O Pacheco fala da técnica do abafador para justificar os silêncios e revisionismos contra si.
Às vezes, também penso que me abafam, mas não são as poucas cópias em papel que já publiquei que fariam de mim alguém falado e conhecido e não parece haver granfo em lado nenhum para investir em mim ou porque mais altos valores se alevantam e, por isso, a minha existência é apenas virtual, eu existo mas não apareço.
Mas tenho vida além dos livros e compreendo já que não há solução para o absurdo de viver e só sei que temos de viver e viver é a nossa cruz.
Tenho um colega que é mais novo que eu, ele era aluno repetente na turma da minha irmã, não tem sequer o nono ano. Não é portanto um amigo com quem fale de livros ou discos, não é um amigo literário, mas é o amigo Povo, como ele pensa pensa o povo, o povo que chama bagaço à aguardente, e por isso vou chamar ao meu amigo de Bagaço.
O Bagaço está doente. Ele não fala de livros nem música nem filmes, ele fala de tecnologia, de TVs, de boxes, de cabos HDMI, saca do pirate bay 500Gb da Balada de Hill Street, viu as várias seasons e depois apagou e não chegou a ver lá o Eddie Murphy, fala de pacotes de telecomunicações mas depois acaba a dizer que está a ganhar um quisto sebáceo ao fim das costas de tanto estar deitado a ver a Netflix em directo por iptv, mandou vir a box mas ela já perdeu a graça, o Bagaço está deprimido e agora diz que vai comprar uma moto. A mãe empresta se ele deixar de fumar e se for uma moto zero km mas ele prefere uma usada que é mais barata. Se a mãe não mudar de ideias está a pensar arranjar um part time nos seus dois dias de folga, eu chamo-lhe a atenção para o seguinte:
-- Tu estás doente amigo, estás deprimido, e vais afogar-te em créditos e ainda deixar de fumar? E por uma mota?
As palavras não foram exactamente estas, tive pena de não ter gravado a conversa, ele mandou mensagem para irmos tomar café, mas estava no anexo em chinelos a curtir o calor da tarde de são joão e a pintar e respondi: vem antes a minha casa, ouvimos um cd ao vivo do bob marley que arranjei e fumamos. Assim foi e ele apareceu. Pediu algo para beber e eu não tendo bebidas alcoólicas ofereci-lhe uma caneca de leite, ele começou a falar, debitou discurso durante três horas, eu até já estava cansado de tanto o ouvir, fiz um café de saco para nós dois, e vi que ele não tem remédio, o Bagaço é capitalista, vive totalmente embrenhado no consumismo, e a sua solução para as suas depressões é comprar. Eu sei o que isso é, gastar gastar adquirir cds e livros: isto é a minha solução. A solução do Bagaço é menus completos no restaurante, equipamentos informáticos para se sentir confortável e assistir a um espectáculo num ecrã do seu quarto: tásaver?, full hd man, ecrã de 19 polegadas. Agora, a mota como instrumento de fé, de continuar a viver sem pensar nos problemas existenciais.
Eu ouço e protesto, digo: Mas deixar de fumar? E o cigarrinho com o café depois de uma francesinha no Escritório? E quando fores beber uma cerveja ou uma noitada com um sócio que esteja disponível... nada de fumo? Espero que tenhas sorte, mas se já agora se nota que andas ansioso e angustiado, tens palavras a mais na boca, como vais aliviar a tensão sem um cigarro? Vais ficar pior.
-- Conheço muita gente que deixou de fumar.
E depois começou a contar histórias de quando fumou pela primeira vez na vida: aos onze na Prelada numas reuniões às quais os pais iam numa cooperativa de habitação, apanhava as beatas do chão. Depois, o Caladinho que roubava a avó e depois comprava volumes de tabaco e iam todos para a bouça dos Coriscos fumá-los, o Caladinho abria os volumes e atirava ao ar e o Bagaço contava que chegava a casa com quatro e cinco maços no bolso, mas tinha que fazer uma cova no quintal e escondê-los porque se os pais soubessem.
Acabou a dizer: -- Também devias deixar de fumar.
Eu ri-me. Pensei: O objectivo para o qual vai viver agora ainda vai torná-lo um reaça antifumador.
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