'Não ignores o facto de um cigano perder tempo a dar-te um conselho'
Repintar a cor de um quadro é também tentar explicá-lo,
dar coerência e unidade, ordenar o caos original.
Mas este é um quadro em que não é possível explicá-lo a posteriori.
É um conjunto de histórias pictografadas que nao parece ter hoje uma lógica.
É um conjunto de ideias: Os dois círculos azuis são os dois hemisférios estelares,
um dos quais desfsado de 90 graus no sentido inverso dos ponteiros do relógio.
Os dois círculos tornam-se um símbolo de infinito.
Num deles está pictografado o símbolo do 50%
(uma imagem explicada em 1996 mas entretanto esquecida).
Em baixo, imagina-se que esteja a roda de uma carroça.
No círculo do lado direito, imagina-se que talvez se veja um mapa condensado e distorcido
das Américas. Por todo o lado, esculturas de óleo empastado,
branco e endurecido ao longo dos anos.
Uma conta de somar com a parcela 23 e uma assinatura garrafal,
sinal de um ego inchado.
'
É agora o domínio dos aranhiços
com uma reprodução no quarto onde se fuma
barcos do Dufy e há também
um pouco de esperança no ar que se respira
porque tu vens com o teu olhar alucinado
trazer-me todo o afecto que não cabe no mundo
porque está à margem do mundo e as janelas
não impedem a passagem do nevoeiro
que transporta consigo sempre a mesma imagem
Deus não passeia por aqui por falta de tempo
ser Deus é uma profissão fatigante
falo com quem me ama e digo que estou verde
-- ou amarelo? E
que tem isso a ver com este humilde
alinhar de palavras? Que digo e como?
Se posso ainda amar, sofrer, residir
neste funambulesco castelo é porque
a mesma imagem se repete sempre
em cada gesto, em cada porta bem guardada,
em cada desejo proibido. E no entanto
sou livre, pois a mesma imagem vem
reproduzir-se no papel em que escrevo
e nas palavras que viajam na espessa atmosfera
de ilusão e sofrimento que me envolvem
Respiro a liberdade em cada olhar
dos meus sonambulos companheiros de estadia
O amor é música que se vai apagando lentamente
até ser um murmúrio até ser
uma voz em surdina, um murmúrio que desenha
no ar a mesma imagem, sempre a mesma.
Que digo e como? Se algo move ainda
os braços do amor e do desejo é apenas
a imagem repetida que transfere
o meu sangue para as veias dum mundo alheio ao meu
Que digo e como? Nada existe
para compreender em geometria.
Há um navio que parte, outro que fica. E as bandeiras
não flutuam. Estão coladas
na porta do quarto de fumar.
Cortei as cordas, perdi as folhas dispersas
do calendário que nunca utilizei. E todavia
não há hora, instante ou movimento
que não transporte comigo a mesma imagem.
Psychiatrisches Landeskrankenhaus
Schussenried, Janeiro 1966
'
Manuel de Castro
página 183
em 'Bonsoir, Madame'
edição Alexandria / Língua Morta 044, Dezembro 2013, reimpressao Março 2015
No livro 'Conto de fadas de Manuelle Biezon' de Claudio Mur e mais precisamente no texto 'Hobo em memória cache', o narrador, estando hospedado em Amsterdão num hostel e num quarto com quatro camas em beliche, enquanto espera por um possível emprego após ter saído frutrada a tentativa de ingresso numa exploração agrícola à jorna porque o engajador, um tal de senhor Alberto não apareceu, ele, o narrador pôe-se a discorrer sobre os tipos que definem os países, ou seja, pôe a cada elemento de uma nação uma característica que define o tipo geral dessa nacionalidade.
É assim que ele diz: «o português é visto como apoiante da frente nacional em frança».
