a ti. Foste elevado ao reino transcendente. Os teus pecados serão lidos continuamente, por turnos, através da eternidade. A lista nunca acabará.
Charles Freck desejou poder voltar à última meia hora da sua vida.
Mil anos depois ainda estava ali deitado na cama com o livro de Ayn Rand e a carta para a Exxon sobre o peito. Escutando-os a lerem os seus pecados. Tinham chegado à primeira classe, quando ele tinha seis anos de idade.
Dez mil anos depois chegaram à sexta classe.
O ano em que ele descobrira a masturbação.
Fechou os olhos mas ainda podia ver a criatura de dois metros e muitos olhos, a ler continuamente o rolo sem fim.
- E a seguir... - dizia ela.
Charles Freck pensou: «Ao menos o vinho era bom.»
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Excerpto de 'O homem duplo' [A scanner darkly] de Philip K. Dick
página 188
tradução de Eurico Fonseca
Edição Colecção Argonauta, Livros do Brasil

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