sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Ilhas de Los Ladrones


'Conta-me como seria'
desenho a grafite em papel de 300grsm e grão fino
50cm por 70cm
2019
ZMB

Por mim seria assim
mas depois li que o General Tereso tem outras opiniões :)

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Tereso, entretanto, recebera o relatório do espião encarregado de vigiar Fausta. O relatório, embora na sua frieza burocrática, não omitia nenhum particular: Fausta e Doroteo, as bofetadas, a sova, o amplexo final, nada ali faltava. A Tereso pareceu-lhe, ao lê-lo, que todo o mundo escurecia diante dos seus olhos e de repente sentiu um violento desejo de entrar de chofre no quarto ao lado e matar Fausta por suas mãos. Mas pareceu-lhe uma vingança demasiado leve; e devorando a própria ira, pôs-se a andar de um lado para o outro pelo quarto. Tereso cobria das injúrias mais atrozes o nome de Fausta e uma após outra ia eliminando por demasiado suaves as várias formas de vingar-se que a sua fantasia indignada lhe ia apresentando. Matá-la era ainda pouco, pensava; era preciso que ela vivesse para sofrer e regosijá-lo com o seu sofrimento. Tereso pensava mandar golpeá-la brutalmente por qualquer dos seus sicários, de forma a arruinar-lhe a beleza; ou então encerrá-la como doida num manicómio; ou ainda confiscar-lhe todos os bens e mandá-la seguir o ofício para que nasceu numa casa de tolerância. Tereso, desde que estava no governo, nunca se havia servido do poder para as suas vinganças pessoais. Mas a sua carreira de general rebelde e quase salteador, antes da ascensão à presidência, estava recheada de atrocidades que andavam na boca de toda a gente. Naquele momento eram os anos da juventude que lhe saltavam à memória, carregados de sangue e crueldade.
Tereso passou ainda uns minutos a imaginar tormentos e ferocidades, caminhando de um lado para o outro no seu quarto; por fim, parou de repente e deu uma grande gargalhada. Quem o visse certamente o tomaria por louco; na realidade Tereso havia encontrado a vingança que lhe agradava. A Fausta, disse para consigo, não faria mal algum; mas todos os seus bens e os do irmão, produtos de ladroeiras antigas e recentes, seriam confiscados. E sob ameaça de morte, obrigá-la-ia a casar com Doroteo. O seu amado Doroteo. O criado analfabeto Doroteo. Ele seria padrinho deste belo casamento, madrinha aquela santa da duquesa que tanto havia manobrado para arranjar-lhe o encontro com Fausta. O matrimónio realizar-se-ia nessa mesma noite, na capela que se encontrava ao fundo da galeria dos bustos. Fausta era viúva: assim, ao marquês Sanchez que Deus tinha, sucederia o criado Doroteo. Depois, como viagem de núpcias, Tereso mandaria o feliz casal para as ilhas de Los Ladrones, sítio habitual de desterro, sufocado por um clima tropical e infestado de mosquitos; e ali deixaria aquele rico par de noivos a apodrecer us anos.
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páginas 159-160

'A mascarada'
Alberto Moravia
tradução de Rosália Braancamp
Edição Livros do Brasil, colecção Miniatura

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Bruxas e bruxinhas


'Bruxas e bruxinhas'
óleo sobre tela
50cm por 70cm
2019
ZMB


(FOR SALE, shipping is already added to the price)

it ships rolled up inside a tube

275€ (European Union and UK); 300€ (rest of the world)
payment to Rui Lourenço by paypal to
(
please add a note telling the ref: of the painting
Ref: 2019-Bruxas
)

Amor Louco



'Amor Louco'
óleo sobre tela
60cm por 80cm
2019
ZMB

Foi feita uma pequena alteração
para realçar a figura na parede





domingo, 22 de dezembro de 2019

Let's pinch JC and put a cat in!

the cat says: let's pinch jc and sneak the grass outta compton
lady cat says: i need the drink of jesus but i will accept your grass
momma mary and pappa joe say: heavenly bee dai neime hápi xxx mass <3 love





segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Como ajudar uma pessoa infeliz?

Tenho um amigo que leva uma vida triste. A lady@ saberá certamente a quem me refiro. Não lhe quero dar nome porque vou contar pormenores da sua vida, logo também me poderão chamar de cusco. Eis um exemplo que se repete todos os dias:
Acorda e tens uns trocos no bolso, vai ao café comer uma nata, tomar café e a metadona. Começa a dizer que está doente, anda cansado, está com gripe, o que vale é o Cegripe que o amigo lhe pagou. Eu ouço tudo e sei que ele está doente porque não tem dinheiro para comprar tabaco mas sei também que ontem em dia de temporal se fez à chuva para ir a um bar ver se encontrava dadores de dinheiro, sei porque o vi regressar, todo molhado e com os livros molhados debaixo do braço. Não tem guarda-chuva e se o tivesse não duraria uma viagem, ele e o vento dariam cabo do chuço.
É natural que esteja doente, e é fácil saber as causas e ver no que elas dão, acusar e dizer: estás doente porque não te ajudas a ti próprio. O mais difícil é dizer: como te ajudar? Acabo a dizer: só uma beata a pensar na recompensa eterna, só um irmão que seja uma mistura de católico com um predador se presta a ajudar, os outros como eu, envergonhados por ver a miséria em que um amigo, um vizinho vive, dão o pouco que têm e dizem entre costas: estás a precisar de um novo pai ou de uma mulher mãe e enfermeira.
Pois é, o meu amigo é velhote e está decadente mas é o único que vale ainda assim alguma coisa. Ele ainda luta por muito errada que seja a sua ideia. Escreve versos mas vive uma vida de nabo explorado pelos outros que com ele moram, e que não são velhos, ainda teriam um futuro se dele não tivessem desistido, limitam-se a beber, fumar e dormir. Como a ganza aumentou insanamente de preço, chegam a dormir dezasseis horas por dia à custa das pastilhas com cerveja.
Há dias, o meu amigo arranjou uma casa que lhe forneceria o almoço grátis, com sopa e tudo. Veio a minha casa queixar-se que não tinha táparueres. Dei-lhe dois, e ele pensou: assim vou trazer comida para mim, para o M e para o T. E eu pensei: lá está ele a pensar mais nos outros que nele. De modo que durante uns dias foi buscar o almoço, mas como o antigo cozinheiro M dorme até às quatro da tarde e o meu amigo não sabe preparar um prato e aquecê-lo no microondas, ele prefere sempre esperar com fome que este acorde e, enquanto ele dorme, vai-lhe comprar a cerveja ao supermercado. M bebe mas não sai de casa para comprar cerveja, prefere mandar o criado, que ainda agradece: obrigado M, o M é meu amigo, até me tem emprestado dinheiro. E eu penso, o M que mora em tua casa e não paga renda e que, primeiro ainda te fazia a comida, agora é um sostra dum chulo.
Mas acontece que o meu amigo deixou de ir buscar o almoço, diz que o T não o quer acompanhar, e eu penso: tu que vais buscar a comida para eles e para ti, porque precisas de companhia para almoçar?, manda-os foder, se eles não querem te acompanhar vai tu e come tu, eles que façam alguma coisa.
Ás vezes, o meu amigo vem chorar para minha casa e dizer que o M e o T o gozam, e eu penso: a solidão de um velho é fodida, és chulado e gozado por quem abrigas em casa, se fosse eu... e sei lá como vai ser comigo daqui a uns anos...
Mas hoje, de manhã, depois do café, ele safou-se, deram-lhe dinheiro e mais uma vez fez a sua caridade otária com os vizinhos que o chulam, mais uma vez não teve companhia para ir buscar o almoço, mas já teve companhia para partilhar uma torrada paga por ele com o T, que já não achou seca aturar o velho porque assim comeu qualquer coisa, ele T, o mais novo de todos e que tem comida de graça precisando apenas de deslocar-se mas que prefere colar-se ao meu amigo e ao M para tudo. Do dinheiro que sobrou da torrada comprou ganza e deu-a ao M para ele fazer o charro, porque diz que não gosta de fumar à custa do M, e isto acontece todos os dias, a estupidez repete-se todos os dias: M empresta dinheiro ao meu amigo para o meu amigo comprar ganza para o M fumar e guardar o que resta, de modo a quando acordar da sorna, possa fumar o último charro do meu amigo que assim deu umas passas e ficou com a dívida.

