quinta-feira, 13 de junho de 2024

Milho e feijão e figos de mel

 Mãe linda, a tua homónima emigrou para as franças e por lá viveu e fez obra cantando a mala de cartão. Tu, mãe linda, foste a única dos teus irmãos que tinha algum jeito para as letras e os números e talvez por isso deixaste a aldeia para aos quinze anos estares hospedada numa pensão para meninas estudantes em Viseu e a terminar o antigo quinto ano do liceu. Para isso, contribuiu também os avós terem um «padrinho» que se interessou e custeou a despesa de educação da menina. Às vezes, contavas que lá na pensão se ouvia baixinho a bbc e que quando o Américo Tomaz foi a Viseu, os estudantes cantaram Angola é nossa? Já Foi, e contavas também que comias arroz com sabor a coelho ao jantar porque a coxa era para o dono da pensão. Eram outros tempos. 

E depois, a cunha desse padrinho arranjou-te um lugar de dactilógrafa em Lisboa e o avô levou-te lá de comboio e deu-te uma nota de cinquenta escudos dizendo que não podia dar mais, e tu fizeste promessa que devolverias todo o dinheiro investido e além de dar explicações, começaste a trabalhar na secção dos migrantes do que seria depois a Caixa de Previdência e hoje é a SS. Também era habitual eu rir-me quando contavas que um dos devedores à Caixa de cujo processo tratavas no contencioso era um ilustre empresário de nome Amável de Deus Todo Bom, e talvez por causa deste surreal nome inventei eu o zulmiro maria belo e o ximenes laurindo ameixa, este um primo verdadeiro homem do cadeirão com passagem por direcções administrativas. 

Mãe linda, fizeste e tiveste uma carreira profissional e ao mesmo tempo geriste uma casa e uma família, foste e és mãe e mulher e avó, foste professora de nós e cuidadora de meu pai, civilizaste-o e cuidaste dele na doença. Porque os restaurantes baseiam os menus do dia nos fritos e o pai tinha problemas na vesícula, ele não podia almoçar fora e, então, tu mãe linda levantavas-te às cinco e meia da manhã para lhe fazeres o almoço para ele levar na marmita quando saía uma hora depois. Ele para quem a coisa mais importante é o trabalho e que para ganhar mais recusou trabalhar no armazém como escriturário e preferiu trabalhar na rua, nos poços de telecomunicações, ao sol e à chuva, abrindo à picareta buracos para consertar avarias nos cabos telefónicos que antes de serem em fibra óptica eram de chumbo e que com a humidade enferrujavam. Preferiu trabalhar na rua porque o salário era maior e ele queria construir uma casa na aldeia. Por isso, enquanto os meus colegas iam de férias para o Algarve nós íamos para aldeia construir a casa e apanhar milho e feijão e figos de mel. Outros tempos.

Mãe, trabalhaste até a avó dar de si e a casa na aldeia ficar abandonada e ela vir morar connosco. Reformaste-te para cuidar da tua mãe, minha avó. Lembras a lágrima no olho da avó no hospital quando ela teve o último derrame cerebral, o último avc e morreu e eu nesse tempo em vésperas de ser internado pela primeira vez em psiquiatria, cheguei a dizer ao meu pai: A avó não morre! Quanta insensibilidade a minha naquele momento em que uma ambulância levava uma vez mais a minha avó de urgência para o hospital, as minhas palavras fizeram sofrer e hoje, menos talvez, ainda fazem. Mas e apesar da rispidez a minha loucura foi soberana e a minha avó só morreu seis meses mais tarde quando eu já estava também em Lisboa a fazer de programador informático e a ganhar três salários mínimos, a empresa ainda enviou por consideração uma coroa de flores para pôr na campa e dois meses mais tarde estava a despedir-me por justa causa porque eu resolvi insultar chefes e colegas. Outros tempos.

Mãe linda, disseste-me há dias no hospital onde estás internada: A vossa mãe está a chegar ao seu fim...

-- Não, mãe, inda vais viver muitos anos. E nós estaremos aqui a visitar-te e a ajudar-te do modo como sempre nos ajudaste. 




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