domingo, 7 de dezembro de 2025

Bora lá dar música ao Bemturra

 


domingo, 30 de novembro de 2025

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas.
tornámo-nos democratas por medo.
e até ao fim da revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas.
Fomos democratas por cobardia, tínhamos pânico de que nos acusassem comos os pides

 "

Sentado no banco incómodo do carro, com Ourique ao longe, o amontoado de casas de Ourique que o calor refractava, lembrei-me que nós, os psiquiatras, nos assemelhamos todos ao noivo, tão ridículos e apavorados como ele, arrastando uma mala repleta de pastilhas, de ampolas, de conceitos e de interpretações, o enxoval de uma ciência inútil no braço. Lembrei-me do nosso ridículo, do nosso pavor, da miséria da nossa pompa e comecei-me a rir. Ria um riso ao mesmo tempo podre e alegre, o riso podre e alegre dos carrascos. Ria dos que manejavam os aparelhos electrochoques nas clínicas da periferia de Lisboa destinadas aos ricos, em que as camisas de dormir cheiravam melhor e não havia pó nas secretárias, das clínicas rodeadas de jardins tristes da periferia de Lisboa, onde os quartos se aparentam a jazigos habitados por cadáveres sonâmbulos, nos quais os psiquiatras instalam a esperança postiça das pílulas. Ria-me dos médicos bem vestidos, bem alimentados, solenes, comedidos, competentes, majestosos, ria-me da sua falsa segurança, do seu falso interesse, da sua falsa ternura, e o riso soava desfigurado e humilde aos meus ouvidos, soava como a queixa dos bois doentes quando se aproximam deles para os matarem, os bois que levantam os olhos moles para o braço que os assassina, numa ternura insuportável. Ria com Ourique ao longe no sossego da tarde, na paz da tarde do Alentejo cheia de rolas bravas e silêncio, ria dos psicanalistas detentores da verdade a jogarem xadrez na cabeça das pessoas com o seio da mãe e o pénis do pai, e o seio do pai e o pénis da mãe, e o seio do pénis e a mãe do pai, e o peio do seis e o pãe do mai, ria dos que curam homossexuais com diapositivos de rapazes nus e descargas eléctricas, dos que tratam o receio das aranhas com aranhas de arame parecidas com insectos de carnaval, dos que se juntam em círculo para dissertar sobre a angústia e cujas mãos tremem como folhas de olaia, brandidas pela zanga do vento. Ria-me de pensar que éramos os modernos, os sofisticados polícias de agora, e também um pouco os padres, os confessores, o Santo Ofício de agora, ria-me de pensar nos oleosos psiquiatras obesos que impingiam sessões musicais aos seus pacientes em nome de técnicas obscuras, dos barrigudos, desonestos, assexuados psiquiatras obesos, dos budas repelentes seguidos de uma corte de feios discípulos extasiados, de barbicha de bode e de cabelo sujo, segregando-se na orelha inanidades convictas.

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas. Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupámo-nos com os internados, protestámos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas, Joana, por cobardia, pensou ele vendo um bando de rolas poisar num olival, agitar a tranquilidade do olival com o reboliço do seu voo, tínhamos pânico de que nos acusassem comos os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes no jornal. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido a guilhotina.

"

António Lobo Antunes em 

Conhecimento do Inferno, pág 99 -- 101

edição Vega

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Manitas de Plata -- 3 songs from Guitares en Fete

3 songs from side B of the LP: Guitares en Fête by Manitas de Plata B1: Hermanitos del Albacin (solo: Manitas) B3: Campanitas de Camarga (solo: Manitas) B5: Gitanitos Rumberos (guitares: Manitas, Fernand, Bambo, Nino de Suerto, Nanasso, Manero voix: Manero) 1986 CBS Disques

sábado, 22 de novembro de 2025

Um livro para o dia

As Edições Mortas

acabam de editar

"Até que a morte nos separe" por Claudio Mur,

um livro de poemas dedicado a Sanea Vallis.

Está disponível para já na livraria Utopia e livraria Térmita no Porto

ou contactando o grande Oliveira através do email: oliveiraeditor21@gmail.com

100 páginas, PVP 15



sábado, 15 de novembro de 2025

Haitian Fight Song

 


Azul de terra (versão)

 

-- Olá, estás aí? Não te vi entrar...

-- Sou invisível!

