sábado, 29 de junho de 2024

-- O senhor deixou de fumar, sr Rogério?

 A campaínha toca no hotel. Rogério pensa: -- Deve ser um hóspede novo, se não teria introduzido o código da fechadura electrónica. Caminha ao longo do corredor e vê pelos vidros da porta que é a dona Beatriz que ali está. Abre a porta. 

-- Ó sr. Rogério que saudade. Estava à espera do sr. Duarte...

-- Esse devia ser o antigo empregado, agora sou eu de novo.

-- Que bom, sr. Rogério. O senhor está bem. Deixe-me dar-lhe um abracinho.

O sr. Rogério abre os braços e inclina a coluna para a frente. A dona Beatriz, cota de setenta e cinco anos e de palmo e meio de altura, desaparece debaixo do corpo rodiniano do sr. Rogério que sorri.

-- O senhor deixou de fumar, sr Rogério?

-- Não, mas reduzi, já não fumo tanto.

-- É que o senhor já não cheira a tabaco nem as suas roupas, está melhor assim.

-- Obrigado pelo seu carinho, dona Beatriz.


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Learning to be mad in a dream


 

Learning to be mad in a dream,

óleo sobre aglomerado de madeira, 76cm por 88cm, 2024 ZMB


O título deste quadro é um verso de Ginsberg

no poema Kaddish dedicado à sua mãe,

doente ou num mundo alternativo não necessariamente melhor.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

A mota como instrumento de fé

Eu não tenho vida literária, tenho dois amigos escritores com quem de vez em quando trcoo emails, além disso tento chamar a atenção de editoras e críticos para os meus textos que, penso, merecem publicação.
O Pacheco fala da técnica do abafador para justificar os silêncios e revisionismos contra si.
Às vezes, também penso que me abafam, mas não são as poucas cópias em papel que já publiquei que fariam de mim alguém falado e conhecido e não parece haver granfo em lado nenhum para investir em mim ou porque mais altos valores se alevantam e, por isso, a minha existência é apenas virtual, eu existo mas não apareço.
Mas tenho vida além dos livros e compreendo já que não há solução para o absurdo de viver e só sei que temos de viver e viver é a nossa cruz.
Tenho um colega que é mais novo que eu, ele era aluno repetente na turma da minha irmã, não tem sequer o nono ano. Não é portanto um amigo com quem fale de livros ou discos, não é um amigo literário, mas é o amigo Povo, como ele pensa pensa o povo, o povo que chama bagaço à aguardente, e por isso vou chamar ao meu amigo de Bagaço.
O Bagaço está doente. Ele não fala de livros nem música nem filmes, ele fala de tecnologia, de TVs, de boxes, de cabos HDMI, saca do pirate bay 500Gb da Balada de Hill Street, viu as várias seasons e depois apagou e não chegou a ver lá o Eddie Murphy, fala de pacotes de telecomunicações mas depois acaba a dizer que está a ganhar um quisto sebáceo ao fim das costas de tanto estar deitado a ver a Netflix em directo por iptv, mandou vir a box mas ela já perdeu a graça, o Bagaço está deprimido e agora diz que vai comprar uma moto. A mãe empresta se ele deixar de fumar e se for uma moto zero km mas ele prefere uma usada que é mais barata. Se a mãe não mudar de ideias está a pensar arranjar um part time nos seus dois dias de folga, eu chamo-lhe a atenção para o seguinte:
-- Tu estás doente amigo, estás deprimido, e vais afogar-te em créditos e ainda deixar de fumar? E por uma mota?
As palavras não foram exactamente estas, tive pena de não ter gravado a conversa, ele mandou mensagem para irmos tomar café, mas estava no anexo em chinelos a curtir o calor da tarde de são joão e a pintar e respondi: vem antes a minha casa, ouvimos um cd ao vivo do bob marley que arranjei e fumamos. Assim foi e ele apareceu. Pediu algo para beber e eu não tendo bebidas alcoólicas ofereci-lhe uma caneca de leite, ele começou a falar, debitou discurso durante três horas, eu até já estava cansado de tanto o ouvir, fiz um café de saco para nós dois, e vi que ele não tem remédio, o Bagaço é capitalista, vive totalmente embrenhado no consumismo, e a sua solução para as suas depressões é comprar. Eu sei o que isso é, gastar gastar adquirir cds e livros: isto é a minha solução. A solução do Bagaço é menus completos no restaurante, equipamentos informáticos para se sentir confortável e assistir a um espectáculo num ecrã do seu quarto: tásaver?, full hd man, ecrã de 19 polegadas. Agora, a mota como instrumento de fé, de continuar a viver sem pensar nos problemas existenciais.
Eu ouço e protesto, digo: Mas deixar de fumar? E o cigarrinho com o café depois de uma francesinha no Escritório? E quando fores beber uma cerveja ou uma noitada com um sócio que esteja disponível... nada de fumo? Espero que tenhas sorte, mas se já agora se nota que andas ansioso e angustiado, tens palavras a mais na boca, como vais aliviar a tensão sem um cigarro? Vais ficar pior.
-- Conheço muita gente que deixou de fumar.
E depois começou a contar histórias de quando fumou pela primeira vez na vida: aos onze na Prelada numas reuniões às quais os pais iam numa cooperativa de habitação, apanhava as beatas do chão. Depois, o Caladinho que roubava a avó e depois comprava volumes de tabaco e iam todos para a bouça dos Coriscos fumá-los, o Caladinho abria os volumes e atirava ao ar e o Bagaço contava que chegava a casa com quatro e cinco maços no bolso, mas tinha que fazer uma cova no quintal e escondê-los porque se os pais soubessem.
Acabou a dizer: -- Também devias deixar de fumar.
Eu ri-me. Pensei: O objectivo para o qual vai viver agora ainda vai torná-lo um reaça antifumador.