Não quero agora dizer que todo o português pensa da mesma maneira que os portugueses em França, nem que todos são construtores civis ou donos de restaurantes ou governantas ou porteiras, mas este artigo no DN dá mesmo que pensar: http://www.dn.pt/mundo/interior/cafe-portugues-festejou-passagem-a-segunda-volta-de-marine-le-pen-6239656.html
A sleeping explorer his wandering mind crossed over the border a mind like a cemetery where the corpses are turning where the bodies twist deep in the frozen grip of a dreamless sleep then the lowest comes up like a wreck from the depths. He hears night calling and has dreams of waking here in this brightness that burns like slow lightening he sees words burnt in ice reads, "The World is a Wound". Effects of the animal - Animal sound effects He says, "Death he is my friend He promised me a quick end". Says, "The world is in pain and should be put down and God is a sadist and that he knows it". The depths of the night sky reflects in his eye He says, "Everything changes And everyone dies". And the night slits her veins and the darkness drains and the void rumbles in like an underground train... Forever comes closer the world is in pain we all must be shown we must realise that everyone changes and everything dies.
Por Ti Álvaro Cunhal não choro.
Eras imbatível, inflexível,
Um grande leader do povo
E a maior expoência
De toda a nossa resistência ao Fascismo!
Sensível, mas inflexível
Um homem do leme
Que lamento ao partir,
Mas de uma coerência
Que ninguém pode Acusar nem denegrir.
Preso, torturado, exilado, tudo Sofreste...
Contra o Fascismo desumanizado.
Mas Sempre resististe e os Trabalhadores
E o povo mais humilde estiveram sempre do teu lado.
Foi a ti e a eles que o Futuro esqueceu.
Também sou duro e estou ao teu lado
Não és Tu nem o povo nem eu que estou errado.
É o Sistema que nunca ouviu nem compreendeu ou
sentiu que estavas errado.
Que nos esqueceu e nos Acusa quando ele próprio
Está errado.
Adeus Álvaro
É Aqui longe no meu posto no Porto de poeta
combatente onde estou que estou a teu lado.
Chora-te a Família, o povo adora-te e a maldade
fica. Aquela com que foste confrontado.
'
J. Alberto Allen Vidal
13/06/2005
-- Iá meu, tenho uma história para te contar, é o guião de um filme que que eu ando a escrever e então é assim, o filme é sobre… uma donzela é levada ao colo durante dez segundos, depois começa a espernear e diz para a porem no chão e então ele põe-na no chão, ela levanta o dedo e diz «mais una mais una», levanta o dedo e diz «mais una mais una» e ele diz «não mais não mais não mais» e ela diz «mais una mais una» e continua a levantar o dedo, ele diz «não mais não mais anda anda anda» mas ela diz «mais una não vou não vou mais una não vou mais una» e ele diz «anda anda mais uma não anda anda» ela diz «não mais una» e ele diz «não!», então ela dá meia volta e volta para trás, ele tem o saco de compras dela na mão e vê-a voltar para trás, afastar-se dele e vai-se embora, fartou-se, então ele vai e ela vai beber mais uma e ele volta para trás pronto, ele volta para trás com o saco dela. Parte um, primeira cena. Segunda cena é o interlúdio em que ele vem a passear o saco dela na direcção do autocarro, entretanto ela liga. Terceira cena, «Ah pá, onde estás?», «Ah, estou, estou no autocarro», «Então, achas bem o que fizeste?», «Fartei-me!», «Pronto Xau aí.». Cena seguinte, ele chega a casa «foda-se que cena, vou mazé comer, oh num tenho fome tenho tenho num tenho fome tenho tenho não como nada vou fazer um charro», fumo o charro e ela liga, cena seguinte. «Onde é que estás?», «estoy a beber una cerveza», «pronto, fixe pra ti», «estás zangado comigo?», «Não baby claro que não», «tengo tengo que ir buscar meu saco, não puedo deixar las minhas cosas, preciso delas», «está bem, traz cerveja», «não, compra