domingo, 14 de maio de 2023

O Alma-Grande de Miguel Torga

 


«O Alma-Grande de Miguel Torga»
óleo sobre papel, tamanho A2
2023 ZMB

A igreja católica tem o sacramento da Extrema-Unção que é aplicado aos crentes que se encontram em fase terminal de vida, geralmente quando os médicos já dizem aos familiares «que não passa desta noite.»

É um sacramento antigo que visa preparar a alma do futuro defunto para o suplício que o espera no além: esperar que o deus lhe abra as portas do Céu. É um sacramento que na nossa sociedade sobrevive ainda em muitos lares, aqueles mais ligados à crença e que estão mais disseminados na paisagem agrária, ou seja, nas aldeias. 

Se o futuro defunto ainda está consciente quando o padre chega à casa familiar para lhe aplicar o sacramento, então o padre confessa-o dos pecados e assegura-se que o cristão não vai danado para o outro mundo nem abjurou e morre assim católico.

***

O livro Novos Contos da Montanha de Miguel Torga, do qual tenho a 6ª edição de 1975, começa precisamente com uma história chamada o Alma-Grande que fala dos costumes antigos numa aldeia do interior de Portugal na primeira metade do século XX. Nesta aldeia havia muitos cristãos-novos, ou seja, pessoas que foram por motivos políticos e religiosos obrigados a abjurar a sua crença original e obrigados a aderir ao catolicismo (por culpa da Inquisição).

O Alma-Grande era um homem que era contratado pelas famílias de descendência judaica para eutanasiar os enfermos que já não passavam daquela noite e assim evitar que o padre chegasse e lhes confirmasse antes da morte a sua imposta condição de católico. Judeu que era judeu queria morrer judeu e não cristão-novo.

Ora acontece que o Alma-Grande foi chamado para mais uma ocorrência, o senhor da casa não passaria dessa noite, disse à família o médico que nem sabia a doença que o enfermo tinha, o filho do enfermo era uma criança, o Alma-Grande entra em casa, é levado ao quarto onde está o enfermo desmaiado, o experiente Alma-Grande leva as mãos ao pescoço do enfermo para esganá-lo mas o enfermo acorda, olha-o nos olhos e debate-se, faz barulho, luta pela vida e para não ser morto, o filho do enfermo entra no quarto, vê o que não compreende, o Alma-Grande desiste e sai do quarto, vem embora derrotado porque não conseguiu cumprir o papel que a família lhe pedira.

A verdade é que o enfermo recupera a saúde e afinal ainda viverá o suficiente para, não tendo esquecido a cara do Alma-Grande que sabe o que o espera, o esganar por vingança numa futura tarde no monte em frente ao filho e assim fazer este compreender o que se passara naquela noite.


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