sábado, 22 de junho de 2024

A cliente esparramou tudo na mensagem, ficaram mal

Depois de ambos concordarmos que por estes dias na televisão a qualquer hora só dá Ronaldo e mais dez, o meu pai muda de canal e põe nos bonecos do Canal 2.  Almoçamos. Eu corto um pouco do bife e digo:

 -- Pai, eu não sou contra a mãe das gémeas. Mãe é mãe. Nenhuma mãe, nenhum pai deseja ver morrer um filho, uma mãe faz tudo pela vida dos filhos, ou não é assim? Não estou contra a mãe, a mãe fez o que podia para salvar as filhas. Eu estou contra a cunha, contra o facto de ela ter passado à frente de outras famílias que não tinham o mesmo poder de influência, é justo uma mãe salvar um filho mas pode ter havido outros filhos que entretanto morreram porque não tiveram acesso ao medicamento porque, lá está, não tinham cunha.

-- Isto é tudo para lixar o Marcelo.

-- Imagina, pai, o seguinte, imagina que... eu não porque estou fora do mercado de trabalho, mas imagina o meu sobrinho, o teu neto. Ele tem quantos? 15? Pois imagina-o aos 25. Não sei bem o que ele quer seguir, ele às vezes fala de robótica... Portanto, imagina que ele aos 25 anos está a concorrer a um anúncio publicado por qualquer organismo empresa sei lá. Imagina que ele fez a licenciatura, fez o mestrado, até já tem alguma experiência e uma boa nota aos 25 anos. Imagina que ele concorre ao anúncio e com ele mais duzentos e só há uma vaga. Agora imagina que ele não é escolhido porque o outro candidato filho do senhor fulano de tal, amigo de alguém, entra em vez do teu neto mesmo tendo piores qualificações? O que é que isto diz do mundo? Diz o que toda a gente pensa: Estudar para quê? O filho do patrão fica com o lugar!

-- O filho do patrão tem direito ao lugar, a empresa é dele!

-- É dele? Alto aí, não é bem assim, e se o filho do patrão arruinar a empresa, fali-la, acumular dívidas, desgraçar os empregados? A empresa é dele mas nenhum pai quer ver a sua empresa falida, o que muitos pais fazem é vender o negócio e deixar de herança o dinheiro.

-- Olha o Belmiro, deixou a empresa aos filhos.

-- Sim, mas os filhos são gestores qualificados, não andam por assim dizer, na droga! Dou-te outro exemplo, o nosso vizinho trabalha num hotel e contou-me há dias: trabalha lá até o patrão bater a bota porque se sente lá bem, mas quando for a filha a tomar conta do hotel ele despede-se logo.

-- Porquê?

-- Porque ela não sabe gerir, não saberia abastecer a casa dos produtos necessários, papel higiénico etc, queijo fiambre café para o pequeno almoço, não saberia pagar salários, etc ainda há dias uma cliente deu avaliação negativa, um em dez, e foi culpa dela, da sua arrogância, a cliente esparramou tudo na mensagem, ficaram mal.



terça-feira, 18 de junho de 2024

Vai passar muita fominha

 -- É, não vou levar dinheiro nenhum para a cova, vou derretê-lo todo eheheh vou começar a ir todas as noites às putas e de taxi, e vou dar bónus...

