domingo, 1 de dezembro de 2024

Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas

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O ponto essencial é que, durante todo aquele tempo, estive isolado -- porque na frente estávamos quase completamente isolados do mundo exterior; até mesmo do que estava a acontecer em Barcelona não tínhamos mais do que uma pálida ideia -- no meio de pessoas que, a traço grosso, mas não demasiado longe da verdade, poderiam ser definidas como revolucionárias. Tal era o resultado do sistema de milícias, que na frente de Aragão não sofreu alterações radicais até cerca de Junh de 1937. As milícias de trabalhadores, baseadas nos sindicatos e cada uma delas integrada por gente que tinha aproximadamente as mesmas opiniões políticas, tinham por efeito canalizar para um mesmo lugar todo o sentmento mais revolucionário do país. Eu fora parar, mais ou menos por acaso, à única comunidade de certa dimensão da Europa Ocidental em que a consciência política e a recusa de acreditar no capitalismo eram mais normais do que o contrário. Ali, em Aragão, eu estava entre dezenas de milhar de pessoas, princpalmente, se bem que não na totalidade, cuja origem era a classe trabalhadora, que viviam ao mesmo nível e conviviam em pé de igualdade. A igualdade era completa em teoria e até na prática não estava muito longe de o ser. Em certo sentido, pode dizer-se ser verdade que ali se experimentava um antegosto do socialismo, pelo que pretendo dizer que a atmosfera mental que prevalecia era o socialismo. Muitas das motivações normais da vida civilizada -- snobismo, ganhar dinheiro, medo do patrão, etc. -- tinham pura e simplesmente deixado de existir. A habitual divisão da sociedade em classes desaparecera numa medida que é quase impensável no ar contaminado pelo dinheiro que se respira em Inglaterra; ali, éramos só os camponeses e nós, e ninguém era senhor que quem quer que fosse. Semelhante estado de coisas não podia, evidentemente, durar. Foi simplesmente uma fase temporárria e local num enorme jogo que se joga em toda a superfície da terra. Mas durou o suficiente para fazer sentir os seus efeitos sobre quem o tenha experimentado. Por muito que amaldiçoássemos nesse tempo, dar-nos-íamos depois conta de termos estado em contacto com qualquer coisa de estranho e precioso. Estivéramos numa comunidade em que a esperança era mais normal do que a apatia ou o cinismo, em que a palavra "camarada" significava camaradagem e não, como na maior parte dos países, uma impostura. Respirávamos o ar da igualdade. Estou perfeitamente consciente de que está hoje na moda negar que o socialismo tenha seja o que for que ver com a igualdade. Em todos os países do mundo, uma enorme tribo de escribas partidários e pequenos professores untuosos afadiga-se a "provar" que o socialismo não é mais do que um capitalismo de Estado planificado que deixa intacta a motivação do lucro. Mas, felizmente, existe uma visão do socialismo muito diferente. O que atrai os homens comuns para o socialismo e os faz quererem arriscar a pele por ele, a "mística" do socialismo, é a ideia de igualdade; para a grande maioria das pessoas, o socialismo ou quer dizer uma sociedade sem classes, ou não quer dizer coisa nenhuma. E foi por isso que os poucos meses que passei na milícia contaram tanto para mim. Porque as milícias espanholas, enquanto duraram, foram uma espécie de microcosmos de uma sociedade sem classes. Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas, talvez tivéssemos uma antecipação crua do que poderá ser a fase inicial do socialismo. E isso, bem vistas as coisa, em vez de me desiludir, atraiu-me profundamente. Teve por efeito tornar o meu desejo de ver instaurar-se o socialismo muito mais real do que antes. Em parte, talvez isso se devesse à boa sorte de me encontrar entre espanhóis, que, com a sua decência inata e o seu pendor anarquista sempre presente, que, em tendo ocasião para tanto, tornariam toleráveis até mesmo o período inicial do socialismo.

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George Orwell

em «Homenagem à Catalunha» páginas 83 - 85

tradução de Miguel Serras Pereira

edição Relógio d'Água


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