Que me dizes, lady alfa, como se ajuda, como se educa uma pessoa assim, que podemos fazer por ele?

domingo, 15 de dezembro de 2019

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Lyria, the angel


'Lyria, the angel'
óleo sobre tela
70cm por 50cm
2019
ZMB

a partir deste desenho:



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Good? :D

No Sábado à tarde, estava no quarto a pintar e como fundo sonoro ouvia a rádio Antena 2.
Ao Sábado, gosto de ouvir o programa das 16h às 18h.
Este era sobre o Jorge Amado. Uma evocação a propósito de uma nova biografia do escritor escrita por Joselia Aguiar.
Passaram alguns registos sonoros do Jorge Amado a falar, o jornalista e a convidada a ler excerptos da biografia, a falar das diferentes fases da sua vida, dos livros, dos amores, e de como apesar de algumas infidelidades mútuas, Jorge Amado sempre esteve com a mulher: Zélia Gattai.
A certa altura, passam o registo sonoro de uma homenagem que lhe fizeram nos anos 90 em Lisboa, na Casa da América Latina (se recordo bem o nome que no Sábado ouvi na rádio) onde estiveram presentes várias personalidades da cultura e da política portuguesa e também um filho de Amado.
Umas das personalidades que recordo de ouvir falar foi a do Raul Solnado que resolveu evocar uma tarde em que Amado e Zélia passaram por Lagos no Algarve:
O Jorge Amado ia vestido com bermudas, talvez chinelo de dedo e uma camisa com cores e formas luxuriosas, ia com a mulher, e pareciam um casal de velhotes americanos. Passaram na feira e pararam numa banca de frutos e o Jorge decidiu comer um figo.
O comerciante pergunta-lhe: -- Good?
O Jorge Amado lá deixou passar o facto de parecer inglês e até deve ter ficado contente por não ser reconhecido, de modo que respondeu: -- Good!
Então, o comerciante, vendo que era entendido pelo cliente e certificando-se assim que ele era estrangeiro e não percebia a língua portuguesa, respondeu:
-- Good. Estás gordinho seu filho da puta!
Neste momento, eu parei de pintar e ri-me porque na rádio o Solnado fez rir toda a gente que o ouvia, seja naquele dia na Casa da América Latina seja eu hoje que ao escrever isto me estou a rir.
O Raul Solnado diz ao concluir a sua história do Jorge Amado em Lagos numa banca de figos:
-- Toda a gente se cagou a rir, o próprio Jorge também, e depois veio uma senhora que vendedora noutra banca se virou para o vendedor de figos e lhe disse: olha o que foste dizer... não vês que este senhor é o pai da Gabriela, o senhor que escreveu a telenovela?


sábado, 7 de dezembro de 2019

Alberto Pimenta -- Indulgência Plenária

Requiem por e para
Gisberta



Nota apensa ao poema
de autor não identificado mas provavelmente do editor

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Num dia de Março, talvez Abril de 2006, Alberto Pimenta sentou-se na esplanada de um restaurante voltado para o Coliseu de Lisboa, abriu a meio o jornal que acabara de comprar, e deu com a notícia da morte de Gisberta Salce Júnior, em Fevereiro, no Porto. Transtornado com a brutalidade do que viu descrito em meia dúzia de linhas, fechou o jornal e disse para si eu vou escrever um poema sobre isto. E escreveu o poema que acabam de ler.

Quanto ao crime, a autópsia indicaria afogamento como a causa da morte, mas o homicídio da antiga estrela transexual brasileira de 45 anos, seguiu-se a vários dias de tortura. Espancada até à inanição, ficou por um fio depois de ser apredejada e levar repetidamente com murros, pontapés e pauladas. Apanhou sobre o choro, enquanto suplicava. Os agressores eram adolescentes, menores de 16 anos, boa parte deles entregues às Oficinas de São José -- instituição católica que recebia dinheiro do Estado para acolher rapazes retirados às famílias --, vagueavam pelas ruas a cidade, em vertigem delinquente, e tinham dado com ela na cave de um prédio abandonado na Avenida Fernão de Magalhães, no Campo 24 de Agosto.
A certa altura, julgando-a morta, e temendo as consequências que adviriam quando o corpo fosse encontrado, resolveram livrar-se dele. Ainda pensaram deitar-lhe fogo, enterrá-lo, mas fosse pelo receio de que isso alertasse o vigilante do parque fosse por falta de ferramentas, três acabaram por arrastar o corpo uns cem metros, do colchão encardido onde agonizava há dias e onde aparentemente já nem respirava, até uma cratera na placa de betão que formava um poço, com a água a cerca de dez metros da superfície. Foi ali que Gisberta acabou por morrer.
Depois de uma aproximação benevolente, com um dos miúdos a reconhecê-la dos tempos em que tomara conta dele, oito anos antes, ele e outros passaram a visitá-la no intervalo do almoço. Chegaram a levar comida à barraca que ela improvisara num extremo da cave, a cozinhá-la, e a mulher que nascera com corpo de homem no interor de São Paulo falou-lhes da vida que levou, do sonho interrompido de ter um corpo que reflectisse quem era interiormente, e sentiu-se na obrigação de explicar também a sua degradação, os sinais físicos exteriores que denunciavam o tão débil estado de saúde. Imigrante ilegal, depois de passar por França antes de chegar ao Porto, de ter servido às mesas, alcançado fama com os espectáculos de transformismo em que deslumbrava a noite do Porto com a figura elegante, os modos delicados e os cabelos volumosos, louros, encarnando Marilyn Monroe e outras divas, começou a usar drogas e acabou por se virar para a prostituição. Apanhou sida e, mais tarde, foi-lhe diagnosticada tuberculose pulmonar, pneumonia e candidíase laríngea, uma combinação que, por si só, seria o suficiente para liquidar qualquer um, provocando-lhe astenia, anorexia, febre, anemia, dificuldades respiratórias e mialgia.
Quando se espalhou a notícia de que alguns dos rapazes tinham começado a dar-se com «um travesti» que até tinha mamas, fizera operações, pintava os lábios, os olhos, e que parecia «mesmo uma mulher», Gisberta voltou a abalar a modorra daquela cidade, e mais miúdos vieram ver. Depois, tudo o que foi preciso foi que um deles se lembrasse de lhe bater. Os outros seguiram-no.
Depois de se terem visto livres do corpo, alguns dos miúdos não conseguiram enterrá-lo na consciência e falaram. As autoridades foram alertadas e, na cave, além do corpo, encontraram «um colchão, dois cobertores, um casaco de ganga com forro amarelo, uma écharpe de malha, uma camisola de malha, várias peças de roupa emaranhada, diversos sacos de plástico. E um par de luvas, um pente, dois batons, um rímel, um eyeliner, uma gilete, uma pequena caixa com dois espelhos, seis preservativos».
Eis em substância pura e dura o resumo do acontecido, que AP, no desconhecimento da maioria dos pormenores aqui escancarados, pressentiu e recriou, dando ao seu discurso poético verdade elegíaca: expondo a fatal humilhação de toda a felicidade que se desobrigou dos cânones que a admitem.
Um «requiem para Gisberta» diz o autor quando fala com quem sabe o que é um requiem.
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página 57-59

'Indulgência plenária'
Alberto Pimenta
3ª edição pela editora Língua Morta em 2018

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A far away dream


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Terror e medo



Em «Dormir ao sol» de Bioy Casares, no Instituto Frenopático trocam-se por transplante sem anestesia de um cão para um paciente as glâdulas pineais, onde dizem estar a alma, de modo a restaurar a sanidade mental.

Em «O alienista» de Machado de Assis, o médico interna toda a gente que lhe parece ter um desiquilibrio mental, depois liberta toda a gente porque a Casa Verde contém já quatro quintos da população da cidade, depois chega à conclusão que todos são loucos e interna os sãos que só liberta quando os vê fazer alguma manigância desiquilibradora, e, por fim, interna-se a si mesmo passando a ser o único paciente.

Há uns anos, vi um filme «de terror» inspirado no trabalho de um médico húngaro dos anos 10 dentro do seu hospital.

Choro de medo com as atrocidades que os doentes sofriam.
Os meus problemas são tão pequenos quando comparados com os de outros.

Que fazer quando queres ajudar e ninguém liga ao que dizes?
Fazer como o passageiro que vinha a meu lado um dia num avião: acabar um livro e começar outro no mesmo vôo, no mesmo dia, na mesma noite, agora mesmo.

Combater o tédio, precisa-se e procura-se.

domingo, 24 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Haxixe ou porque a morte é a morte