tu cerveza», «num tenho dinheiro num bou sair de casa estoy cansado, o super já fechou, nenhum café me vende cerveja a esta hora, quando chegares dá um toque», «não, vem-me vem-me buscar», «não vou nada», «vem-me buscar», «não vou nada» «vem-me buscar» «não vou nada»…«pronto io vô praí», «está bem mas traz cerveja», «está bem, eu trago, até já». Cena seguinte, «oh, vou mazé comer que estou cheio de fome e ela também há-de estar quando chegar, vou prá cozinha, tiro o tacho, meto azeite, escolho as cebolas, as cenouras, os bifes de perú para grelhar, o arroz, faço tudo, mas ela está a demorar, ela nunca mais chega, é melhor mas 'pera aí, antes de lhe ligar deixa, deixa pôr a cafeteira no fogão para passar tempo, já passou meia hora, ligo para ela: então ondé que estás?», «Ah, estoy em Batalha, aqui estar fixe!», «Está bem, quando vieres para cá dá um toque», «estar bien», «vem vem-te rápido que a comida está pronta, vem jantar, tenho jantar feito pra ti, não te demores», «estar bien estar bien vou já praí mas olha, encontrei um ciego», «um cego!, sim ondé que estás?», «ahora estoy en san bento, estoy descendo», «encontraste um cego», «si, ele está interessado em mi, quer beber una cerveza comigo», «o quê?!, mas pra ondé qu'ele vai?», «não sei, habla com el». Cena seguinte, o cavalheiro a falar com o cego ao telefone, «Quem é você?, pra ondé que vai?», «e você quem é?», «eu sou o irmão dela», «ah o irmão da amiga…», «então e você vai para onde?», «ah eu para Gaia beber uma cerveja com ela, dar um passeio com a sua irmã», «a sério?!», «sim sim é verdade», «tábem, passe o telefone à minha irmã», «olha, tu vais levar o cego à paragem do metro e depois vens embora, voltas para trás, estou à tua espera, o comer está feito!», «estar bien amor mio vou já praí estar bien». Cena seguinte. «foda-se vou mazé comer estou cheio de fome ela nunca mais vem, a comida está a esfriar, vou mazé comer os meus bifes de perú, o meu arrozinho de cenoura e ela quando vier, se tiver fome aqueço no microondas». Cena seguinte: «hmm o bife está mesmo bom!, estava cheio de fome hmm, agora a seguir o café de saco é que é». Cena seguinte, «'Tou ondé que estás?», «ah encontrei una amiga espanhola, a sério, ela quer um gelado, vou praí com ela», «mas vê se vens a tempo senão depois não tens transporte…», «estar bien estar bien», «olha ficas aqui a dormir», «não não eu vou mas depois… compra la cerveza pra mi depois yo pago», «não compro nada não vou sair de casa estou farto não quero saber já comi tens a tua comida a esfriar…», «pronto pronto mas ela quer hablar contigo», «tou, hablas espanhol?», «oui oui claro quê hablo», «ok tá tudo», «olha não precisas de gelado tens aqui comida boa», «mas eu quero comer um», «ok passa o telefone», «hola amor mira eu vou já para aí, posso levar mi amiga?», «podes claro que podes sim sim traz traz». Cena seguinte: «oh, vou mazé dormir, estou cansado de ler o livro, espero por ela deitado, espero deitado, espero que a coisa aconteça deitado e se ela não vier estou a dormir». Cena seguinte, o telefone toca, é a donzela: «tou amor?», «ondé que estás, estou à tua espera», «gostas de mim?», «gosto gosto, estou a dormir, estou à tua espera, quando vens para aqui?», «mira encontrei o R!», «o R?!, não tragas o R, não o quero cá, não te deixo entrar com ele!», «não não ele não vai, é só acabar mi cerveza e vou praí com a minha amiga espanhola», «ok ok». Cena seguinte: fim. O que é que achaste?
-- Ã?
-- O que é que achaste?
-- Ã? Ai cortei-me!
-- O que é que achaste da história?
-- Gostei gostei, eu acho que já vi essa história em algum lado…
-- Onde é que ouviste?
-- Tenho as minhas fontes, acho que foi num blogue, a história continua, não acaba aí e também gosto do final…
-- Qual final?
-- Ora... o final. Não contaste até ao final...
-- Então conta aí!