-- Ena pá!

-- E vou dar vinho francês a todos os sem-abrigo, vou tomar café ao Dubai de helicóptero...

-- Você ganha assim tanto?

-- Mas gata, não te disse? Eu ganhei o euromilhões!

-- Oba, a mulher que te levar vai ser feliz...

-- A mulher que me levar vai passar muita fominha eheheh

-- Ué?

-- Vou-lhe dar discos para comer.

-- Tu e os teus discos! Ainda vou estralhaçá-los todos!

-- Se você fizer isso eu corto-te o pescoço, Óbiste? É que eu gosto mais do disco de Clara Nunes do que de você... mas tu vens logo atrás, viu?



segunda-feira, 17 de junho de 2024

Rastaman vibration positiv

não sou campiom na culinária mas sei o mínimo: a comida precisa de sal, e se possível algum tempero.
A vida é igual e precisa de sal e de tempero. O sal ganhamo-lo quando a luta nos fede de suor, a gente sente-lo na língua em dias quentes e que apetece mergulhar a cabeça como a avestruz. Quanto ao tempero, também não precisamos de temperar com sangue o ferro fundido do nosso arpão como o Ahab, mas o tempero consegue-se fazendo das fraquezas forças e do mole surgir o aço,
Se tudo fosse fácil, se eu não precisasse de ganhar dinheiro para o meu vício morreria de overdose, se tivesse todos os livros e mais algum nunca saberia qual livro ler em primeiro lugar e não leria nenhum, se comprasse um disco todos os dias já não me lembraria do som que ouvi quando fiz amor pela primeira vez. é a luta por ter o mínimo: o sal, o salário, mas a luta pelo justo direito e a cada conquista com a nossa luta e com o nosso suor e labuta e não desistência, chega-nos à boca esse tempero, essa epifania, essa vontade de ter alguém com quem partilhar a vitória e o fruto, comprar-lhe a agulha e a linha para ela nos coser as meias! e depois, escrever o conto do encontro.
bom domingo

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Milho e feijão e figos de mel

 Mãe linda, a tua homónima emigrou para as franças e por lá viveu e fez obra cantando a mala de cartão. Tu, mãe linda, foste a única dos teus irmãos que tinha algum jeito para as letras e os números e talvez por isso deixaste a aldeia para aos quinze anos estares hospedada numa pensão para meninas estudantes em Viseu e a terminar o antigo quinto ano do liceu. Para isso, contribuiu também os avós terem um «padrinho» que se interessou e custeou a despesa de educação da menina. Às vezes, contavas que lá na pensão se ouvia baixinho a bbc e que quando o Américo Tomaz foi a Viseu, os estudantes cantaram Angola é nossa? Já Foi, e contavas também que comias arroz com sabor a coelho ao jantar porque a coxa era para o dono da pensão. Eram outros tempos. 

E depois, a cunha desse padrinho arranjou-te um lugar de dactilógrafa em Lisboa e o avô levou-te lá de comboio e deu-te uma nota de cinquenta escudos dizendo que não podia dar mais, e tu fizeste promessa que devolverias todo o dinheiro investido e além de dar explicações, começaste a trabalhar na secção dos migrantes do que seria depois a Caixa de Previdência e hoje é a SS. Também era habitual eu rir-me quando contavas que um dos devedores à Caixa de cujo processo tratavas no contencioso era um ilustre empresário de nome Amável de Deus Todo Bom, e talvez por causa deste surreal nome inventei eu o zulmiro maria belo e o ximenes laurindo ameixa, este um primo verdadeiro homem do cadeirão com passagem por direcções administrativas. 

Mãe linda, fizeste e tiveste uma carreira profissional e ao mesmo tempo geriste uma casa e uma família, foste e és mãe e mulher e avó, foste professora de nós e cuidadora de meu pai, civilizaste-o e cuidaste dele na doença. Porque os restaurantes baseiam os menus do dia nos fritos e o pai tinha problemas na vesícula, ele não podia almoçar fora e, então, tu mãe linda levantavas-te às cinco e meia da manhã para lhe fazeres o almoço para ele levar na marmita quando saía uma hora depois. Ele para quem a coisa mais importante é o trabalho e que para ganhar mais recusou trabalhar no armazém como escriturário e preferiu trabalhar na rua, nos poços de telecomunicações, ao sol e à chuva, abrindo à picareta buracos para consertar avarias nos cabos telefónicos que antes de serem em fibra óptica eram de chumbo e que com a humidade enferrujavam. Preferiu trabalhar na rua porque o salário era maior e ele queria construir uma casa na aldeia. Por isso, enquanto os meus colegas iam de férias para o Algarve nós íamos para aldeia construir a casa e apanhar milho e feijão e figos de mel. Outros tempos.