Hashish or because death is death
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Engraçado... mas assim que o meu erro foi julgado pelas autoridades responsáveis num tribunal, considerado culpado e a culpa finalmente admitida pela minha consciência moral, comecei a escrever com mais pormenor, revelando pormenores de verdade escondidos dentro de outros pormenores, revelando outras histórias. Percebi que tinha chegado a esta ânsia de destruição após a violência sofrida e cometida, causada por uma sucessão de eventos criados por mim.
Tudo estará correcto se lermos a fórmula: uma vez escolhido não há arrependimento possível e, mesmo que haja culpa, é seguir até ao fim, são as fugas para a frente, não gostaria de lhes chamar coincidências.
É como se tivesse pedido um destino para que o motor da vida pudesse arrancar em mim. A ambição de atingir esse destino tornou-se a razão principal de existir acompanhando o acto cada vez mais solitário de fumar ganza. Sim, prefiro cada vez mais fumar ganza sozinho. Porquê? Porque os vizinhos voltaram à poeira e porque a ganza me torna introspectivo sem precisar de pessoas, põe-me a ler, a escrever e a dormir bem. a ganza é um meio, a poeira é um fim que recuso.
Há muitos suportes, desde o inicial utilizado para responder no oitavo ano: e agora que vais seguir? Pensei ser piloto de automóveis. Tantos suportes, tantos quantos a minha memória pode alcançar até à experimentação de outros ambientes, alguns reflexos e novas experiências desenvolvendo-se num imenso livro cinzento.
Por isso, preencho as folhas em branco do livro com análises sociais ao dia, ao ainda nosso dia, o que fizemos, que apontamentos tirámos, com quem falámos, as pessoas que passam, aos cafés que se pedem, aos cigarros que elas fumam... é ou não correcto falar em aquisição e percepção de realidade e assumir percorrer um caminho pela simples observação do dia a dia? Reparar, por exemplo, que todos os dias nos levantamos na hora exacta para ir às aulas ou para o trabalho, a seguir almoçamos qualquer coisa na cantina. Depois, tomamos café ou bebemos água das pedras, voltamos ao fim da tarde para o café, para a sopa ou para casa, compramos pão e leite ou o jornal e tudo... tudo isto reparar. Mais vida têm os mendigos e os bandidos.
A monotonia torna assim necessária a existência de outros meios para o suporte deste destino e aqui pergunto-me se os meios são o ponto duplo de escape ou são o suporte uno desse destino, o destino, a consequência da ambição que surgiu quando me interessei por diagramas de circuitos eléctricos muito simples, por exemplo, duas pilhas em série com uma lâmpada e um interruptor, mal sabia eu que iria aprender muita teoria para nada.
A monotonia torna-o evidente: estou errado. Será só para disfarçar ou tentar resolver a monotonia que fico pensativo quando me falam e chego até a pensar em partir para os mares, mas a idade do voluntariado para a marinha já passou e, por isso, é mais um apetite sonhado para um futuro. Nessa ocasião, pensei que seria um bom meio de começar um novo destino ou uma nova rota ou uma nova ambição nascida de um nada ou, então se tudo fosse estéril, uma longa pausa de reflexão. Sempre me achei diferente, também já me disseram que eu parecia alemão, desde cedo quis fugir de casa mas, da primeira vez com doze anos, cheguei ao fim da bouça, sentei-me numa pedra e pensei: e agora... vou pra onde?
O meio escolhido de prolongar este sentimento, quase cristão mas invertido nos valores e, se calhar, aqui o deus é o mal, quem se importa?, eu não, é o acto solitario e rebelde. Torna-se evidente, real e verídico pela imaginação Dele, que este ritual é o ninho de muitas influências surreais que se poderão desenvolver, criar algo de rebelde. E porquê esta sublimação usando haxixe? Porquê esta necessidade de rebelião? Porque acho que ninguém gosta de levar porrada da autoridade só porque no seu tempo a autoridade levou porrada. As crianças deveriam ser amadas e não postas no mundo só porque o mundo precisa de trabalhadores contributivos e obedientes ao pregador. A ganza é o meu tempo de qualidade.
Procurar o destino e lutar por Ele e, com essa finalidade, tudo ser retirado ou congelado do caminho para que não possa intervir mas apenas assistir à minha chegada aos degraus dessa escada afixa como um símbolo... como se me tivessem de adorar. Ilusões de um gajo que está permeável aos sentimentos totalitários. Tenho de os combater mas tenho primeiro de os perceber. Tudo não passa de um meio de atingir esse fim por modos meio monótonos, esse fim que nunca se sabe bem qual é agora e, depois, subir ao ultimo degrau e encontrar a plataforma, ver o que estará para lá, em Lá? Talvez a eternidade de algo de tão cristão que não conhecemos, foi-nos incutido na escola primária, ouvimos dizer, bem, se não está ligado à morte, então não sei. Que haverá para lá desse último degrau? Ninguém sabe mas muita gente se pergunta ou prega, chamem-lhes talvez de esotéricos, é talvez mais correcto.
Tento imaginar esse momento de morte, esse cenário ou a minha proposta para um cenário: ao longe, o recorte de uma montanha durante o período lunar que vai sendo iluminada por uma linha amarela levemente (des)horizontal, uma linha de luz criada pelos carros que vão passando. Vejo as estrelas e procuro encontrar a estrela Polar mas apenas porque não consigo dormir. Mas, logo a seguir, tudo muda porém, o sol brilha e uma escada levanta-se ao fim da tarde na encosta de terra cavada, porque andaram a desbastar pinheiros ou a incendiar a rama das batatas.
Será esta imagem sem sentido a imagem decisiva da percepção do símbolo destino? Mas qual imagem? A de ser novo e não conseguir dormir ou a de que deveria ter sido agricultor como o falecido pai desejava ou a de que me poderia ter tornado um incendiário? Nunca existirá uma imagem final, eu sou um cão que ladra mas não morde, nunca pintarei o retrato definitivo, as palavras, as maldições proferidas como ameaça tiram qualquer valor, as opções reduzindo a um eterno círculo... em degrau descendente.
Também não sei porquê mas lembro-me de que simplesmente a morte é a morte. Tambem não sei porquê mas lembro-me que se existem meios e tantos suportes, tantos destinos, os deve haver igualmente para provocar a morte ou o desgosto, a propria morte. Muitas das minhas horas são ocupadas no meu acto rebelde de fumar, ouvir música e remoer as ofensas que nunca farei às pessoas que me ofendem. Remoo tudo porque muitas vezes essas ofensas recebidas são quase por distracção, sai-lhes a mão para a cleptocracia quando perguntam que livro ando a ler e se não me ponho a pau, o livro servir-lhes-á de meio de troca por uma esmola. Por isso, sou solitário, prefiro a solidão e prefiro estar sozinho, é raro sair à noite, tudo me é estranho e, às vezes, ando de bicicleta durante tardes inteiras com fones nos ouvidos. Estas subidas, fáceis para um profissional e difíceis para um amador, são para um ganzado como eu mais uma experiência alucinante. Outras vezes, vou ao MarchPush, cumprimento o empregado e peço a dose normal, leio o jornal, fumo um cigarro, prefiro a sopa e dispenso a sobremesa. Outras vezes, vou simplesmente para casa a pensar na vida. Tenho tanta sorte, sou livre porque tenho tudo à mão de semear, sou controlado pelo tutor mas tenho os meus contactos antigos, faço troca directa, troco zines e desenhos por almoços, ganza e a companhia de um sorriso de uma bela mulher. Estou só porque não tenho mulher. Os palhaços que só querem criar ruído aparecem para distorcer o espaço público e criar uma ilusão de competição e eu, casmurro irreversível, dinamito o palhaço e dinamito as dinas deste mundo, mesmo aquelas de quem só conheço o avatar e confundo com beldades pop de tacão de dez centímetros, que aparecem no MarchPush para tomar um meia de leite e um pão com manteiga. Já não mando ninguém para a fogueira, eu sou a fogueira, some-te porque sou louco e lobo. Digo-o porque ando a ler O Lobo das Estepes de Hermann Hesse. Quem me dera que ela me dissesse: ora prova-me lá o quanto mau és?
São férias, não se vê ninguém nas ruas e, então, quando pedalo voltando do Armenia invento longos poemas sobre loucura e ou o acto de estar louco, tento um fugaz ensaio sobre o que deverá ser um louco ou sentir-se louco, digo-me louco, digo que, se calhar, é só um esgar sobre solidão, não estamos ainda fora do sistema, ou melhor, já estamos, já sou vigiado e presto contas em referendos e testes no CReEA, dão-me uma mesada, faço-me à vida e só passo fome se quiser, ou se for preguiçoso, porque há casas que prestam ajuda alimentar... mas eu ainda não estou assim, eu disse que fiz e não fiz metade do que disse que fiz e, por isso, ninguém sabe ainda, têm apenas uma impressão, bem... se não forem demasiado curiosos ao ponto de me querer estudar, não se assustarão. Deixarei para mais tarde aquelas pernas de calças pretas e camisola púrpura... da psiquiatra ou daquela que se tornou a minha mãe sideral?, pergunto-me.
Haverá coisa melhor para passar o tempo do que me dedicar ao estudo de meios para expiar uma culpa ou uma morte anunciada e acontecida, uma vez, antes de chegar ao fim da escada?, só é preciso morrer uma vez para depois as mortes continuarem, sim... no futuro e depois do suicídio absurdo e poético em que morro antes do final do filme, morrerei pelo menos quatro vezes, agora já não me recordo se havia alguma voz a chorar, talvez não, as damas e os paladinos dirão: é o carma. Agora, essa escada circular é cada vez mais sublimada pelo acto solitário? Ou não será para chegar ao fim da escada? Ou como o deverei praticar? Ou será que em cada degrau existe uma morte predestinada? E que meios utilizar para o descobrir? Tudo perguntas que escrevo nesta folha sem lhes saber nunca a resposta. Ah a glória... ah a glória de ser lembrado, é o que me ressoa nos fones, na música que ouço.