-- És nada! O que vais tomar?

-- Um café.

As imagens que são pessoas vivas passam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, em frente à porta do bar das oito pontas azuis. Eu observo e bebo o meu café. Um amigo entra e senta-se no balcão a meu lado. O seu discurso é um pouco mais incoerente que o meu. Tem problemas derivados do consumo de pastilhas e esteve em Lá. É meu amigo.

-- Nós lá... desenhávamos o tempo.

-- E caminhávamos como se fôssemos santos e víssemos a quimera.

-- Dá-me um cigarro. Para este peixinho.

-- Para seguir no comboio e ir ver as pirâmides?

-- E ver também os elefantes e as mulheres abelha e os cães danados de três cabeças e os pintaínhos azuis...

O dono do bar para quem nós não somos invisíveis, ri-se. O meu amigo sorri. Eu também.

Fumámos o peixinho a dois. Repetímos o pecado segunda vez. Somos sonhadores.

 

Agora, levanto-me e venho até à porta, sento-me na soleira. Começo a sentir arrepios de frio. Volto para dentro e sento-me novamente ao lado do amigo.

Agora, sinto-me uma imagem com o frio a subir-lhe à cabeça. Começo a sentir-me perto dum apagão. Se fechar os olhos apago-me. Ainda não paguei, tenho de pagar antes que me apague, antes que me transforme em estátua.

Olho em frente para o espelho e vejo-me a abrir a carteira e a tirar vinte euros para pagar. Pouso a nota no balcão, por baixo da carteira e com a mão por cima. Olho o dono.

Sinto o sangue a ferver e o frio a subir à cabeça e a dar voltas no estômago. Tento controlar e vejo no espelho a imagem a controlar. Baixo a mão à cintura e sinto tonturas e dificuldades em me conservar sentado neste banco de pé alto. Olho para o espelho e estou a controlar.

Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos a apagarem-se. A casa a explodir.

 

(E nesta interrupção, as imagens surgem de dentro como um desejo de síntese.)

-- Olha, deixaste cair ao chão a...

Acordo do apagão e olho para terra. Azul. Vejo a nota no chão. Azul de terra. Apanho-a e agradeço. Volto a sentar-me. Era a última nota do mês. Faço sinal e pago.

Afinal, correu tudo bem e os amigos ajudaram. Levanto-me e venho sentar-me na esplanada.

Sou agora uma imagem fora de tela, sou ahah um unicórnio de um milhão que ia ficar a dever. Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede e que olha para cima, para o céu e não pode fechar os olhos. Porque as imagens não deixam, elas querem ajudar.

Preciso agora de respirar pausadamente e bloquear a agonia do estômago. O pior já passou. A estátua respira e beija com carinho a imagem que ajudou a estátua.

O filme está a terminar e já só falta um pu. Mais um arroto. Já está.

A boa acção terminou. Cumprimentei um amigo de Lá e com ele fumei um intensificador de sonhos. E vi imagens que são pessoas vivas e estátuas que são pessoas mortas e agora vou desenhá-las.

Levanto-me agora da esplanada e vou para casa renovado. Vou pelo caminho dos pescadores. Um deles recolhe agora mesmo um robalo. Sorri de contente.

Eu sorrio com ele e digo: -- Olha, um dia vendi um quadro e nunca mais lá voltei. Disseram que era ciência rara. Que haja peixe, irmão, que haja peixe!

Ele ri-se achando tudo absurdo. Mas não faz mal. Ele não sabe que acabei de parafrasear Manuel da Fonseca. Estou em paz. Não preciso de mais nada hoje. Uma sopinha e dormir feliz ao ouvir a «haitian fight song» do Charles Mingus.

 



quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Uma imagem de há 30 anos

 


El Primos, banda de Rockabily e Trash Metal.
Aqui numa fulgurante aparição na areia da Costa.
Terminou a sua actuação quando John Mau acusou o primo de ser do sistema.
O primo não gostou e disse Por mim, vou trabalhar. E foi.
John Mau virou político.


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Sendo da experiência comum, tudo isto é ainda em mim complicado por qualquer tique particular.