-- Não me recordo das palavras exactas, vou fazer perífrases mas a donzela trouxe a amiga, afinal não era espanhola era de Santo Domingo, naquela ilha para onde vão os finalistas de curso ou os casais em lua de mel. E para que não falte a referência musical aos Tuxedomoon, também a donzela de Santo Domingo pergunta por «blanca», cocaína para comprar nas redondezas, o cavalheiro pergunta-lhe a idade e ela diz «yo tengo un valor» e ele pergunta «quantos dólares quantos dólares só quero saber não significa que queira dar-tos» e ela responde que não quer ser insultada, a donzela que trouxe a dominicana acaba por se virar para o cavalheiro e diz «passaste no teste, eu só queria ver se eras capaz de fazer amor com outra, por isso ta trouxe.»,e ele diz «não gostei do teste, não voltes a repetir», ela diz «vem-te cá», ele vai e começam a beijar-se, a dominicana está já deitada na cama, não tem blanca e diz para abrir a janela porque não suporta o cheiro do haxe, acaba por se pôr a dormir, ronca prá mundial. O cavalheiro e a donzela deitam-se ao lado dela na cama e fazem amor enquanto ela ronca. Fim. Gostei da história, foste mesmo tu que escreveste?
-- Sim este guião fui eu que escreví, sou o fantasma escritor…
-- Um fantasma escritor?! Mas o que é um fantasma escritor?
-- Um fantasma escritor é um «escritor» que escreve histórias para um fantasma, é o contrário do escritor fantasma, esse é um fantasma que escreve histórias para um «escritor».
-- Ah, não foi num blogue, já sei onde li a história, foi no jornal O Excândalo…
-- O Excândalo ahahah!
-- Ahahah O Excândalo sim foi no dia das mentiras.
-- Ah agora partiste-me o coco a rir ai cortei-me!
E então o fantasma escritor depois de desinfectar com água oxigenada, coloca um penso na ferida feita pela lâmina de barbear, desliga a luz do espelho e vai preparar o pequeno-almoço. O dia está cheio de sol com vinte e oito graus, está um tempo óptimo para observar pássaros.
1 Observo as pessoas, agora na cidade. Há uma aparente calmaria. Andam de um lado para o outro, prosseguem as suas vidas. No entanto, nota-se a mecanização dos gestos. A bomba pode rebentar. A tranquilidade é falsa. Sim, há o apelo do sexo. Há o álcool que acende. Há os amigos e conhecidos que vemos em alguns dias. De resto, o mundo é absurdo, aborrecido. Sempre toxicodependentes do dinheiro. As pessoas imitam-se umas às outras. Não procuram os verdadeiros tesouros da vida. Fingem que estão bem, que são felizes. Sempre na fila, aparentemente adaptadas. Mas o medo reina. O medo de perder tudo. As famílias. A reprodução. A descendência. O animal mesclado com o humano e com o mecânico. A doença. A grande doença. Ainda estamos aqui vivos. Ainda comunicamos. Não necessariamente por palavras. Tão iguais. Tão diferentes. A vida prossegue, mesmo com bombas. E cá voltamos todos os dias. Claro que não falo daqueles que vivem a miséria todos os dias. Esses estão numa condição sub-humana. Mas não estaremos nós também? Estes gajos tentam fazer-nos a cabeça todos os dias. Estes gajos tentam enlouquecer-nos. Ou fazer de nós máquinas de produção. E lá continuamos a andar de um lado para o outro. Muitas vezes vendêmo-nos. Porque fazemos filhos? Porque continuamos a espécie? Homens como Sócrates, Jesus, Marx, Nietzsche, Bakunine ou Che Guevara não aparecem todos os dias. Claro que podemos acreditar num novo homem, num novo espírito, numa nova educação. Numa educação que leve as crianças e os jovens a buscar o bem, a criação e a sabedoria. Contudo, continuo a vê-los passar, a vê-los sentados a conversar, a vê-las exibir os corpos, e tudo permanece na mesma, tudo permanece exactamente na mesma como se isto não estivesse prestes a explodir. Bom, é certo que se sentem aliviados do trabalho. Mas o trabalho