Uma vez, igualmente envolvido em ambientes estranhos onde a percepção é extremamente sensível, comecei a imaginar a covardia de um suicida ou a glória dos kamikazes, estranha dualidade esta, disse várias vezes: um suicida é um covarde mas, ao mesmo tempo, esse seu acto é um acto subversivo e rebelde por natureza, é o seu modo de minar o sistema. Às vezes, desejo mesmo alguém que me incruste violentamente de morte, de vermelho sangue e que me deixe, me abandone ao despero ou me permita ficar eternamente um barco fantasma vagueando de pistola em pistola, de agulha em agulha, de cunnilingus em coitus interruptus em formato cinemascope regravado para video, a imagem filtrada fica mais azul, e se tudo isto não são as influências... são todos os pontos G, a ganza erógena despontando para o mundo e fugindo do recalcamento, encontrando a violência poética como ponto fuga, hedonismo para sempre, anarquia!!!
Porém, nem tudo é morte. Existem sonhos e às vezes anda-se de bicicleta e poemas são inventados sobre a louca realidade de mim sem ninguém com quem partilhar a almofada e a quem contar historias. Afinal tinha-me enganado quando a Maria me pediu e eu disse que não lhe queria contar duas mil e uma histórias. A morte é a morte, é a realidade de estar sozinho, o acto solitario é o acto de fumar ganza sozinho e bater punhetas, porque ainda não encontrei a ela com quem fumar e a quem contar os meus sonhos de ganza.
Surgem flashes e desenvolvem-se teorias, fetiches ocorrem em frente aos meus olhos reais: elas tem cabelos longos e lisos e eu ando entre o fetiche daquela verde garrafa de pose gélida de cantora pop... eu imagino que ela canta Portishead e, por isso, sempre que passo Portishead na cabine do dj é para ela... até ao fetiche daquela mais Nine Inch Nails mais animalesca, mais poética, mais África e melhor, um vestido de alças cor de tijolo descendo uma escadaria de pedra de uma casa antiga, onde há noites em que se vê o reflexo de freiras losangais de preto e branco vomitando dedos mas… tudo são sucessões ao longo do tempo, variações sobre a lida insustentável leveza do ser, onde tudo é aprendido mas o desejo reprimido pois não é mutuo, elas não desejam praticar, não desejam passar aos actos. Eu imagino-me um Henry Miller perante as francesas que elas não são e, em todos os sentidos, o Henry Miller, que eu não sou, resvala para a degradação, sou levado a pensar o pior, sou tentado a escrever a pior desculpa e sem poesia que me salve: se calhar serão frígidas ou terão outros amantes... afinal, porque se pergunta se os homens têm medo das mulheres?, não será, às vezes, ao contrário?, e isso não será um sinal para avançarmos?
Um jogo eterno e cheio de olhares e movimentos, dá um certo gozo ser hedonista... e gostar das fotografias de revista da Leni Riefenstahl. Desculpem se o poeta vem a caminho, ah Icata!, como seria bom matar esperma to zoides em cima das tuas super fícies es pon josas, ou se tudo não passa apenas do reflexo inconsciente de, às vezes, sermos obrigados a preferir uma bebedeira, ou qualquer outro delirio social, porque a rapariga prefere ir ao Armenia e não ir para casa após o cinema... era tão fixe estar em forma e actuar em todos os jogos e não só nos treinos.
Às vezes, estou no Armenia a ouvir o Creep dos Radiohead e digo que não gosto da música mas digo-o apenas porque me identifico com a sua mensagem. Outras vezes, estou rodeado de residentes tão bêbados como eu e uma rapariga do teatro vem ter comigo, na altura em que decifro Society is a place where people exist together, that is civilization, e me pergunta porque não me juntei a eles, às pessoas do teatro. Eu sorrio e respondo que não preciso do teatro para nada, pois eu represento já, eu crio as minhas máscaras respondendo aos impulsos. Prefiro não dizer que, deste modo, me esvazio do meu próprio nome e, às vezes, é como se gritassem esse nome a meu lado e eu não reagisse no meio da multidao doppleriana: é um esvaziamento parecido com aquele que acontece quando ela e eu lemos uma passagem escolhida de As lágrimas amargas de Petra von Kant de R. W. Fassbinder e nos beijamos no fim, a dois num espaço fechado, o meu espaço, o covil sem assistência... e esse beijo que damos é, para mim, comparável ao doce açúcar que recolho do fundo da chavena de café.
Penso em tudo isto na meia hora que passa entre sair do alojamento providenciado pelo tutor e me dirigir ao supermercado do centro comercial. Como este, ao Domingo, só abre às quatro da tarde, volto para trás e caminho para casa no sentido para fumar uma unha de bolota. Entretanto, ao passar na vidraça do MarchPush, reparo que L está lá com o J. Ando fodido com J desde que ele vomitou depois de fumar castanha. Há dias em que lhe pergunto: mesmo vomitando curtiste a moca? Sim, diz-me J, curti, é potentíssima, é de ficar cego... mas é estúpida, não quero ficar agarrado. Eu digo que nada tenho já para te ensinar, é uma daquelas situações em que o aluno, que nunca foi aluno, ultrapassa o professor, que nunca foi professor, no entendimento e na experiência das coisas: eu contei-te a minha história com as drogas duras e tu próprio tens toda a informação, quiseste e estás no direito de experimentar, experimentaste e gostaste, repetiste e vomitaste, há dias compraste meia grama e vomitaste cinco ou seis vezes no espaço de oito horas, e gostaste, foi fumar até ao fim, até dizer vai-te satanás heróina do inferno. Tu já sabes mais do que eu, já te contei a minha hstória e tu já sabes mais que eu, o que vale é que a castanha fumada não dá overdose senão...
A meia hora passa comigo, o L a escrever e o J a ler o desportivo, L oferece-me um café e diz que tem uma prenda: um pólen que trocou com um amigo por um Panaït Istrati usado. Pintor por pintor, agora fazemos a festa encostados à frontaria da lavandaria. Chove. Os tolos molham-se. Os flocos de água entolhem-nos os ossos e nós fumamos um pólen com uma mortalha Elements. A seguir, eles voltam para casa e eu sigo para o supermercado. São agora cinco da tarde. Compro a embalagem de papel higiénico, adiciono à conta dois pastéis de nata. Volto para casa para fumar a minha unha. Dou uma volta ao bilhar grande, porque o pólen me deixou atmosférico e preciso de andar à chuva, mais uma hora e anoitece.
Seis e meia. Chego a casa e ligo o computador, na televisão passa um filme sobre jazz, no leitor de cedê ponho um disco de Gunter Hampel, no walkman ponho Nine Inch Nails, desligo a luz e começo a escrever o abstract que tenho de submeter a exame semestral:
Eu sou o norte porque recebo, nas minhas costas, todas as fontes sonoras, excepto uma componente levemente atenuada, uns 3 dB, de um ventilador. Os componentes isotrópicos são combinados e isolados no meu estranho diagrama de radiação. A sul, identifico o rugir de um sax alto, a sudoeste o sampler de uma bateria. De repente, a sul uma bateria convencional aumenta para o máximo de intensidade, aniquilando com o seu vigor um impulso de tempo de recuperação da ordem dos milissegundos. Na televisão, vê-se uma plateia de negros aplaudindo o grupo Bleak. A sul, uma trombeta, terrificamente digna de um indiano a rufar aos infernos, sobe até aos limites do impossível. Na tevê, os elementos do grupo discutem, alguém puxa de uma faca e decide cortar a orelha a um dos seus irmãos. A festa continua a sul. A norte, sai-se do clube e o ambiente é de dúvida, espera-se para ver no que dá. A sudeste, alguém grita enraivecido. Na rádio, os trompetes são festivos e acompanhados por um piano melódico. A sudeste, não há alteracões. A sul, respondem com uma sirene chamando alguém, seguido de um som de xilofone e de pratos precursivos, que se extinguem para dar o lugar a tambores, rugindo como o Michael Gira à procura da sua presa e a vibrafones que miam e a flautas que gemem e a ela que aparece rodeada por todos eles. A sudoeste, eles tocam-lhe no clitóris e os tambores agora cínicos rugem e param abruptamente, o sax pára igualmente. A sudoeste, o piano continua melodicamente acompanhando os trompetes até que tudo acabe, surjam os aplausos e uma voz grite: The Blues. Afinal, tudo era mentira, não vi nada, o filme estava no intervalo, devia ser só um anúncio de freiras pegajosas, losangos sendo seguidos por velhos com cigarros… o jogo da paciência, a noroeste, indica-me cinco mil quinhentos e sessenta segundos após o ligar do computador e, a sul, ouvem-se pequenos xilofones de brincar.
Paro de escrever. Largo o computador e deito-me na cama, puxo de um cigarro, canta-se Closer to god no leitor de cedê, acendo a luz e fumo um intensificador de sonhos enquanto adoro Keine schoenheit ohne gefahr, adoro a beleza, suporto todos os perigos pela beleza, em poesia adormeço, em sonhos é essa a escada, a minha verdade, a corda.
Decido fazer café de saco.
L aparece mas eu despacho-o facilmente. Às vezes, dá-me para pensar que faço penitência ao aturá-lo e que, por isso, por muito que goste do inferno, irei fazer companhia a deus e aos anjinhos nas nuvens. Outras vezes, como hoje, simplesmente lhe dou um silencioso não. L vai embora triste. Eu fico com remorsos e a pensar: só fazendo amor com uma mulher poderei ser amistoso com as pessoas, só fodendo poderei não ser fascista. É um longo processo de reeducação alimentar. É por isso que estou aqui dentro no centro de reeducação alimentar.
O café já ferve. Adiciono-lhe leite.
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Claudio Mur