 "

Passara várias noites com mulheres. Ainda não passara um dia inteiro com uma. O dia correu-nos sem que o tempo se nos fizesse sentir. Demais, eu notara há muito tempo não possuir exacta noção do tempo. Direi melhor, dizendo que a minha medida do tempo é inconciliável com a vulgar. Momentos há em que saio de mim e ouço o tempo fluir como um sussurro de água. Este murmúrio do tempo confunde-se-me às vezes com o zumbido de um insecto, o uivo do vento ao longe, o tiquetaque dum relógio, o ranger de uma pena no papel, o apito abafado dum ouvido doente... E dizer que tais ruídos me fazem ouvir o silêncio ou sentir correr o tempo -- são-me expressões equivalentes. Ao fim de certas tardes, penso na manhã do próprio dia como se houvera sido há dias. E ao da semana, outras vezes, conservo só a impressão dum dia baço, incolor, chato... Nem falo já das cenas que decorreram há anos, e me são sempre de hoje; dos intervalos em que um sobressalto do coração sustém as horas; ds conversas que se arrastam eternidades; dos instantes imensos, petrificados; ou daqueles dias que súbito nos arrastam numa velocidade vertiginosa... Sendo da experiência comum, tudo isto é ainda em mim complicado por qualquer tique particular.

"

José Régio em Jogo da Cabra Cega, página 224 - 225

edição Opera Omnia

domingo, 19 de outubro de 2025

Maldade de um sem noção

A pequena Matilde teve um pequeno vislumbre do que é e será a vida nesta família e, por extensão, neste país. 
A pequena Matilde tem sete anos e recebe-nos hoje em sua casa para festejar os anos do seu pai.
A pequena Matilde leva a avó ao seu quarto para mostrar os pequenos objectos que fez com plasticina, a mãe mostra-se orgulhosa: pequenos objectos, uma cenoura, um balde com pincéis, os pincéis, um caracol, um arco íris, uma palete para misturar a tinta, uma máquina fotográfica, tudo em miniatura e com as cores certas e com detalhe, cabem todos alinhados em cima da tampa da caixa de plasticina. Bonito. 
Depois do almoço e depois do bolo, Matilde senta-se no sofá trazendo do quarto a sua caixa de plasticina com os bonecos e mostra-os ao primo. Matilde tem dois primos: um de quinze e a prima de dezanove. Matilde gosta de passar os dedos, fascinada, pelos colares douro da prima quando se senta à mesa. Matilde mostra as miniaturas que fez ao primo e ele pega em duas ou três e mistura-as nas mãos começando a moldar uma bola de várias cores. Contente com o resultado mostra a bola à primita Matilde, ela olha e começa a choramingar.
O primo destruiu-lhe os brinquedos que ela com tanta aplicação tanto gosto tanta arte, digamos assim, fez com as mãos. 
Matilde chorou e mãe disse Ó Matilde não chores não foi nada...
O primo ri-se da prima estar a chorar e diz Que mal fiz eu, e continua feliz. 
A tia, mãe do primo, diz a rir-se para o filho Então tu foste fazer isso, e continua feliz. 
A Matilde parou de choramingar, pega na bola de plasticina que o primo fez e nos outros brinquedos, e traz a caixa para a mesa do almoço e mostra à tia, a tia diz Vês Também podes fazer bolas queres fazer uma bola como o primo.
Matilde com cara triste diz que não e vai arrumar a caixa. Quando volta, vai junto da prima e pede-lhe para brincar com ela. A prima diz Vai brincar com o primo. 
A pequena Matilde vê com aquela idade que ninguém fez caso da maldade que lhe fizeram e ainda se riram e, depois, vê que ninguém a conforta e a mandam ir brincar com quem lhe fez mal. Quando devia ser o primo a pedir desculpa à Matilde.
E o pior é o primo não ter noção. 
Queres brincar com o primo, vai ao primo dar-lhe um abraçinho. 
E a Matilde vai.
Não pude olhar para o abracinho. A minha revolta interior impediu-me mas ouvi as vozes dizerem Olha não guarda mal nenhum, como que a dizer não há motivo para a Matilde estar triste. Está tudo bem.

E eu que sou o elefante na casa, não posso fazer nada além de observar e escrever.

Miséria! Nesta família a criatividade é morta à nascensa de forma brutal, quer a criança voar e cortam-lhe as asas, riem-se e é ela, a vítima, que tem de fazer as pazes com o agressor and let it go.
Como se fossem os palestinianos que deviam pedir desculpa aos israelitas por simplesmente existirem.
Como se fossem os negros e os ciganos que deviam pedir desculpa aos europeus e portugueses por serem discriminados em qualquer serviço público.
Como se fossem os pescadores venezuelanos e colombianos que tivessem de pedir desculpa ao Trump por levarem com um míssel hellfire em cima e morrerem enquanto estão a pescar.