Mãe, trabalhaste até a avó dar de si e a casa na aldeia ficar abandonada e ela vir morar connosco. Reformaste-te para cuidar da tua mãe, minha avó. Lembras a lágrima no olho da avó no hospital quando ela teve o último derrame cerebral, o último avc e morreu e eu nesse tempo em vésperas de ser internado pela primeira vez em psiquiatria, cheguei a dizer ao meu pai: A avó não morre! Quanta insensibilidade a minha naquele momento em que uma ambulância levava uma vez mais a minha avó de urgência para o hospital, as minhas palavras fizeram sofrer e hoje, menos talvez, ainda fazem. Mas e apesar da rispidez a minha loucura foi soberana e a minha avó só morreu seis meses mais tarde quando eu já estava também em Lisboa a fazer de programador informático e a ganhar três salários mínimos, a empresa ainda enviou por consideração uma coroa de flores para pôr na campa e dois meses mais tarde estava a despedir-me por justa causa porque eu resolvi insultar chefes e colegas. Outros tempos.

Mãe linda, disseste-me há dias no hospital onde estás internada: A vossa mãe está a chegar ao seu fim...

-- Não, mãe, inda vais viver muitos anos. E nós estaremos aqui a visitar-te e a ajudar-te do modo como sempre nos ajudaste. 




quarta-feira, 5 de junho de 2024

Capital humano em time-sharing

 Pai, quando me ligaste eu estava no sr. António a carregar o telemóvel. Depois, vim a casa buscar dinheiro e saí para ir ao lidl. Quando passei a ponte do brás-oleiro e virei para o lidl... naquela rua a descer antes de virar à esquerda para o lidl... vinha uma senhora que devia vir do lidl e que se vem aproximando, e quando está a passar por mim... olha, podia ser a mãe, eu estava a olhar para ela, ela dá um passo e cambaleia, e eu penso olha, está a cair, e enquanto estou a pensar em ir ajudá-la, foi tudo instantâneo, ela dá outro passo e cai ao meu lado. A senhora está bem? Deixe-me ajudá-la, deixe-me levantá-la. Oh, ajudem-me!, o senhor não pode comigo, ajudem-me! Ninguém vem ajudar! E pai, estás a ver a mãe quando cai e parece um peso morto, assim a senhora estava, eu tentei agarrá-la por baixo dos braços e erguê-la mas pesava uma tonelada. Aí, ela disse Eu tenho uma prótese na perna, ajudem-me, o senhor não pode comigo. Nestes cinco segundos veio em nosso auxílio um rapaz que parecia sem-abrigo e que estava no granjeiro à beira da ponte e ajudou-me a levantá-la, eu sozinho não conseguiria. Pusémo-la de pé e um joelho estava a sangrar e cheio de areia, ela disse Obrigada, mas preciso de pôr água. Mas aqui não há água, e começámos a caminhar com ela, eu de um lado e o senhor sem-abrigo do outro até ao cimo da rua, até à ponte. Eu pensei A senhora precisa de ir fazer um curativo, ou pelo menos ir a um café à casa-de-banho limpar o joelho, mas aqui não há e eu não tenho tempo, tenho a minha própria mãe que vai ter alta hoje daqui a pouco do hospital. E então deixámo-la junto à ponte e eu disse-lhe Senhora, segure-se ao corrimão e voltei para trás para ir ao lidl comprar os bifes de frango como tu tinhas pedido para eu comprar porque era para a dieta da mãe, eu não podia ficar para ajudar a senhora. Então, fui ao lidl, cumprimentei um sem-abrigo que costuma estar à porta a pedir e entrei para comprar os bifes embalados, pensei em comprar uma garrafa de água para dar à senhora se ela estivesse sentada na paragem junto à ponte, mas acabei por não comprar porque não sei se ela lá estaria. Paguei e separei oitenta cêntimos para dar ao sem-abrigo que estava à porta, mas quando saí ele já lá não estava, caminhei no sentido da ponte e virei para casa, vi um autocarro a arrancar e vi a senhora que tinha caído sentada na paragem com sinais de aflição, dois velhotes falavam com ela, espero que eles a tenham ajudado, eu senti que deveria ter feito mais por ela, mas eu tinha que cuidar da minha própria mãe, não somos computadores nem capital humano em time-sharing dando a ilusão de sermos totalmente dedicados, não conseguimos ajudar duas pessoas ao mesmo tempo, e eu não pude ajudar mais a senhora porque tinha a minha mãe para ajudar...