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O amor é um gajo estranho



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Terror e medo. Mais estranho que a bondade, é como se fosse a última vez que o jovem deus A beijou ou, então, ninguém viu o burro observar três corvos durante três dias e nascer morto por alturas da terceira semana de Outono.
Terror e medo.
Foi quando o pó me bate mal e eu bloqueio.
Estou na BusStation às cinco da manhã. As luzes acendem-se na última música. Ouve-se Frank Sinatra cantar New York New York. Ouvem-se os clarinetes, os trompetes, os saxofones, new york new york, a BusStation está a fechar. De dia é restaurante, esplanada e parque temático, à noite é a discoteca mais frequentada, a gerência aluga camionetas de longo curso para ir buscar os dancistas à cidade. Estou com mais um ou dois amigos não habituais e não tenho boleia. Não há lugar para mim nos carros. Um deles vem comigo procurar no parque de estacionamento alguém que me possa dar boleia. Encontramos. Sou convidado a entrar no carro de um homem de talvez quarenta e cinco anos, grisalho, sozinho ao volante. Sento-me ao lado dele, apresentamo-nos, ele diz que trabalha em feiras mas não parece cigano, não tem cara de cigano, é só um anónimo que decidiu vir ao parque de estacionamento ver o ambiente, esteve por ali, talvez tenha mesmo pago bilhete para entrar. Pergunta-me quem eu sou e eu digo que sou estudante, agradeço ele dar-me boleia para a cidade. Continuamos a falar e, de um momento para o outro, começa a falar de heroína, diz que é consumidor de heroína e, como vê que eu nada sei, começa a explicar os efeitos da heroína, o que se sente, as precauções, diz que se a gente tiver sempre o produto podemos levar uma vida alegre, calma e confortável, diz que não devemos estar agarrados para não sentirmos a dependência física.
Agora diz que vai fumar neste momento, cinco e meia da manhã. As pessoas já saíram todas do parque, já não há carros no parque e o que ele faz é retirar o autorrádio da consola e, por trás, buscar um pequeno saco de plástico com castanha. Vai ao bolso e da carteira retira a prata, pega numa caneta bic laranja azul, retira-lhe a carga, cola uma fitacola no furo da caneta desmaterializada e transformada em canudo, abre o saco de plástico, retira um bocado de pó, espalha-o na folha de estanho, aquece com o isqueiro por baixo, e dá um, dois riscos de fumo, duas passas calmas e demoradas. Pergunta-me se quero fumar e eu digo que sim, quero eperimentar. Ele diz como eu devo fazer. Diz para eu segurar o canudo e aspirar o fumo que surge à medida que ele vai dando calor por baixo da prata com o isqueiro. Dou uma passa só. Dou duas passas.
O que ele diz é verdade, começo a falar com ele, sinto mais segurança nas minhas palavras, já não estou tímido como estava, sou um aprendiz a ser baptizado, sou um aluno confiante.
Ele diz que agora vamos sair e voltar à cidade, diz que me leva a casa, pergunta-me para que lado eu moro. Passamos pela bomba de gasolina junto aos acessos da autoestrada. Estacionamos. Ele vai oferecer-me um café. Entramos e eu sinto-me como um executivo de gravata desapertada ao final do dia de trabalho a entrar no seu bar de excelência, a pedir ao seu empregado F de estimação um scotche com gelo e a conversar com este e aquele sobre os câmbios na bolsa, e a programar mentalmente os detalhes da mulher que vai tentar encontrar esta noite para levar a jantar. É assim que me sinto, esqueço a Maria, esqueço até a Dina Dois, a mulher de quem ainda não falei e que vi há dias na rua, cabelo verde longo, jeans azuis, alta e esguia, sapatilhas e mãos nos bolsos, tem um ar de neve, uma frieza que combina com um certo elã de divina fatal, é nela que penso agora, confiante que estou, tomando um café com um feirante que me vai levar a casa, após me proporcionar uma experiência, que eu há muito desejava ter, uma experiência feliz.
Saímos da bomba, entramos no carro, ele entra na autoestrada e sai no primeiro desvio, digo-lhe que a minha casa é perto da paragem ali mais à frente naquele viaduto. Despedimo-nos. Seis e pouco da madrugada, o sol a nascer.
Venho para casa e não me apetece dormir para já. Vou para a sala, ponho uma cassete de Pop Dell’Arte, toca aquela música O amor é um gajo estranho e eu lembro-me que eles vêm ao dancíngue Passatempo no próximo Sábado. Mas o que recordo é a frase: o amor nunca me mente quando eu me venho na sua boca. Esta música fica para sempre associada a Maria. Ó Maria como podíamos nós ser almas gémeas se és mulher e não gostas desta música? Esta música que te gravei e ofereci, pela qual te usei para saber se me eras verdadeira ou se me mentias, e se me amavas e se mo provavas, e eu fiz-te tanto mal, este rife de guitarra ficará para sempre na minha memória, o bar que tocar esta música será o meu porto seguro.
No Sábado seguinte, estou com o J e o L no Passatempo. Uma meia hora antes do concerto, eles dão na prata, perguntam se eu quero e eu digo que não. Vemos o concerto, eu gosto do aspecto do Peste, de camisa branca com folhos e cabelo preto comprido frisado, vê-se que está com uma moca total e que talvez esteja a apanhar ele próprio uma seca, há poucos assistentes. Mas Peste é sempre bom de ver e eu gosto do som. Acaba o concerto e vamos ao Armenia. Nada de novo, lá venho para casa.
Mas eis que dou novo bafo uns dias depois e este não tem boas consequências. Estou em casa de J que comecei a detestar e connosco está um estudante de química. J agora compra a sua meia grama e fuma-a em meia hora. Vomita e ainda sente prazer. O estudante treme, quer dar um bafo. J nega-lho, ele põe-se de joelhos implorando, J diz para ele esperar, vira-se para mim e oferece-me, eu aceito, dou um bafo e deixo-os, venho até ao Armenia ver o ambiente, aquela casa é deprimente, ao ponto a que chega a ressaca psicológica e depois a física.
Estou calmo, encosto-me ao balcão, peço uma cerveja, venho agora para os pilares de osso que formam a divisória entre a sala de bilhar e a pista de dança, ao fundo o dj.
A Berta aparece. Tem o cabelo ondulado, castanho escuro, é minha conterrânea e boa estudante, embora emperrando nas cadeiras de matemática é boa nas cadeiras específicas, ela sabe mais do que eu e, mesmo que eu acabe primeiro que ela o nosso curso, sinto que o futuro é para pessoas como ela, ela tem paixão eu não. A Berta vem ter comigo porque simpatiza comigo, ela tem namorado que vai todos os dias de comboio para casa e que é meu amigo, eu simpatizo com ela, gosto de falar com ela.
Estamos aqui às três da manhã, eu com uma moca de heroína, ela tentando falar comigo, a rir-se para mim tentando contar uma anedota, e tentando que eu me ria, ela sente especial carinho por mim, já uma vez nos encontrámos na BusStation ao fim da tarde de aulas, e depois de uns finos e uma conversa beijámo-nos como se nada fosse e nada precisasse de ser dito, e do mesmo modo nos separámos, ambos sabendo que o namorado é nosso amigo e que nada se passou de facto, apenas uns beijos sedentos e espontâneos sem explicação. Mas agora ela está aqui comigo e eu com uma moca de heroína, ela fala, ela ri-se, ela quer companhia, ela quer que eu fale com ela e eu não consigo abrir a boca, quero formar um bom pensamento e ele não se gera, os músculos da boca estão rijos, tudo o que digo é: iá iá.
Ela acaba por se ir embora talvez despeitada mas sem saber porque estou eu assim. Eu sinto-me mal, a noite social acabou para mim. Venho-me embora. Chego a casa às quatro da manhã. Ainda tenho um charro, ponho-me a ouvir o Legend do Bob Marley e digo: a partir de agora, para mim, a moca vai ser sempre e só o charro e mais nada, nunca mais heroína, torna-me associal. Gostei a primeira vez, a heroína é boa quando a gente controla tudo e não precisa de mais nada, tem tudo à mão e não precisa de sair de casa, tendo heroína, tendo comida, tendo tabaco, tendo mulher ou não, a heroína substitui a mulher, mas não gostei do que já vi, a literatura precisava de confirmação, hoje tive uma má tripe, não consegui entreter a Berta, heroína nunca mais. Terror e medo nunca mais.
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Claudio Mur