Não é por causa dos imigrantes, como disse o Passos Coelho, que os portugueses podem sentir-se estrangeiros neste país. 
Eu sinto-me estrangeiro nesta casa de portugueses. 
Sou como o alien que aterra e em vez de abraçar a família vou abraçar a árvore.


bliss for those who understand

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

É por causa de coisas como política externa

Na televisão, ouço Paulo Raimundo dizer a propósito do Nobel da Paz: -- Já se esperava uma golpada se o vencedor fosse o Trump. Não ganhou o Trump, ganhou uma trumpista.

O pcp prefere apoiar o Maduro e ignorar a posição do partido comunista venezuelano que está na oposição. Mas também leio que Corina Machado flerta com a extrema direita.

O pcp prefere compreender o Putin que não é comunista e ignorar a posição do partido comunista russo que está na oposição.

Eu poderia votar pcp mas não voto e, apesar de concordar com muito do que o partido diz, não voto por causa da puta da política externa! Se o ditador for de esquerda é bom para o pcp. Pois nenhum ditador devia ser bom.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Adenda ao tuíte anterior

E depois, pagar ao crítico para dizer bem de mim, pelo menos teria a vantagem de ser patrão de alguma coisa, seria um patrão cumpridor das minhas obrigações salariais e quando o empregado pisasse a linha ou pedisse aumento, eu responderia:
-- E que fez você para merecer aumento? Passa o dia alapado nessa cadeira vintage a ouvir Lady Gaga e a beber vinho com flor... olhe que eu trabalho com muito custo, toda a vida trabalhei, sabe?
-- Paga, porco!
Então eu espetar-lhe-ia uma murraça com a mão cheia de dólares (mas o dólar vale tão pouco ihih) e com o pouco sangue e muito ranho das suas ventas a tingir as notas, diria:
-- Agora, miserável!, escreve o panegírico, escreve O Maior sessenta e quatro vezes no texto, uma vez por cada permutação do iching, adere à resistência, diz Ohm.

Como é obvio, a pancada não resolve nada e ele escreveu tudo ao contrário, mas nem ele próprio percebeu, de qualquer modo, foi um sucesso nas redes sociais e até o chatgpt escreveu É o maior.

domingo, 5 de outubro de 2025

Tuíte A fama é um berlinde

Eu pensava que tudo era mais que apenas vender mercadoria e transbordar glamour nas redes sociais. Pensava que era sobre trocar ideias e fazer ligações recíprocas.

 Diz-me lá, por isso: deverei eu dar dinheiro a um crítico para ficar na história, mesmo que ninguém mostre interesse na pessoa? 

Não. Prefiro que ele continue a escrever os seus poemas honestos onde dita ordens e imagina a vida do outro.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Um conterrâneo soldador a ler Walser

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 O meu pai perguntou ao almoço se eu poderia levar a minha mãe, em vez dele, à cabeleireira às cinco da tarde e eu respondi:

-- Não posso, tenho de ir entregar a carta da mãe nos Correios e depois apanhar lá o autocarro para ir à Lapa comprar mortalhas.

Não disse que não chegava a tempo, completei a negação dizendo: -- Em Forno Town as mortalhas custam um euro e onde vou custam vinte cêntimos. Não vou ao Forno comprar mortalhas para fumar no fim-de-semana, eu quando vou à Lapa compro mortalhas para três semanas.

Quando tomei o café com os meus pais, entreguei o jornal para eles lerem, peguei na carta da minha mãe e desci as escadas até ao meu anexo. Estive a ouvir um cdr de Margarida Guia que havia comprado recentemente e a pensar que era do café em excesso os problemas no estômago nos últimos dias. Não sei nada sobre Margarida Guia, sei apenas que é portuguesa e vive em França, este trabalho tem field recordings, voz e alguns instrumentos, uma ou duas boas melodias, é um disco curto, pouco mais de meia hora, mas as boas obras não precisam de ser longas.