volta sempre no dia seguinte, tal como no mito de Sísifo. É tudo uma ilusão. E há muitos que só falam de trabalho. Ainda me entediam mais. Prosseguem sempre a caminhada rumo a um deus ou ao desconhecido ou ao completo sem sentido. Que viemos cá fazer? Porque não nos sentamos e discutimos estas questões? Porquê a separação, sempre a separação? Estou rodeado de gente e estou cada vez mais só. Nem a cerveja me salva. Mas eles continuam a sorrir como se nada fosse, como se não hão houvesse bombas na Síria e aqui riscos de apocalipse e explosão. Estou a tornar-me um eremita no meio da cidade com um esquizofrénico à minha mesa. De que me vale a inteligência, meu pai? Só teatro, fingimento, representação. Oxalá a minha cabeça explodisse. Não suporto mais as conversas. Não sou a estrela do rock n' roll. Vejo os amigos e as amigas de vez em quando, é o que é. De resto, há mesmo gajos hostis. Apetece-me rebentar com esta merda toda. Isto não é o justo, não é o virtuoso, não é o bem, não é o amor. São personagens que passam. O relógio. Sempre o relógio. Não há festa. Não há orgia. Não há tambores. Não há celebração. Sempre o quantitativo. Sempre o matemático. Sem toque. Sem carinho. Dou em doido. Apetece gritar. Uns comprimidos aqui e ali. Uns sorrisos. Nada mais. A depressão espreita. Falta-me a outra metade. O dinheiro sempre a circular. A merda sempre a circular. Inferno. Que farsa. Que loucura. Não, isto não serve. Não vim para sofrer assim. De que me valem as glórias passadas? Malditos sejais, ó profetas da morte! Deixa ver se me consigo levantar. Se o sangue ainda corre. Talvez a minha loucura me salve. Talvez a minha louca sabedoria nietzscheana. Sim, ergo-me com o álcool no Piolho. Contudo, o Piolho já não é o que era. Travei aqui grandes discussões políticas. Lancei livros. Disse poesia. Mas agora há uma sensação de vazio. Mas, porra, eu tentei. 2 Hoje sinto uma estranha serenidade. O livro avança. Contrariamente a ontem, sinto a vida pulsar. Estas pessoas não atingem mas são amáveis, simpáticas. Terei que falar a linguagem do profeta. Terei que lhes tocar o coração. Afinal, é o amor que nos mantém de pé. O amor e a liberdade. Depois dos Trumps, dos terrorismos, da lavagem ao cérebro, depois da descida aos infernos virá a terra prometida. Hoje acredito no super-homem. Naquele que tomará conta da Terra, que cuidará dos homens, dos animais e da Terra. Mesmo estando só, sinto poderes interiores e celestes. Sou o tal xamã urbano. Dialogo com os espíritos. Sou feliz no meu festim.
A vida pode ser um absurdo mas hoje já não me sinto muito desgraçado.
Tenho feito ao longo destes anos um esforço de me compreender
e de me enquadrar na sociedade.
As circunstâncias da minha vida mudaram para melhor:
reformei-me e tornei-me pintor a tempo inteiro.
Sei que não agrado a todos e muitos ainda me olham com desconfiança pelos actos do meu passado.
As desculpas não se pedem, evitam-se.
Quando são aceites e se forem sinceras, isso às vezes faz com que o Outro a quem se pede desculpa abuse da nossa humildade.
Aprendi a lidar com a falsidade.
Mas também sei reconhecer quem me tem dado a mão.
Se a saúde não me trair terei mais quarenta anos de pintura pela frente:
The sky is the limit!
[adenda: texto publicado aqui em Maio de 2014]
No ano de 2000 fui hospitalizado duas vezes.
O diagnóstico foi o de esquizofrenia paranóide.
Deleuze diz que Freud nunca gostou de esquizofrénicos.
Ao mesmo tempo, no Anti-Édipo, Deleuze diz
e não sei se será uma anedota, diz que nunca viu um esquizofrénico.
A tentativa de explicar uma psicose reduz-se quase sempre
a neuroticizá-la ou a torná-la perversa.
Dizem que um esquizofrénico não tem cura
e eu digo que um esquizofrénico é um prisioneiro da liberdade.
Sou mais livre que todos vós.