domingo, 17 de novembro de 2019

A prensa destruidora

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Levei as mãos à altura dos olhos para as examinar, mãos humanas, sujas, com dedos esfolados pelo trabalho como cepas de videira, mirei-as e baixei-as bruscamente com desprezo, deixando-as a baloiçar, e nesse momento soou a pausa matinal, a corrente parou e os operários e operárias sentaram-se debaixo de um grande quadro cheio de pioneses, comunicados e toda a espécie de papelada, tinham posto uma garrafa de leite à sua frente e desembrulhavam a merenda levada numa caixa pela empregada; comiam devagar e iam alternando as sanduíches de salame e de queijo com goles de leite e sumo de frutas, riam e conversavam, e eu tive de me agarrar firmemente ao corrimão porque, chegando-me aos ouvidos fragmentos das suas conversas, fiquei a saber que estes jovens formavam uma brigada socialista de trabalho, que todas as sextas-feiras iam na camioneta da empresa para um chalé da mesma nas montanhas dos Gigantes. Quando acabaram de comer, acenderam os cigarros, e fiquei a saber que no ano anterior tinham ido em excursão a Itália e a França e que este ano se preparavam para uma viagem à Bulgária e à Grécia, e quando os vi elaborarem tranquilamente a lista de participantes e convencerem-se mutuamente a irem todos juntos à Grécia, então não me admirei de vê-los despirem as camisolas, já o sol ia alto, para se bronzearem em tronco nu, combinando se, durante a tarde, haviam de ir nadar à Piscina Amarela ou jogar futebol em Modrany. As férias na Grécia deixaram-me abalado; eu, que me projectava na Grécia antiga apenas através da leitura de Herder e de Hegel, e me iniciara na visão dionisíaca do mundo em Friedrich Nietzsche, para dizer a verdade, nunca tinha ido de férias, gastava-as quase todas a pôr o trabalho em dia, por cada falta injustificada o chefe descontava-me dois dias, e se me sobrava algum dia, preferia que mo pagassem e ia trabalhar, pois tinha sempre trabalho em atraso; por baixo do pátio e no próprio pátio, havia sempre imenso papel, mais do que aquele que eu era capaz de empacotar, de modo que, ao longo destes trinta e cinco anos, tenho vivido diariamente o meu complexo de Sísifo, como escrevera tão bem o senhor Sartre, e ainda melhor o senhor Camus, porque quantos mais pacotes levavam do pátio, mais papel velho caía na minha cave, e assim indefinidamente, enquanto a brigadda socialista de trabalho, aqui em Bubny, tinha sempre o trabalho em dia. Tinham voltado todos ao trabalho, bronzeados -- o sol realça-lhes a cor dos corpos de efebos gregos --, não estavam minimamente perturbados com o facto de irem à Hélade nas férias e nada saberem sobre Aristóteles, Platão e Goethe, essa extensão da Grécia antiga, continuavam a trabalhar serenamente, e a separar o miolo dos livros das suas capas, arremessando as páginas apavoradas e eriçadas de medo para o tapete rolante, com a indiferença e calma, sem imaginarem o que um livro significa; afinal, alguém teve de escrever o livro, alguém teve de o ilustrar, alguém teve de o compor, alguém teve de o rever, alguém teve de o compor e de o rever de novo antes de o compor definitivamente, alguém teve de o imprimir e alguém teve de o ler uma última vez antes de o voltar a pôr, folha a folha, numa máquina que o encadernou, alguém teve de pegar nos livros e de os atar e empacotar, e alguém teve de fazer as contas a todo o trabalho que o livro deu, e alguém teve de decidir que este livro não se destinava a ser lido, alguém teve de o censurar e de ordenar que o deitassem no lixo, alguém teve de empilhar os livros no  armazém, alguém teve de carregar novamente o camião e alguém teve de trazer os pacotes de livros até aqui, onde os operários e as operárias com luvas vermelhas, azuis, amarelas e alaranjadas lhes arrancam as entranhas e as deitam para o tapete rolante, que, imperturbável mas com movimentos precisos, leva as páginas eriçadas para debaixo da prensa gigantesca, que as comprime em pacotes, pacotes estes que vão para as fábricas de papel, onde os livros acabarão transformados em papel branco, inocente, sem a mácula das letras, para que novos livros possam ser impressos...
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páginas 99 - 103

'Uma solidão demasiado ruidosa'
Bohumil Hrabal
tradução de Ludmila Dismanová
edição Antígona

sábado, 9 de novembro de 2019

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sablier -- Osso Exótico



Recorded at Lisboa, March 22, 2009 Musicians were: André Maranha : sand and bottle Francisco Tropa : sand and bottle Patrícia Machás : copper bowl David Maranha : organ Manuel Mota : electric guitar

domingo, 27 de outubro de 2019

Willalee, o Cantor de Gospel e a menina Marybell

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Willalee soluçava de olhos fechados, baloiçando-se de um lado para o outro sobre os joelhos. O Cantor de Gospel, afligido pela crescente certeza de que era o responsável pela situação de Willalee, olhou fixamente para ele, incapaz de dizer nada. Por fim, agarrou Willalee pelos ombros e disse:
-- Sossega, vá. Sossega. Ouve, eles não te vão fazer nada. Estás a ouvir? Eu estou contigo. Agora pára com isso e levanta-te. Eu estou contigo.
Willalee levantou-se e sentou-se na beira da cama de ferro. O Cantor de Gospel foi até à janela e olhou para fora. Por baixo, ao longo de todo o comprimento de Enigma, a multidão redemoinhava agora, num marulhar de cor e som. Por detrás dele, Willalee continuava a falar, num tom uniforme e pesaroso.
-- Tu sempre tiveste comigo. Desque fui salvo, nem um instante tiveste longe de mim, nem um. E eu tou salvo, percebi logo isso quando foi que assucedeu. E sei que continuo a tar salvo, é o que diz no Evangelho. Mas tenho o sangue da menina Marybell nas mãos... no coração.
-- Ouve -- disse o Cantor de Gospel, voltando costas à janela e desejoso de reconfortar Willalee, de lhe contar a verdade, embora ciente de que a verdade causaria ainda mais dano do que aquela fantástica teia de mentiras. Mas o que viu ao virar-se tornou desnecessária qualquer palavra. Ali, sobre a cama de ferro, estava uma enrugada fotografia sua, cuidadosamente alisada, mas velha e a desfazer-se nos vincos. Willalee, cujos lábios se moviam, continuando a falar, estava a olhar não para o Cantor de Gospel, mas para a sua imagem.
O Cantor de Gospel atravessou devagar a cela até à cama.
-- Onde é que arranjaste isso?
Willalee não ergueu os olhos da fotografia.
-- ... ela que fez tudo. Se ela num tivesse vindo no bairro eu continuava a ser a pessoa que era. Um preto ruim, com cortes de navalha nas costas e que se deitava com mulatas. Ela mostrou-me o caminho. -- Enquanto falava, o dedo caloso, tremendo, de Willalee traçava o contorno da cara do Cantor de Gospel na capa da revista.
-- Ela ajudou um preto ruim a endireitar, e depois disso nunca mais cortei-me nas costas, parei de invocar o nome de Deus em vão e de dormir com mulatas. Ela falou-me do Cantor de Gospel. Falou-me como era. A menina Marybell, a menina Marybell. Ela que arranjou a igreja. Que preparou tudo. Que pôs tudo a andar. A menina Marybell. -- Olhou momentaneamente para as suas mãos, voltando as palmas para cima, enquanto abanava a cabeça, ainda a falar, numa voz sonolenta e monótona. -- Congregar. Vamos congregar na igreja quando ele voltar a casa. Arranjamos a igreja, temos tudo pronto e quando ele chegar vai entrar na igreja, vai olhar à volta e dizer tá muito bem. Sim, tamos preparado pra quando ele voltar a casa. Sim. A menina Marybell disse logo que souber quando ele chega vem avisar a gente. Veio a meio da noite. Um home nunca sabe o dia e a hora. Ela... -- Fez uma pausa, inclinando ligeiramente a cabeça, como para ouvir algo. Espetou um dedo no centro da testa e pressionou. -- Ela disse: vim pra te contar a verdade sobre o Cantor de Gospel. Eu disse: quando ele chega? Ela... -- Um cinzento de cor de cinzas humedecidas perpassou pelo rosto de Willalee. Uma veia inchou-lhe na fonte. -- Não -- disse, num sussurro. -- Eu sou pastor. Eu tou salvo. -- Voltou a olhar a flácida fotografia do Cantor de Gospel. -- Não, Senhor, não. Ela disse: Foste salvo com base em falsidade, a igreja é falsidade, o Cantor de Gospel é um falso. Disse: Deus é um home coas calças em baixo, Deus é uma braguilha desabotoada. Ela disse: o Cantor de Gospel... e eu cravei nela o picador de gelo. Agarrei-le pelo pescoço e espetei outra vez, espetei, espetei, espetei... -- Desatou a soluçar, com a cara enterrada na cama e os punhos cerrados.
Mais do que ajudar voluntariamente, o Cantor de Gospel caiu de joelhos. Colocou o braço em volta de Willalee.
-- Por favor -- pediu. -- Por favor.
Willalee ergueu os olhos. Parara de tremer. Já não chorava. Parecia até que ia sorrir.
-- Eu sabia -- disse. -- Eu sabia que contigo ia descobrir o porquê que matei a menina Marybell e fazer as paz co Senhor. Agora tou pronto. Agora já ninguém pode magoar-me porque agora sei o que fiz e sei que ofendi o Senhor. Vou pra casa.
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páginas 212 - 214
'O cantor de gospel'

Harry Crews
tradução de José Miguel Silva
edição Maldoror

sábado, 26 de outubro de 2019

Propostas musicais neste fim de tarde


Na Rua Anselmo Braancamp 345

no Museu Vivo do Tasco Tripeiro
organizado pelo Bazar Esquisito


No Museu Vivo do Tasco Tripeiro
teremos uma dupla DJ
Exultanza Catatonica é Demetrio Castellucci de Black Fanfare,
a sua música move-se em duas linhas paralelas, uma é um som electro-acústico melódico e puramente orgânico, a outra é rítmica, evocando uma batalha de elementos percussivos.
E DJ One Erection é Pedro Augusto, músico e compositor nos projectos Ghuna X e Live Low, tem também conduzido um largo percurso na composição de bandas sonoras nas áreas de dança contemporânea, teatro e cinema




domingo, 20 de outubro de 2019

Sincronicidade

eu não estava para partilhar isto mas o sr. xilre escreveu uma publicação, hoje Domingo,
e eu, como vejo em muitas palavras de bloggers que gosto de ler, pedaços daquilo que Jung chamou de
Sincronicidade,
decidi partilhar, em baixo, um texto que escrevi esta semana, 
tem traços opostos ao do Xilre mas versa o mesmo tema.
não façam caso do protagonismo dado ao eu que fala, eu não sei escrever na terceira pessoa:

