domingo, 28 de abril de 2024
José Régio por José Régio
quinta-feira, 25 de abril de 2024
-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?
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-- Mas nada que conseguiste ainda?
-- Nada, Maneco! -- Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. -- Já mais de uma semana que estou procurar trabalho, e nada!...
Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:
-- E esse do jornal, já foste?
-- ainda.
-- O melhor é aproveitar mesmo hoje, cadavez, quem sabe?...
-- Oh! não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal «escritório e armazém». Você já sabe: sai serviço pesado!
Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão pondo uma chapada nas costas de Zeca:
-- Vamos, miúdo!
Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:
-- Eu vou sozinho, Maneco. sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...
Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada, e, antes de sair embora, recomendou:
-- Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!
O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios de sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio de emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...
Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de caqui bem engomada espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigindo-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. U homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:
-- Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? anda para aqui. Xico, ó Xico!
O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar de escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:
-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?
-- Nasceu onde? -- repetiu o contínuo.
-- Catete, patrão!
O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.
-- De catete, hem?! Icolibengo?... Calcinhas e ladrões e mangonheiros!... E agora, por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes!...
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página 35 - 39
de «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» no volume «Luuanda»
de José Luandino Vieira
edição Edições 70
segunda-feira, 22 de abril de 2024
sábado, 20 de abril de 2024
sexta-feira, 19 de abril de 2024
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Boicotar as multinacionais, comprar no vizinho, não dar dinheiro ao capital
quarta-feira, 17 de abril de 2024
Cegos sem alma
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A festa continuava desconjuntada. Até naquele pátio das traseiras a cair aos bocados havia zonas de gueto e zonas de Malibu e Beverly Hills. Por exemplo, os mais bem-vestidos, os que tinham roupa de marca, agrupavam-se. Cada qual reconhecia os seus congéneres, e não se mostrava minimamente inclinado a misturar-se. Admirei-me de alguns deles se terem disposto a vir a um gueto de Venice. Talvez achassem que era chique. Está claro que o que metia mais nojo era o facto de a parte correspondente aos ricos e famosos ser correspondente, por natureza, a cabras e filhos-da-mãe imbecis. Ou então enriqueciam à custa da estupidez do público em geral. Tinham simplesmente tido a sorte de lhes cair uma fortuna do céu. A maioria era completamente desprovida de talento, uns cegos sem alma, não passavam de montes de esterco ambulantes, mas, aos olhos do público, eram uns deuses, belos e venerados. O mau gosto cria muito mais milionários que o bom gosto. No final, tudo se resume a quem conquista mais votos. Em terra de toupeiras, a toupeira é rei. Então, alguém merecia alguma coisa? Ninguém merecia nada...
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Charles Bukowski em «Hollywood» página 131
edição Alfaguara
domingo, 14 de abril de 2024
quarta-feira, 10 de abril de 2024
domingo, 7 de abril de 2024
A reconhecer pelos notários
A RECONHECER PELOS NOTÁRIOS
legalizo esta ilegítima presença
assinando o perigo; enfrentando
a ilogicidade do sol. Inteiro
num vago espaço -- sem lugar.
Sou o que risco aberto no vento
a manhã, preclaro do meu sonho,
e de lua em lua, de astro em astro, tento
que a voz seja o teu corpo e a tua
face na água revérbera da luz.
Uma estampa, uma mulher vestida de toureiro,
têm seu retrato na minha locomoção anfíbia.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Manuel de Castro
em «Bonsoir, Madame», página 159
edição Alexandria / Língua Morta
quinta-feira, 4 de abril de 2024
O jogo do desconfinamento
O JOGO DO DESCONFINAMENTO
um jogo de escolhas a jogar a solo e à suivre
em que o jogador joga com e contra si mesmo
Precisas mais duma carta de amor
ou dum extracto mensal de conta?
Precisas de mais um noite de verão
ou de mais um candeeiro design?
Precisas mais de sopa de legumes
ou de suplementos alimentares?
Precisas de mais um parque arborizado
ou de mais um parque de estacionamento?