Pensei «É tempo de ir.» Meti no walkman uma cassete de Lieven Martens e fui pelo caminho dos Coriscos aos Correios. Cheguei, esperei a vez, e entreguei a carta de porte pré-pago ao balcão. Saí da estação e cheguei à paragem, o autocarro chegou em três ou quatro minutos. Entrei e sentei-me na cozinha do autocarro e carreguei no stop do walkman. Lieven Martens usa igualmente field recordings que exigem a máxima atenção e o barulho do autocarro, do motor e do ar condicionado impedem que se ouçam todos os sons.

Três paragens mais à frente, entra o Zezinho e ignoramo-nos mutuamente e olimpicamente ele sentou-se no outro lado da cozinha e os lugares entre nós dois foram ocupados por um outro passageiro que se sentou na paragem seguinte. Os seus fones são mais potentes que os meus mas o som que deles saía fez-me pensar «Ainda vive no tempo das raves e das pastilhas daquele sócio que mais ninguém viu.» Era só Tum tum a saír dos fones do Zezinho e a meterem-se no meio do som do trânsito, das portas a abrir, das validações do andante, do motor, das notificações do telemóvel da passageira à minha frente. Mas, olha, é o que temos, os conterrâneos de Carreiros City só ouvem techno e djs de rave.

Conformado mas pouco importado saí na minha paragem-destino e pus os meus fones retro nas orelhas e carreguei play no Lieven Martens e começei a ouvir sons de floresta com pinceladas de sintetizador, pareceu-me um clarinete sintetizado, misturado no barulho da passadeira e da rua abaixo.

Passei numa livraria e vi na montra um livro de Maria Velho da Costa, fiquei curioso, não dizia o preço, teria que ir levantar dinheiro e retornar aqui, «e depois quando iria eu ler este livro?», «não estou em alturas de acumular», sigo rua abaixo, vejo noutra livraria no caminho para a tabacaria outro livro, José Régio: Jogo da Cabra Cega, «que terá este livro de disruptor para estar aqui neste montra?», fico curioso mas sigo o meu plano: comprar mortalhas. Sigo em frente.

«Qual era o jogo da cabra cega?, não me lembro, havia o cavalinho, o pião, as caçadinhas, as escondidinhas, a macaca...», penso eu ao chegar à tabacaria.

Compro mortalhas e retorno o caminho a pensar no livro, «a livraria tem multibanco...», entro e peço para folhear, Vergílio Fereira diz na contracapa ser um dos três melhores livros portuguses a par com Húmus de Raul Brandão e a Confissão de Lúcio. Sorrio ao lembrar o Mário de Sá Carneiro ser aqui citado, já não o leio há quase trinta anos e nem sei se ainda tenho saudades. Compro o livro e venho para a paragem de autocarro.

Chego a casa às 17h30m. Os meus pais ainda não chegaram da cabeleireira e também tinham que ir a uma modista ali ao virar da esquina.

Dou mais uma audição à Margarida Guia. «She's growing on me». Decido ir tomar um café.

Saio do anexo com o livro que ando a ler e com intenção de subir a rua, mas vejo que os meus pais já chegaram e me olham pela janela. Digo: 

-- Vou tomar um café. O meu pai responde:

-- A tua mãe quer que tu vás com ela ali abaixo buscar uns diospiros...

-- Ó, mas não precisa de ser agora, quando voltares. Diz a minha mãe.

-- Uns diospiros? Aonde?

-- Ali abaixo. E aponta. -- A senhora disse...

-- Na casa do João Filipe?

-- Sim.

-- Está bem, vamos lá. 

Volto ao anexo para deixar o livro e depois desço a rua duas casas. A antiga casa da mãe do João Filipe foi vendida e o novo dono está a fazer obras e o diospireiro está carregado. E a nova dona anda a distribuí-los pelos vizinhos. Batemos ao portão. Eu digo:

-- A senhora da casa disse à minha mãe que podia vir buscar diospiros.

Chega o dono. Jovem com menos de trinta anos. Brasileiro. Desculpa-se de ter as mão sujas de andar a fazer as obras de remodelação e não nos apertar a mão e chama um dos rapazes que o está a ajudar e diz-lhe para ir buscar o cabaz com os diospiros que a sua mulher tinha posto de lado.

