''
-- Mas nada que conseguiste ainda?
-- Nada, Maneco! -- Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. -- Já mais de uma semana que estou procurar trabalho, e nada!...
Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:
-- E esse do jornal, já foste?
-- ainda.
-- O melhor é aproveitar mesmo hoje, cadavez, quem sabe?...
-- Oh! não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal «escritório e armazém». Você já sabe: sai serviço pesado!
Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão pondo uma chapada nas costas de Zeca:
-- Vamos, miúdo!
Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:
-- Eu vou sozinho, Maneco. sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...
Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada, e, antes de sair embora, recomendou:
-- Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!
O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios de sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio de emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...
Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de caqui bem engomada espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigindo-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. U homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:
-- Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? anda para aqui. Xico, ó Xico!
O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar de escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:
-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?
-- Nasceu onde? -- repetiu o contínuo.
-- Catete, patrão!
O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.
-- De catete, hem?! Icolibengo?... Calcinhas e ladrões e mangonheiros!... E agora, por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes!...
''
página 35 - 39
de «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» no volume «Luuanda»
de José Luandino Vieira
edição Edições 70
Sem comentários:
Enviar um comentário