Precisas mais da conversa no café
ou dos tweets dos poderosos analfabetos?
Precisas de mais uma mercearia gourmet
ou de mais um mercado de frescos?
Precisas mais de um consultor de imagem
ou duma consulta no médico de família?
Precisas de mais escolas livres e gratuitas
ou de mais coaching e de gestores de talentos?
Precisas mais de hospitais públicos
ou de bancos de investimento?
Precisas de mais dramaturgos sem travão
ou de mais opinion makers?
Precisas mais de prados e florestas
ou de cenários virtuais sofisticados?
Precisas de mais filósofos na rua
ou de mais influencers na net?
Precisas mais de serras e oceanos
ou de paisagismo planificado?
Precisas de mais companheiros
ou da companhia de mais hipsters?
Precisas mais de diversidade biológica
ou de transumanismo galopante?
Precisas de mais geografias rebeldes
ou de mais geolocalização dos párias?
Precisas mais do conto a cada encontro
ou do storytelling da netflix?
Precisas de mais do teu precioso tempo
ou de mais tempo para money-making?
Precisas mais de ler e andar nas nuvens
ou de alimentar o éter da tua cloud?
Precisas de mais companheiros de estrada
ou de mais likes no facebook?
Precisas mais do saber-fazer do lavrador
ou das performances do analista de big data?
Precisas de mais instantes inimagináveis
ou de mais fotografias no instagram?
Precisas mais de ideias para mudar mundo
ou dos softskills dum Scrum master?
Precisas de mais professores talentosos
ou de mais horas de e-learning?
Precisas mais da fantasia duma horta louca
ou de roupa trendy e acessórios tendance?
Precisas mais de ver melhor o que te olha
ou de mais selfies em toda a parte e hora?
Precisas mais do café do teu bairro
ou duma casa de chá rétro na baixa?
Precisas de mais gente a bater à tua porta
ou de mais aplicações no teu smartphone?
Precisas mais da sombra das árvores
ou dum bunker com todas as comodidades?
Precisas de mais bancos de jardim
ou de mais garantias de sigilo bancário?
Precisas mais de paraísos fiscais
ou de mais paraísos artificiais?
Precisas de mais saltimbancos
ou de câmaras de vigilância?
Precisas mais de cantinas comunitárias
ou de templos da nouvelle cuisine?
Precisas de mais contraditores ferozes
ou de mais animais de estimação?
Precisas de mais funambulismo na mioleira
ou de mais arame farpado na fronteira?
Precisas mais de ver crianças a brincar na rua
ou de visitar dreamlands e parques temáticos?
Precisas de mais razões para uma longa vida
ou de mais lazer e escapismo organizado?
Precisas mais de quem te ouça e console
ou dos videojogos da consola?
Precisas mais de brincar aos cozinhados
ou de oscilar entre low-food e fast-food?
Precisas de mais memória para pensar
ou mais ram para te esqueceres disso?
Regina Guimarães
em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam», página 64
editora Exclamação
quarta-feira, 3 de abril de 2024
Lay off
LAY OFF
depois da primeira aula de jaula
pousei a cábula do meu corpo
no cimo morno dum muro
e
de livro aberto no colo
passei a fazer gazeta
já reparaste, camarada,
na vida prolífera dos muros
os muros moldura e os muros ninho
os muros de saltar e os de ruir
os muros lavrados de musgos e líquenes
os muros peçonhentos reptilíneos
e os muros abraçados por espinhos
depois da primeira cantiga
gritada debaixo do chuveiro
marquei com os pés ainda molhados
as voltas que o pensamento pode dar
quando está preso a si mesmo
e nem a quem pode libertá-lo se confia
já reparaste, camarada
nos pequenos dilúvios de que sou capaz
para diluir num só bloco
o pico da montanha e o fundo do vale
com aguarela de limar escarpas
e vassouradas de verde bandeira
até eu mesma ser sem cume e sem sopé
Regina Guimarães
em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam»
página 77
edição Exclamação