A minha mãe começa a encher a fruteira que havíamos trazido para recolher os frutos e começa a encher, a encher a fruteira. O dono diz qualquer coisa banal, a minha mãe diz que conhecia a antiga dona, eu digo que os diospiros fazem bem à saúde, o dono diz que ele não mas a mulher dele come, está sempre a comer mas olhe!, temos a árvore cheia, eu pergunto «mãe?, não é aos olhos que os diospiros fazem bem?», a minha mãe reflecte, vira-se para o dono e diz que os diospiros fazem mal aos diabetes e entretanto, acaba a comentar «vou acabar por os levar todos...»

-- Mãe, não achas que são demais? O senhor pode querer oferecer também a outras pessoas... digo eu a pensar se a minha mãe se lembra que tem diabetes. Também a minha mãe tem a sua droga que não sendo um vício, sempre que chega perto de uma fruta doce...

Ele diz: -- Temos tantos, pegue eles todos, minha senhora.

Obrigado e despedimo-nos, eu aperto-lhe a mão. Vimo-nos embora, subimos para a nossa porta, eu coloco a taça na mesa da cozinha e venho embora, passo no anexo e recolho o livro e vou ao café ao cimo da rua.

Entro, cumprimento e peço o meu café. Um rapaz olha para mim, eu olho para ele, ele sorri e eu sorrio, estendemos a mão e cumprimentamo-nos.

-- Não sei se te estás a recordar...

-- Não me lembro agora do teu nome mas já não te via há anos. E então, tátudo?

-- Tátudo!

Volto ao café e pego no telemóvel para ver a notificação. Olho à frente da mesa e vejo uma mão estendida para mim. Olho para cima e vejo um outro sócio que também já não via há anos. Ele mostra atenção pelo livro que tenho na mesa, pega nele, folheia as primeiras páginas, eu digo:

-- É um livro com a fala de um índio, o autor escreveu-o com a ajuda de um tradutor, o chefe índio conta a história da sua tribo, e o autor toma notas escritas do que ele diz pelo tradutor.

-- Sim, sim, um dos melhores livros que li foi o livro do Duchaussois...

-- Sim, conheço, li-o com vinte, vinte e um anos.

-- Eu tenho a edição dos anos setenta.

-- Sim, deve ser valiosa, trata bem desse livro...

-- Já o li para aí seis vezes.

-- Mas também podias ler outros...

Ele confirma e diz solene: -- Sim, tenho as Memórias de Adriano de Yourcenar...

-- Conheço o livro mas nunca li.

E depois pensa e pensando diz: -- Ualser...

E eu «Ualser... estará ele a pensar em, conhecerá ele?» e pergunto: -- Robert?

-- Sim, Robert Ualser, tenho um livro dele...

Eu completamente maravilhado pergunto: -- Tens um livro dele?

-- Sim, como se chama o livro? 

E põe-se a pensar e tudo isto é ao milésimo de segundo e também eu me ponho a pensar em qual livro, e digo: -- O ajudante?

-- Ele diz: -- Sim! e dirige-se à casa de banho e no caminho eu digo um pouco para confirmar que ambos falamos do mesmo:

-- A mulher do patrão era a frau tobler. E sorrio. Ele sorri e entra no WC. 

E eu maravilhado a pensar «um soldador a árgon... um operário a ler Walser, um conterrâneo meu a ler Walser!», a ler e a dizer Ualser, eu sempre pensei que se dizia Valser, mas ele tem arranjado trabalho como soldador por essa europa fora, até pode estar certo, se Walser for como Walter ou Wayne... o W lê-se como um U...

Quando chego a casa são horas de jantar.

Mas depois penso «nunca fiando, eu sei que há quem leia as minhas publicações, mas não tenho falado do Walser... ele também não se lembrou do nome do livro, fui eu que me antecipei, eu não dava para polícia de investigação, devia ter-lhe dado tempo para se lembrar do nome do livro, assim apenas criei uma hipótese de ficção... mas só o facto de ele ter, à partida, dito Ualser já é maravilhoso, não sendo um absurdo é algo que ressoa.»

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terça-feira, 23 de setembro de 2025

Carreiros com fome

 Explicação do termo «Storm is ready here to go» aplicado a uma música de ZMB criada em 2007/2008 e reapresentada na sua versão longa em 2025 com o título «a tempestade e» e a qual foi embrulhada em poesia que eu disse fonética.