Este 'vós' é o sujeito chamado rebanho,
aquele que se submete à autoridade e que deseja depois ser autoridade.
Neste mundo, todos querem mandar e ser patrões e ter escravos,
alguém,
tantos que se corrompem a trabalhar para eles
em troca da moeda, da palmadinha nas costas.
Sou mais livre que todos vós
mesmo que seja actualmente pobre no sentido económico
'
Polzer aproveitava todas as oportunidades para sair de casa. Nos quartos da casa da Senhora Porges reinava a inquietação. O enfermeiro passava pelas portas sem se fazer notar. De repente, lá estava ele ao nosso lado. Sem que o tivéssemos ouvido entrar. Karl chamou-o. Agora Polzer tinha de passar as manhãs todas sentado ao lado dele. A revelação da viúva tinha aumentado a consternação e o caos. As bochechas da viúva estavam pálidas, gordas e imóveis. Parecia-lhe que, dia após dia, aumentava aquele corpo cruel que carregava o fruto gerado contra a sua vontade.
Depois do almoço, conseguia esgueirar-se para fora da casa sem ser visto. Karl dormia, o enfermeiro estava no seu quarto e lia histórias da vida dos santos, a Senhora Porges lavava a loiça na cozinha. Polzer ia para junto do rio. Caminhava pela margem, no sentido contrário ao da corrente, e quando fazia sol sentava-se sempre no mesmo banco. Queria pôr tudo em ordem, pôr as coisas todas em contexto, pois já não havia qualquer ordem, a cada momento surgia algo inesperado. Era impossível estar preparado. Não havia uma réstia de regularidade por que se reger. Se calhar devia levantar-se, agora mesmo, ir ao banco, sentar-se à sua secretária, retomar o trabalho onde o havia interrompido. Não tinha dúvidas de que mesmo lá estaria tudo de pernas para o ar, como em casa. A ordem com que ele, anos a fio, havia guardado os papéis fora perturbada, tudo fora do lugar, e entre uma coisa e a outra havia uma ligação obscura. Tinha de ir lá e pôr as coisas em ordem, e depois também em casa tudo se começaria a desenredar. Agora estava lá alguém cujo destino se interceptara com o de Polzer. Que quebrava a regularidade da vida de Polzer. Alguém que deixava as coisas incompletas, que cometia erros, que emaranhava tudo aleatoriamente. Alguém que não conhecia e que o enterrara a ele, Polzer, na desordem e no caos. Tinha de se levantar e ir para o seu posto e começar a desenlear os fios.
Polzer sorriu com a ideia.
A ordem está perturbada, pensou. Sentado no banco de jardim, olhava para o rio. Temos de a repor, para tudo salvar. Não é crendice, como diz o Karl. Talvez seja temor a Deus. Porque Deus é tranquilidade, certeza e ordem.
Mas Polzer sabia que não podia ir ao banco. A sua ida incomodaria Fogl e os outros. Nunca mais o queriam ver. Nada podia fazer para impedir que aquele que se sentava agora no seu posto lhe restituísse a ordem, nada podia fazer porque tudo se precipitara. Restava-lhe apenas deixar as coisas acontecer.
'
, página 139-140
"Os mutilados"
Hermann Ungar
tradução do alemão (Checoslováquia) por Vanda Gomes
edição E-Primatur, 1ª edição, 2ª tiragem Fevereiro 2016
Chego ao Gungunhana e peço um café. Ainda não compreendo os objectivos a atingir, qual é a tua escada? Os teus planos? Mostraste-me os teus planos para a capa no entanto. Tem que ser absolutamente negra mas de um negro veludo com muito ouro, conterá o símbolo de um meio homem ardente de desejo crucificado e envolta na cor sangrento vermelho, irradiando chamas por entre estações de lua nova ou eclipses cíclicos onde ela não está como sempre não esteve, sempre teve medo, serão as aparências? Que fazer? For I was yours and I am yours, and I will be yours till death.