domingo, 2 de junho de 2024

Emigrar para a Lua

 A miséria intelectual naquela casa continua em alta. Nunca houve a questão da miséria alimentar pois sempre houve dinheiro para algum grão, couve e batatas, e a carne era-lhes fornecida pelo galinheiro que também albergava coelhos. A mãe aprendera a fazer milagres, foi isso que a sua mãe lhe ensinou e a sogra lho fez aplicar. Chegou a mãe a casa da sogra e nada havia para comer, a sogra foi ao galinheiro e pegou num galo preto e disse: Toma e agora comei. A mãe matou o galo, do sangue fez cabidela e uma sobremesa de sangue cozido numa tijela como gelatina e o pai comeu também. O pai apenas ganhava o dia e chegava a casa para jantar mas nunca se preocupava com tudo o que fora necessário fazer para ter o jantar pronto a horas. Também não era do seu interesse pensar em gastar algum num carrinho de bebé, nem o próprio médico se compadeceu e o sugeriu quando a mãe se queixou dizendo-lhe que já não podia com a filha ao colo, talvez nem houvessem ainda carrinhos de bebé e talvez por isso a mãe ganhou um problema na coluna que ficou torta de tanto levar uma criança ao colo, outra pela mão, seguindo o filho mais velho à frente a caminho da escola, ainda havia caminhos e bouças nesse tempo, hoje tudo mudou. O filho só anos mais tarde se apercebeu que um lindo pato ou pata coexistia os seus dias lá em baixo nas traseiras juntamente com galinhas e coelhos, mas foi grasnar de poucos dias, pois a mãe largou as camisolas de lã feitas à mão para descer as escadas com um facão na mão direita e chegar ao antro das galinhas, centro arqueológico que hoje constitui o Annexus 51, e degolar o pato para depois todos nós comermos ao almoço. Lembro-me de me perguntar o que terá sido feito ao bico do pato mas depois lembro-me também da moca com que a mãe matava à paulada certeira na nuca os coelhos que tão saborosos eram.

Por isso, a miséria não era alimentar porque não passavam fome, a questão era intelectual, existencial. Os valores eram os de ontem e o futuro prometido era trabalhar para acumular, para teres um carro, uma casa, uma família, filhos para prolongar o nome e a propriedade acumulada, e sobretudo trabalhar para te manteres caladinho, porque caladinhos somos todos poetas da vida e do dia a dia e não causamos problemas à sociedade nem à autoridade, ou porque estamos a trabalhar ou estamos a descansar do trabalho e se não temos direitos laborais pelo menos temos direitos familiares, o que faz com que já não seja preciso ir ao talho a pé ou de autocarro porque o pai pode lá ir de carro, e tudo porque estamos a descansar para ir logo trabalhar outra vez. Trabalhar aliena. Todos os dias se vêem patrões-ratoeira a convidar ratas com ramos de gardénias e rosas dizendo que mudaram de atitude e depois, na concorrência, vemos lobos dizerem às ovelhas que se tornaram vegetarianos. Ora, ninguém pede a um escravo ou a uma ovelha que tenha ideias próprias e se se lhe causa algum tipo de problema ou transtorno dá-se-lhe um garrafa de aguardente ou do melhor scotche importado e logo ele se cala e justifica o dono quando este usa o vidro dessa garrafa como lâmina na garganta da revolta (como no «Dina»), porque se não trabuca não manduca e por isso, trabalha filho e não me chateies com os judeus nem com o Trump.

E quando o filho declara reticências com o trabalho sem descontos e o dinheiro justo que recebe por trabalhar seis noites por semana, o pai goza com o pagode e diz todo contente e cheio de orgulho mas onde se nota o cinismo de quem se está a cagar com o destino do próprio filho:

-- Ainda te vêm buscar eheheh. Dá-me o teu dinheiro para eu to guardar!

-- Sim pai, tu que nem uma nota de vinte euros me dás porque dizes que é ilegal, gozas com a polícia quando eu todas as semanas deposito a féria. Para ti, o importante e o mal não é ser preso, o problema seria se o teu filho fosse preso por tráfico de droga, isso é que para ti seria grave.

E eu pergunto se tenho o pai que mereço ou se mais valia emigrar para a Lua.