Esta poesia dita de fonética é na verdade uma poesia do absurdo. A gente lê Cros e Beckett e ri-se com a ilogicidade da situação que o texto conta. Rimo-nos com a loucura da personagem e com o seu absurdo. Mas se pedirmos uma explicação ao autor ele não a dá e remete-nos para o texto em si, ou seja, o texto absurdo é explicado, racionalizado, higienizado mas só fica como resíduo da história o riso, que é a versão romântica da loucura, «bora lá ser louco e rir e fazer rir até não parar» dirão alguns. 

Mas a loucura é algo diferente e o texto da loucura na primeira pessoa é absurdo porque ininteligível, é uma fonética do caos, o absurdo é o caos, o texto está cheio de cliques, sequências de palavras que funcionam como cliques e remetem para situações que acontecem à volta do louco, pode ser uma personagem de filme, pode ser um verso musical, pode ser um evento futuro ou passado ou uma invocação de algo que se deseja que ocorra, alguém que apareça. É um discurso mágico no sentido em que se escreve a mensagem e se a enterra e anos depois ao voltar a ela anos mais tarde ela é incopreensível porque os segmentos desse discurso ficaram esquecidos e se ocorreram muitas vezes ocorreram apenas ao nível mental, ou seja, dentro da cabeça do louco que escreve.

Exemplo:


Legal informal pendular

vestem os humanos uma perna de cada

espanha españa spain 3 vezes

regional

irlandês finlandês nordland na tenda das

pme => louva-a-deus

diminuição nas chamadas com

  custo de contexto =>

aquele caminho leva a algum lado

  direccionado para os nichos

bichos de mercado, gerir os nichos

  de pureza original =>

os anti non não nee a partir do

  gabinete do pm =>

a vã glória de mandar

os anti non não nee a toda a opressão

  das instituições públicas

mas não púdicas ou mesmo púbicas carnes

  de porca...?

Resposta 1: península provoca o congelamento.

Resposta 2: estagnar e indemnizar os nonono

  with a gun dillinger dean gangsters!

Holy shit shit cow chao holy shit shit

uma vaca pode ter três tomates (?!)

down town train and a glass of vodka,

  let's get high high high!

Que pontes de contacto com a realidade?

Onde e como?

A receita é simples: those hives sff fodasse

 

 -- ou então exemplo 2:


 

Carreiros com fome

Imediatismo ou coisa-isma doom

Criando ourobouros metal ooorrrg

Eternidade retornando

  escatologicamente

 

Pinando pintar pintando pinar?

  Hongos...

Depois pinar primeiro pintar?

  Wolves...

Depois pintar primeiro pinar?

  Gratinhas...

Roubar um beijo?

  Isso sim vulva súcuba!

Ainda válido?

  Chouriço sem cabeça!

Uma década valerá um número-porta?

Um cd, uma mãe, a shrine?

  Sucking up my soul yr soul...

  In a lair to feed the moon..

My dream of a moon as I bite yr breast?

My mother's milk would I like?

I would like to take a nap in your pot belly

but little jazz bop in yr mouth?

 

Tu poderias queres que eu

  te oferecesse uma lolipop...

Seria mais um segredo policial mente

  mente poetisa.

A Amy poderá morrer aos 27

e ela teve um relapso dias depois.

[e ela infelizmente morreu mesmo aos 27]

 

As abelhas andam por perto

quando ponho Beequeen no leitor de cd.

 

 -- 

se a literatura é a expressão escrita de uma voz, estes dois exemplos são de uma voz em ruínas.


A música Storm is ready here to go significa que a tempestade já cá está e está pronta a morrer. Foi musicada a partir do som de uma trovoada e da declamação de várias vozes de um texto em inglês que era basicamente a junção de frases de booklets de cds de bandas com títulos de bandas, músicas e filmes. 

Na música a frase You must destroy to build a new form of beauty é a junção de um slogan de Einstuerzende Neubautem com um projecto musical de Virgin Prunes. 

Hoje, depois do que acontece em Gaza e com os ministros israelitas a dizer que Gaza está na fase de demolição e que o Trump tem em cima da mesa um plano para build a new Gaza... hoje, dizia eu, a música soa tétrica e reveladora de que a tempestade tem de ir, tem de desaparecer, a tempestade é o fascismo nos EUA e Rússia e Israel e Sudão e um pouco por todo o lado e a ganhar força na europa e em Portugal. 

We're here to go, dizia WS Burroughs

Are you ready to go?, disse John Balance no seu último concerto antes de se ir.