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Caro público, vejo o brilho do sol e cores novas em cada olhar, tenho os meus seres como elementos, letras como eus e como amigos, falo com eles como se fosse comigo próprio, não uso filtros nem símbolos de pontuação ortográfica como travessões que indiquem diálogo, tudo é solilóquio:
Eu sou como o psicanalista do livro do Boris Vian, sou um jovem cebola e não aparento a idade que tenho, sou autofágico. Sou muito mais velho, um píton, um mago, um nigromante. Ando é disfarçado entre os pingos da chuva vestido com a personalidade dos meus amigos porque em mim a ela não lhe reconheço os traços. Adopto as amigas como irmãs primeiro, mulheres depois e por fim mães. As cabeças de todos são parte de mim, são os meus seres. Com eles e elas falo, almoço-os a todos, fumo as suas calças de cânhamo acompanhando o café com cheirinho e deito fora as suas cuecas de flanela, varro as cinzas do churrasco dos seus ossos e depois discurso mesmo que ninguém ligue puto, digo urso em estado alterado perante uma plateia de uanabís como eu, todos temos um futuro ainda.
Não li muitos livros durante a adolescência porque poucos os havia interessantes em casa. Os meus pais também não liam muito mas esforçavam-se e encomendavam livros do Círculo de Leitores e das Selecções Readers Digest. Foi assim que não sei como caíram lá em casa obras como A laranja mecânica, A servidão humana do Maugham que jurei nunca ler por causa do título. Eu não queria ler coisas tristes com esta idade, queria livros que me provocassem a excitação dos sentidos e finalmente a desejada consumação sexual, queria livros com amor e sexo, com palavras úteis que me ensinassem. Livros fúteis talvez para um adulto mas livros importantes para a definição e acção emocional e sexual de um adolescente. Havia outros livros que mais tarde surripiaria mas de Anthony Burgess ganhei a ideia que palavras como ultraviolência degeneram em loucura e culpa em encarceramento e reclusão em religião e partido em sacrifício e morte, tudo isto porque o amor, já alguém o cantou, o amor é uma doença.

Mas eu quero começar por algum lado e dizer que, há quatro anos, desisti da religião porque não cria no dogma que aprendi na catequese. Andei lá até aos dezasseis anos para ver se arranjava amigos e namoradas mas os rapazes gozavam-me e as raparigas estavam apaixonadas pelo rapaz da moto. Era isso ou a rua e os meus pais não me deixavam sair para outro lado. No dia do crisma na Sé em Derza os meus pais estiveram ausentes e a madrinha que me levou ao altar para receber a bênção do bispo foi a Irmã Belinda, uma missionária idosa da paróquia que fez esta caridade a mim e aos pobres sem pais. Senti-me um pobre e tão pobre como eles, senti-me condenado. Nesse dia mesmo, mandei foder toda a gente em pensamento e assim apostasiei a água benta do bispo e decidi que era mau, que sou mau e que vou para o inferno. Irei com todo o gosto para o inferno.
Carimbei a heresia na festa de finalistas, oferecendo para o sorteio de prendas uma lingerie em couro vermelho e com um fecho de latão à frente que um tio, que nunca casou com a minha tia, me dera uma noite na feira popular da cidade vermelha onde ele trabalhava. Despachei assim este emplastro familiar indo ele calhar a um santo paroquiano pretendente a caloiro de filosofia. Logo nos rimos uns dos outros, eu ri-me sem saber que me estavam a riscar do mapa e a chamar-me de pervertido, estúpido e louco. Ainda consegui ao fim da noite dar uns beijos numa colega na discoteca mas o encontro marcado para uma tarde, dois dias depois, correu mal, ela rechachara-me com medo e eu sem perceber o porquê dela, fiz cara de patrão mau, fechei a porta e saí para a rua. Nunca mais a vi e não recordo o seu nome. Para me saciar, decidi seguir uma prostituta até à hospedaria, dei-lhe dois contos e subi, ela foi lavar-se e voltou sem a saia, deitou-se, e eu tirei as calças e puz-me em cima dela a beijar-lhe o pescoço para que a tesão me viesse. Ela disse despacha-te e eu bloqueei. Parei. A tesão não veio e eu vesti-me sem dizer nada. Ela disse: se tiveres problemas volta cá. Voltaria ao longo da vida mais duas vezes, a uma dei-lhe dinheiro para a calar, a outra tratei-a com carinho filial, convidei-a para tomar café mas o sucesso não veio nunca. As prostitutas não me seduziram, nunca me servirão, penso que as respeito demais.
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Claudio Mur

