quarta-feira, 10 de maio de 2023

129€

«Um dia destes ainda hei-de revelar que o Clemente é meu amigo, coitado, podia haver piores castigos, além disso é manco, mas se for preciso alombar sete andares de escadas em construção com tijolos a tiracolo e a troco de 50€ mais despesas ele dá o ok, alomba, recebe a pasta e depois mete baixa. O Clemente é o maior, além disso, tem sistema de som, tem coisas que nem o diabo ouve, quanto mais a amiga, os amigos esses ouvem os ubíquos que caem bem em qualquer anúncio, está já a pensar, diz-me ele, em comprar um espertafone 6g, e parti-lo em microdoses, como lhe diz o amigo médico e ele plagia e reconta: mais vale dois pássaros na mão que um a voar, fumar dois em vez de um, se vos dissesse que tudo em Clemente é ilegal seria uma ilusão dos sentidos e uma alucinação do escrevedor, ele até pensa: qualquer dia hei-de contar a alguém que »
Clemente pára de escrevinhar no burrofone e bebe um gole de água, está no café a tomar café, está a escrever o relatório. Mas depois pensa: isto que escrevi não faz qualquer sentido, comecei a pensar em alhos e escrevi bugalhos, por isso é que prefiro a caneta e o papel, a interface com o cérebro e seu pensamento é mais linear e não perco o fio condutor.
O café está quase vazio, ao fundo três senhoras tomam cariocas de limão, o irmão do falecido Tone bebe uma súrbia de pé ao balcão, o patrão vende raspadinhas, Clemente está a ter um dia difícil, ele bem que tentou desabafar ao almoço, começou por dizer: -- Pai, há dias em que trabalhar é impossível! Mas não foi só o...
-- Vá lá, eu quero comer, não quero ouvir problemas do trabalho!
-- Mas home, deixa-o contar!
-- Prontos!, eu não digo nada, ouçam lá o Costa e o Marcelo, eu cálo-me, eu depois escrevo o relatório em vez, é por isso que uma mulher é precisa às vezes! Mas é a nossa mulher e não a dos outros!
O meu pai ri-se, a minha mãe, coitada, ouve mal e não percebeu: -- O que disseste?
-- 'Tava a dizer que uma mulher ainda nos ouve.
-- Tens de arranjar uma nova. 
-- É, vou meter um anúncio, olha, foi assim que a Agustina fez, meteu anúncio, recebeu as propostas, fez três entrevistas e depois escolheu. Ah, foda-se logo à noite vou ter de levar com o festival da canção, só música para atrasados mentais, o que vale é que eu deito-me às nove e durmo até amanhã e fico como o aço!
-- Vai caminhar.
-- Vou caminhar para o café.
No caminho para o café, Clemente irrita-se com os seus botões, pensa «seria tão bom viver e nada escrever, tudo o que escrevo é uma reacção àquilo que não consigo dizer a ninguém, porque ninguém quer saber, ninguém quer ouvir, e depois salta-me a tampa, expludo, perco a razão e acabo a pedir desculpa, estou danado.»
Clemente tem com ele um livro de Fernando Assis Pacheco, está a gostar da história do galego Benito e da maneira como o chavalo vem com a mânfia dos amigos para Portugal ganhar trocos por caridade, ao fim de uma temporada ganha o suficiente para alimentar os irmãos lá em Casdemundo. Clemente parou de escrever, pensa em Benito e nos amigos que se fazem à vida, lembra que escreveu que está do lado dos assalariados, dos mendigos e dos vagabundos, olha para o fundo do café, o Mário Tone aproxima-se, pergunta-lhe se não quer comprar uma caixa para guardar o tabaco, Clemente ri-se e diz que não, e recorda que ainda hoje de manhã não conseguiu dormir e se pôs a falar sozinho ao som de On the Corner do Miles Davis, verborreava ele: «eu, amigo dos calões? Pó caralho!, amigo nada, quero distância, eles só entendem a lei da bala, é-se amigo deles, compreendemo-los, porque já passámos pelo mesmo, dá-se uma folga, e eles... pó caralho!»
Clemente sai do café, volta para casa, «não vou descansar enquanto não escrever, e depois de escrito, posso esquecer e dormir, o patrão disse: Clemente, vais ter aqui o Marlon contigo estes dois dias duas horinhas, vais-lhe ensinar o serviço. E eu: merda, agora vou ter de fazer de professor mas tábem, ele depois faz as minhas folgas e eu descanso. Caralho!, ensinei-lhe tudo, fui amigo dele, despachei-o ao fim de uma hora porque estava a ficar seco de tanto falar, ele até me chamou de Don Clemente e tal, e depois o gajo que não tem onde cair morto faz uma coisa destas, e eu ainda não dormi porque estou agoniado»
-- Mas o que é que o Marlon fez?, pergunta quem gosta de perceber o que lê.
Bem, o Marlon é quem me substitui ao fim do turno de trabalho, diz Clemente aos seus leitores. Às vezes, é o Clemente que substitui o Marlon. Clemente chega sempre com quinze, vinte minutos de antecedência. Já ao Marlon é preciso ligar para o acordar porque ele se esqueceu de pôr o despertador.
-- Pois é, Marlon, disse-lhe Clemente hoje de manhã, -- se tu tivesses de apanhar autocarro para vir trabalhar... queria ver a que horas chegavas, tu gostas de sair cedo mas chegas sempre tarde, e moras aqui ao lado.
-- Não diga ao patrão...
Saltou a tampa ao Clemente porque o Clemente tinha telefonado a acordá-lo e ele dissera cinco minutos, dez minutos depois Clemente telefonara ao patrão a queixar-se e ele dissera que o Marlon precisava de levar nas orelhas e dissera também para lhe dizer que ia contar ao patrão. Vinte minutos depois da hora, Marlon chegava finalmente.
-- É uma falta de respeito, estou aqui há doze horas, não tens qualquer respeito pelo trabalho dos teus colegas, mas depois quando é a dona Mari que te substitui estás sempre com pressa, não podes fazer aos outros o que não queres que te façam a ti.
-- Desculpa, senhor Clemente, não diga ao patrão!
-- Eu não digo nada, não estou aqui para foder ninguém!
A troca de turno termina quando se conta o dinheiro em caixa, e quando Marlon, de sessenta e dois euros em notas e moedas do apuro da bolsa de bebidas, contou cento e vinte e nove euros (129€) e fez o milagre da multiplicação dos peixes... Clemente disse: está certo, e saiu porta fora e não mais dormiu e não mais deixou de falar sozinho repetindo: «só de chicote, só à lei da bala, nem contar sabe, ou faz de mim burro e está-se a cagar, ou é burro mesmo, se eu não o chibasse ao patrão ele não muda de atitude, não trabalha bem e depois pede desculpa e fode os colegas, caralho, estou condenado a ser capataz, de qualquer modo o patrão precisa dele, não o vai despedir, e se o despedir não há quem faça as minhas folgas e eu vou ser obrigado a trabalhar mais, estou fodido!


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