Décima terceira personagem:
É mais fácil dizer do que fazer aquilo que se diz e é mais fácil escrever que dizer tudo o que se deseja dizer a alguém. Escrever permite parar e pensar em cada palavra, analisá-la, retirar-lhe a forma, ficando a realidade ou então retirar-lhe o sentido tornando-se abstracta, uma mera forma poética. Em suma, esquecer-me das palavras. Escrever permite procurar a melhor metáfora porque o tempo de reacção a uma pergunta é infinito e, sobre este ponto de vista, escrever não passa de um monólogo de alguém ao espelho com várias vozes, representações de si próprio. Escrever é uma mentira porque é difícil escrever toda a realidade que se vive, porque não há tempo, porque é difícil de admitir todas as verdades. Então, por isso contam-se meias verdades. São modos de apaziguar todos os que vivem como parasitas dentro do Eu, quantas vezes não perturbam outros que nada têm a ver com a realidade onde vivem. O que são então as metáforas que se escrevem? Será necessário influenciar os outros? É tão impossível controlar mentalidades e modos de agir, nem podemos ter tempo para isso. It never happens. Um livro não deverá influenciar ninguém ao ponto de se viver em função dele. O que será mais importante? Haverá incompatibilidade entre sensibilidade e inteligência? Que dizer das tuas opções? O teu eu inicial desapareceu sozinho, transfigurou-se. Eu cá estou, tenho este emprego do qual gosto, ouço rádio, faço uma data de coisas para aprender que existem seres normais, sensíveis e inteligentes, para que não esqueça o mal que causei e para que R. pinte céus menos académicos.
Décima quarta personagem:
Há dias tive uma revelação passando-se numa barbearia. Só via a minha cabeça e o belo corpo da cabeleireira ruiva. A minha cabeça parecia um disco voador castanho escuro com uma pequena franja loura à frente. Lembrei-me logo do que aquilo queria dizer. Ela disse: Like this you look like a priest. Eu digo: or like a saint.
O dia acordou às oito e meia. O sol voltou. O fim-de-semana nas flores correu bem: foi produtivo, a interacção com as gentes foi agradável. O Marco aprovou o quadro, vai-mo pagar às prestações, à medida que vai ganhando os seus trocos a tocar o realejo, ontem levou um galo branco, tipicamente francês, para fazer companhia ao papagaio e ao canário e também para soar surreal ao som da melodia da amélie que sai do realejo, as pessoas que passam riem-se agradadas com o cantar de galo, deixam moeda e dizem que se fazia um bom churrasco. Mas isto foi ontem, Hoje acordo com o sol e cheio de moral, saio de casa, entro no metro e quase que saio nos Aliados, mas lembro-me que tenho de comprar tabaco e mortalhas, saio em São Bento, caminho e gasto oito euros e sessenta, terei tabaco para cinco dias. subo e dá-me vontade de mijar, entro na pastelaria e aproveito e tomo café, continuo a subir e entro numa loja de pintura, enquanto escolho os tubos certos de óleo, recebo o telefonema dela, está feliz, combinamos encontrarnos mais tarde, compro também um caderno A4 para iniciar a nova série de desenhos em Derza, pago e volto para casa de autocarro porque tenho de passar no minipreço, preciso de manteiga de girassol, guardanapos, compro um pacote de bolachas de água e sal, lembro-me que tenho de ir pagar a conta da água, estou com medo da conta da luz, os cabrões se eu não reclamasse queriam roubar-me na última factura, esqueci-me de comprar sabão, chego a casa, pouso o saco das compras e saio de novo para ir pagar a água por multibanco, vou pelo caminho fora e levo a mão ao casaco, reparo na carteira de mortalhas, mas não consigo apalpar o maço de trinta gramas de tabaco, devo tê-lo deixado em casa, tenho de comprar pão, pelo sim pelo não vou comprar um litro de cerveja enquanto o multibanco está a ser utilizado, pago finalmente, regresso a casa, procuro o tabaco, não o encontro, procuro novamente, continuo a não encontrar: «FODA-SE! Perdí o tabaco, tinha tabaco até Domingo, que palhaçada, andas tu a dourar ao sol de Abril para ganhares uns trocos e te sentires contente por o teu tabalho começar a ter aceitação e perdes-me o tabaco, ganda nabo!, pareces rico.»