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Ik ben a zombie



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São aproximadamente cinco horas da manhã. Deixei o Armenia em plena paz, hoje diverti-me sozinho, outra vez Muslimgauze e os grilos na cabine de DJ. A chuva continua a cair miúdinha e os poucos candeeiros intactos reflectem-se nas poças de água existentes no passeio. Sei que estou sem rumo definido mas estou cansado, vou-me sentar num banco do jardim. Vou enrolar um cigarro. Tenho, no entanto, a sensação de que alguém me espia, alguém que poderão ser muitos, três mil pessoas a apontar o dedo ao consumo de fumantes no local de trabalho. É melhor ter cuidado.
C deita-se ao comprido enrolando-se na sua longa camisola cinzenta. Quando em estado de sonolência, o sino comeca a tocar a Sexta sinfonia, segundo movimento de Glenn Branca. Quando adormece entra num cenário artificial. Está num leito de madeira usando uma camisa fina, branca com folhas à caubói e umas calças pretas de flanela. Está descalço. Numa fracção de segundo, uma pequena luz branca toca-lhe nas virilhas mas logo se esvai para longe. Então, C acorda sobressaltado olhando para todos os lados, para as seis barreiras que o separam do espaço real. Nem uma só janela. Ao longe, nos cantos dessas barreiras minúsculas fosforênciais, formas que sugerem pirilampos comecam a luzir. Ao princípio inofensivas, depois começando a agitar-se. Alongam as suas espadas de laser em várias direcções mas sempre aproximando-se, os tentáculos chegando perto. Nao sabe o que fazer. Nem uma só janela. Uma luz verde atinge-o no ombro, é a sua cor favorita, a marca fica registada, torna-se o símbolo de uma primeira acção. Um olho verde. Um risco verde imiscui-se na cor branca da camisola que transparece a cor vermelha do seu corpo. Uma voz de igreja diz-lhe: eu perdoo-te C, eu perdoo-te, eis a minha benção. Não sabe o que fazer. Sente calores frios pelas costas abaixo. Nem uma só janela. Agora é a serio. As luzes lançam-se de frente para ele e sem lhe tocar, vão-lhe tirando as medidas exactas, esquadrinhando ângulos, amplitudes. Já não está deitado, sentou-se na borda do leito de madeira. Puxa de um cigarro mas uma luz vermelha tira-lho da boca. Compreende então que está perdido. Nem uma só janela. Repara que, do seu lado direito, um fusil de Napoleão espera que ele lhe toque com carinho. Os calores frios então invertem o sentido da sua marcha, encontrando-se agora ao nível do pescoço. Dentro de breves momentos estarão já a subir pelas faces albinas em direcção às poucas madeixas que ainda possui. Surgem então os tambores. Vêm do lado daqueles poderosos lasers. Começa a limpar o fusil. Repara que só tem um cartuxo, tem ainda, para o caso de precisar, a baioneta Justincase. A luzes continuam a fazer-se notar em movimentos tipo tiro e fuga. Faz tenção de colocar o velho fusil no ombro direito e olhar pela mira telescópica uma rua calcetada ao fim da tarde e ou a fachada de uma casa de pedra. Desce a rua sempre com os olhos na mira, apontando às luzes que continuam a surgir. Pára numa fonte. Do outro lado a casa acabou e tu e ou ele pode ver uma cerejeira com pequenos gémeos idênticos, idênticos e violeta e púrpura, um menino e uma menina. Então, uma luz surge uma vez mais, uma luz púrpura e ele não resiste mais. Foca o alvo e bang... um pequeno melro cai em espiral a seus pés junto aos cantos da fonte. Continua a olhar pela mira e vê esse melro transformar-se num gato bebé com um pequeno ponto cruz no seu peito, o ponto de mira verifico eu. Quando a ferida sara, levanta-se e ronronando vai beber um cálice de Porto e desfrutar deitando-se a seus pés, pedindo alimento enquanto C olha de pé o fusil, que sendo comprido é o seu terceiro membro. Após uma breve interrupção, as luzes voltam, surgem agora aos milhares. Começa agora a suar de verdade. O fusil roda no ar e na ultima extensão do seu corpo, as luzes atingem-no em todas direcções, electrochoques cegam-no momentaneamente, destroem-lhe os nervos. No entanto, não desiste e continua a apontar o mais que pode, consegue até que as luzes se extingam por momentos, sendo substituídas por tambores em compasso de espera. Agora, tambem ele espera, ouve, está sentado numa sanita imunda. Tem o fusil em pé, é o seu terceiro membro, ele espera a descarga, pressiona o esfíncter. Os tambores deixam de tocar e ela surge, a luz negra, o eclipse total. Então, C levanta o fusil, vira-o de encontro a si próprio com a baioneta mesmo à frente do rosto. Ela, esta luz é agora parte constituinte do fusil e pretende engolí-lo. Um ultimo compasso, um ultimo tambor. R puxa para dentro de si a baioneta, a luz apaga-se e tudo termina.
C acorda do banco de jardim todo encharcado e cheirando mal. A seu lado, vê no chão estilhaços de um candeeiro preto. Passa o coveiro com a sua lamparina antiga a óleo. C olha para o relógio. Seis horas da manhã. Decide segui-lo, ele vai completamente nas nuvens, nem parece reparar. Entretanto, C recuperou os velhos sapatos e a camisola cinzenta. Faz agora planos de enrolar um cigarro enquanto sobe a rua atrás do coveiro. Com uma medalha de cem metros olímpicos do fundista Bolt na lapela, este entra já numa álea em terra batida rodeada por árvores enormes, que não consigo identificar e que dão acesso ao cemitério. Do outro lado da rua, vê-se a silhueta de um megaempreendimento de alojamento local com piscina privativa. Quando finalmente C o apanha, o coveiro começa a falar:
Ontem, o meu filho contou-me uma história que ouvira sobre o malogrado regresso de um homem após uma longa estadia no éter. Aterrara no mesmo lugar de onde tinha partido trinta anos antes mas agora nada de pompa ou circunstância. Tudo vazio. À saida, apenas viu uma pessoa velha de bengala. Pensou em chamar um táxi mas desistiu. Comprou a bengala ao velho. Seguiu a pé decidido a encontrar alguém que lhe explicasse o suicídio. Nem sem sequer um ramo de flores. Finalmente, entrou na cidade às dez da manhã, a coelhinha da páscoa vinha na sua direcção, ouviam-se os pássaros saindo dos ninhos numa palmeira, fugiu dela atravessando a estrada fora da passadeira, encaminhou-se por um carreiro em terra, que cortava o caminho, evitando o semáforo. Ao virar a esquina à direita, viu um vulto de cavanhaque e careca mas não o reconheceu logo, ficou com a impressão que o conhecia de algum lado. Foi uma visão de milisegundos. Viu-lhe a t-shirt preta que nas costas parecia dizer Polícia, estava acompanhado de outro homem. A visão foi momentânea e aterradora, fez por não ver mais nada, imaginou uma rusga, que andariam eles cuscando? Passou por eles e, à sua frente, outro elemento os tinha deixado, pensou nele como um paisano indo averiguar as redondezas. Segundo o que o meu filho me disse, o homem, o cientista que voltara do éter, durante trinta anos não tomara a medicação simplesmente porque não havia farmácias no éter. Atacado por delírios paranóicos de perseguição e tendo um flashback ao ver os três agentes de autoridade, ficou petrificado por momentos quando ouviu um deles chamar, viu o terceiro olhar para trás para os seus colegas e também para ele. Foi como se também o homem de cavanhaque o conhecesse. O nome pareceu-lhe um som familiar mas antigo e distorcido, seria eu quem ele queria interrogar? Diz o meu filho que o homem escreveu umas frases assim e meteu-as num envelope que mais tarde foi encontrado. Ficou paralisado mentalmente mas isso não o impediu de ignorar o chamamento e seguir caminho. Não se podia denunciar, não podia denunciar ninguém. Caminhou pela rua apoiado pela bengala e tropeçou numa velha vigorosa que se dirigia para a igreja, de olhos cegos falando-lhe em modos incompreensíveis. Dizem que era a sua única mãe, diz o coveiro fazendo uma pausa. Então, continuou a andar estupefacto, viu três sombras verdes saindo das lojas de conveniência. Resolveu ignorar. À sua frente, viu três velhos vestidos de fato e gravata, mostrando cartões a meninos e dirigindo-se igualmente para a igreja. Pensou em igreja e pensou em pedofilia. Parou nos semáforos dando prioridade aos táxis amarelos e laranjas surgindo desgovernados. Quando finalmente a sua prioridade verde surgiu e atravessou aquela rua, parou numa montra para ver uma serie de quadros com o nome de Cenas de um covil. A princípio, não quis querer mas os seus olhos não o podiam enganar com tanta certeza. O homem, continua o coveiro, ainda não pronunciara uma unica palavra. Mesmo na compra da bengala, avaliara primeiro e oferecera um valor generoso, limitara-se a apontar para a bengala com uma mão e a colocar as notas no bolso do velho. Não dissera uma única palavra, não lhe saíra sequer um ai, um pio que fosse, um insulto contra a desolação, nada. Foi esse o erro. Quando gritou de espanto ao ver aqueles quadros, não reconheceu a sua própria voz, aquela voz doce que a sua mulher, de cabelos ligeiramente pretos, lhe dissera que ele possuira. Então, acreditou que era mesmo ele, aquilo que via no vidro quebrado da montra era ele. Não havia um pingo de dúvida, não havia um moks para fumar, não havia escape para a angústia, nunca mais dormiria oito horas seguidas, nem mesmo recorrendo aos mesmos narcóticos que assassinaram o Prince. Uma cópia, uma imagem, um ser disforme e retorcido, sem dentes, sem cabelo e verde, muito verde. Destroçado, continua o coveiro, decidiu largar a bengala, já não precisava dela, ultrapassou a ponte e chegou a estátua de Cristo, subiu a custo lá cima, observou com calma, com toda a calma possível do momento o espaço, tão diferente de tudo aquilo que deixara para trás em prole da descoberta cientifica, e atirou-se. Morreu na cidade vermelha. Foi transladado para este cemitério.
C interrompeu perguntando: essa historia foi inventada ou está escrita?, que idade tem o seu filho, é albino?
O coveiro respondeu que todos o somos um pouco mas que isso não passa de um pormenor que em nada pode alterar os propósitos pelos quais você me seguiu.
Havendo dito isto, parou num túmulo e disse: aqui pode ver com os seus próprios olhos a campa desse homem que nunca foi reconhecido, pode ver também que, por ele, velam dia e noite, consegue ver não consegue?, um anjo com sombra e um pote de flores albinas.
Sim, vejo um anjo azul, lindo como nunca tinha visto antes. Obrigado.
O coveiro sorriu da crendice e da humildade presente neste agradecimento, esteve uns momentos olhando para C avaliando o seu coeficiente de inteligência e pensou que Lombroso estava definitivamente errado. Sacou, então, de um charuto havano, deu dois bafos profundos, osculou ao som dos pássaros madrugadores porque sofre de doença pulmonar obstrutiva crónica e resolveu-se finalmente, abriu o jogo de modo paternalista.
O homem, sabe, passara uma temporada na Holanda, a única frase que conseguiu aprender foi esta que está no epitáfio, ora veja, veja se consegue ler, o musgo enferrujou as letras, e sabe que mais, quem contou a história ao meu filho foi um amigo numa noite de borracheira, foi o filho do homem e de uma dama evangélica, o filho nunca assumido pelo pai, este homem que morreu nunca soube que foi pai duas vezes. Este homem era violento em casa, na realidade não era nada um cientista, era um mero transportador de malas com dinheiro e sabe-se lá que mais, bares de alterne em Sta onde grupos de espanhóis pedissem para trocar as pesetas... ele saberia que as pesetas e os escudos lá ficariam, fumadas e bebidas, acordariam na tarde do dia seguinte dentro da sua mala. Ele, na realidade, fugiu para a Bósnia, ofereceu-se como enfermeiro numa milícia de ciganos. E fugiu porquê? Porque a mulher baptizara a primeira filha sem lho dizer, sem ele próprio saber o dia. Pois, quando soube nesse mesmo Domingo de baptizado, desfez os cunhados com as próprias mãos. E fugiu, já estava a apresentações semanais por violência dioméstica, um dia faltaram-lhe trinta contos da mala e verificando os passos do dia, lembrara-se de perguntar à mulher, a mulher cuspiu-lhe na cara: sim fui eu, aliás não precisas de tanto graveto. Ele raivoso, deu-lhe uma chapada tão violenta que a deixou com um hematoma, depois bateu no próprio irmão que acudira aos gritos da cunhada, o homem... era um mastodonte, desfizera com um cepo de carvalho um grupo de vizinhos que jurara vingança e lhe fizera uma espera na linha de comboio, quem os fodeu foi ele. Depois fugiu. E não voltou do éter coisa nenhuma, voltou simplesmente num avião repatriando os refugiados de guerra, o seu advogado dissera-lhe que seria amnistiado, o consulado pagou as despesas. Sem cheta e deprimido e sem notícias de familiares vivos, a filha morrera num acidente de viação, o homem, quando soube, saltou da janela do terceiro piso do miradouro sobre o rio. A mãe contou finalmente ao filho a verdade sobre a identidade do seu pai e este filho recolheu os pertences e mandou escrever o epitáfio, este que vê aqui: Ik ben a zombie.
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Claudio Mur