segunda-feira, 24 de abril de 2017

Schussenried

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É agora o domínio dos aranhiços
com uma reprodução no quarto onde se fuma
barcos do Dufy e há também
um pouco de esperança no ar que se respira
porque tu vens com o teu olhar alucinado
trazer-me todo o afecto que não cabe no mundo
porque está à margem do mundo e as janelas
não impedem a passagem do nevoeiro
que transporta consigo sempre a mesma imagem

Deus não passeia por aqui por falta de tempo
ser Deus é uma profissão fatigante
falo com quem me ama e digo que estou verde
-- ou amarelo? E
que tem isso a ver com este humilde
alinhar de palavras? Que digo e como?

Se posso ainda amar, sofrer, residir
neste funambulesco castelo é porque
a mesma imagem se repete sempre
em cada gesto, em cada porta bem guardada,
em cada desejo proibido. E no entanto
sou livre, pois a mesma imagem vem
reproduzir-se no papel em que escrevo
e nas palavras que viajam na espessa atmosfera
de ilusão e sofrimento que me envolvem

Respiro a liberdade em cada olhar
dos meus sonambulos companheiros de estadia

O amor é música que se vai apagando lentamente
até ser um murmúrio até ser
uma voz em surdina, um murmúrio que desenha
no ar a mesma imagem, sempre a mesma.

Que digo e como? Se algo move ainda
os braços do amor e do desejo é apenas
a imagem repetida que transfere
o meu sangue para as veias dum mundo alheio ao meu

Que digo e como? Nada existe
para compreender em geometria.
Há um navio que parte, outro que fica. E as bandeiras
não flutuam. Estão coladas
na porta do quarto de fumar.

Cortei as cordas, perdi as folhas dispersas
do calendário que nunca utilizei. E todavia
não há hora, instante ou movimento
que não transporte comigo a mesma imagem.
Psychiatrisches Landeskrankenhaus
Schussenried, Janeiro 1966
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Manuel de Castro

página 183
em 'Bonsoir, Madame'

edição Alexandria / Língua Morta 044, Dezembro 2013, reimpressao Março 2015

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