domingo, 15 de dezembro de 2024

Primária

Primária

aos domingos de madrugada nas cidades quase desertas, encanta-me escrever à mão, nos bancos de jardim, cartas a pessoas muito chegadas que estejam longe ou eu não veja há imenso tempo, em sebentas rotas, sobre o joelho, com as folhas a enervar-se com o vento, mas tem de ser no princípio do outono, em clima ameno, a lápis que o merceeiro usava na orelha, afiado com a faca de trazer no bolso ou o velho apara à manivela, o cheiro das aparas a confundir-se com a terra seca regada pela primeira chuva de setembro, cães meigos à solta, uma ave ou outra, uma carta sem ter nada de antigo ou vanguarda, urgente ou lento para dizer, só a memória de uma imagem mágica de estimação, de uma cor ou de um sonho, de uma pequena história, que sem ter história, anda à pendura no comboio de corda, entra e sai em andamento de um coração, nostalgia sem a qual nenhum futuro terá passado, melancolia sem a qual nenhum presente será moderno. 

Joaquim Castro Caldas
Pagina 187 de Intérprete da vontade do pássaro 
Edição Exclamação

Sem comentários:

Enviar um comentário