A miséria intelectual naquela casa continua em alta. Nunca houve a questão da miséria alimentar pois sempre houve dinheiro para algum grão, couve e batatas, e a carne era-lhes fornecida pelo galinheiro que também albergava coelhos. A mãe aprendera a fazer milagres, foi isso que a sua mãe lhe ensinou e a sogra lho fez aplicar. Chegou a mãe a casa da sogra e nada havia para comer, a sogra foi ao galinheiro e pegou num galo preto e disse: Toma e agora comei. A mãe matou o galo, do sangue fez cabidela e uma sobremesa de sangue cozido numa tijela como gelatina e o pai comeu também. O pai apenas ganhava o dia e chegava a casa para jantar mas nunca se preocupava com tudo o que fora necessário fazer para ter o jantar pronto a horas. Também não era do seu interesse pensar em gastar algum num carrinho de bebé, nem o próprio médico se compadeceu e o sugeriu quando a mãe se queixou dizendo-lhe que já não podia com a filha ao colo, talvez nem houvessem ainda carrinhos de bebé e talvez por isso a mãe ganhou um problema na coluna que ficou torta de tanto levar uma criança ao colo, outra pela mão, seguindo o filho mais velho à frente a caminho da escola, ainda havia caminhos e bouças nesse tempo, hoje tudo mudou. O filho só anos mais tarde se apercebeu que um lindo pato ou pata coexistia os seus dias lá em baixo nas traseiras juntamente com galinhas e coelhos, mas foi grasnar de poucos dias, pois a mãe largou as camisolas de lã feitas à mão para descer as escadas com um facão na mão direita e chegar ao antro das galinhas, centro arqueológico que hoje constitui o Annexus 51, e degolar o pato para depois todos nós comermos ao almoço. Lembro-me de me perguntar o que terá sido feito ao bico do pato mas depois lembro-me também da moca com que a mãe matava à paulada certeira na nuca os coelhos que tão saborosos eram.
Por isso, a miséria não era alimentar porque não passavam fome, a questão era intelectual, existencial. Os valores eram os de ontem e o futuro prometido era trabalhar para acumular, para teres um carro, uma casa, uma família, filhos para prolongar o nome e a propriedade acumulada, e sobretudo trabalhar para te manteres caladinho, porque caladinhos somos todos poetas da vida e do dia a dia e não causamos problemas à sociedade nem à autoridade, ou porque estamos a trabalhar ou estamos a descansar do trabalho e se não temos direitos laborais pelo menos temos direitos familiares, o que faz com que já não seja preciso ir ao talho a pé ou de autocarro porque o pai pode lá ir de carro, e tudo porque estamos a descansar para ir logo trabalhar outra vez. Trabalhar aliena. Todos os dias se vêem patrões-ratoeira a convidar ratas com ramos de gardénias e rosas dizendo que mudaram de atitude e depois, na concorrência, vemos lobos dizerem às ovelhas que se tornaram vegetarianos. Ora, ninguém pede a um escravo ou a uma ovelha que tenha ideias próprias e se se lhe causa algum tipo de problema ou transtorno dá-se-lhe um garrafa de aguardente ou do melhor scotche importado e logo ele se cala e justifica o dono quando este usa o vidro dessa garrafa como lâmina na garganta da revolta (como no «Dina»), porque se não trabuca não manduca e por isso, trabalha filho e não me chateies com os judeus nem com o Trump.
E quando o filho declara reticências com o trabalho sem descontos e o dinheiro justo que recebe por trabalhar seis noites por semana, o pai goza com o pagode e diz todo contente e cheio de orgulho mas onde se nota o cinismo de quem se está a cagar com o destino do próprio filho:
-- Ainda te vêm buscar eheheh. Dá-me o teu dinheiro para eu to guardar!
-- Sim pai, tu que nem uma nota de vinte euros me dás porque dizes que é ilegal, gozas com a polícia quando eu todas as semanas deposito a féria. Para ti, o importante e o mal não é ser preso, o problema seria se o teu filho fosse preso por tráfico de droga, isso é que para ti seria grave.
E eu pergunto se tenho o pai que mereço ou se mais valia emigrar para a Lua.
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