Storm is ready here to go é tudo isto, uma cápsula temporal que retornou e vai dar cabo do Ocidente.

A não ser que...


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

IRABCDJOL XVI

 

IRABCDJOL XVI

01: Portugueses
02: Vocês Devem
03: Convocar
04: A Tempestade e
05: Os
06: Pássaros
07: Para uma caminhada
08: E depois ler o Zetho às vizinhas

2025 ZMB

Track 01, track 02 e track 03 são fontes sonoras usadas em álbuns anteriores.

Track 04 é a versão longa da composição «Storm is ready here to go», editada em IRABCDJOL 7 e que aqui aparece embrulhada em poesia fonética.

Track 05, track 06 e track 07 são gravações de campo alteradas com efeitos sonoros em 2020.

Track 08 está construída à volta de um poema de Abderrahman el Fathi (Marrocos) que foi reescrito em português por Zetho Cunha Gonçalves e editado no seu livro «O Sábio de Bandiagara» pela Maldoror em 2018.

O desenho de capa deste álbum inspira-se na capa do livro.


zmb_mur@yahoo.com



domingo, 14 de setembro de 2025

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Utopia

Estou com um cigarro na

mão esquerda

e penso nela,

na princesa de rá.

Estou com uma caneta na

mão direita

e penso nela,

na cigana de shiva.

ZhanXiPin de fato de trabalho

Azul como a cor da bandeira

(cosida à mão ah artesã!)

Um avião passa.

A bandeira com as cores de

ZhanXiPin,

há muito tempo

Transmutada em princesa de

baquelite...

Caiu da janela...

O gato levou-a ao vento.

O milho deu pombas às pessoas.

A guerra acabar — eis

a minha utopia.


terça-feira, 9 de setembro de 2025

Nunca mais comerei pão

Tanios começou de repente a tremer, como se uma corrente de ar frio tivesse penetrado na sala. Com grande custo conseguiu pronunciar a palavra "laych" -- "porquê?".
-- Depois do que se passou, a nossa aldeia já não pode manter os seus contactos com essa escola. O nosso xeque disse-mo claramente antes de partir. Na presença do nosso patriarca. 
-- Que o xeque decida pelo idiota do seu filho, mas não por mim.
-- Não permito que fales dessa maneira, enquanto estamos debaixo do seu tecto. 
-- Raad nunca quis aprender nada, ia à escola forçado, porque o seu pai o obrigava a tal, e está muito contente de não ter que lá voltar mais. Eu, ia lá para estudar, aprendi muito, e tenho vontade de continuar a aprender. 
-- O que aprendeste é suficiente. Acredita na minha experiência, se estudares demasiado já não suportarás viver entre os teus. Deves instruir-te apenas o necessário para ocupares plenamente o teu lugar. É isso a sabedoria. Vais ajudar-me no meu trabalho, eu ensinar-te-ei tudo. 
"Agora és um homem. É tempo de começares a ganhar o teu pão. 
Tanios levantou-se como um morto.
-- Nunca mais comerei pão. 

Amin Maalouf em O Rochedo de Tanios
Tradução de Maria da Graça Morais Sarmento 
Edição Difel

domingo, 7 de setembro de 2025

Tuíte Quero lá saber do Proust

 O dia de ontem? Memorável!

O doutor dá a sua consulta — a última

                              antes da reforma.

Pergunta como me sinto

                                    agora

Com a redução da prescrição?

Eu digo-me bem e peço

                                    ainda menos...

— Informe-me, faça a exegese,

o que está escrito acerca da 

                     minha situação clínica?

Ele lê: agitação... mania da perseguição...

          exaltação... verborreia...

Tento explicar os porquês:

‘o verão, o varão, o barão, a barona

                        e a baronesa, doutor...

a baronesa recusou a minha declaração,

ela contou, extrapolou,

submeti-me à chacota, zanguei-me 

                         com o boss, doutor...’

Falo, principio a abordar o resíduo.

O doutor diz: tem problemas da adaptação.

Insisto: as minhas relações são frustrantes,

                                          conflituosas.

Digo: os media transmitem propaganda.

induzem, tornam o meu pensamento verídico,

                                                manifesto.

Ele analisa; é aí que começa a doença,

a inadaptação não é propriamente doença,

                             mais um modo de ser.

Quanto às mulheres, ele diz:

‘quem vai à guerra...’



Lentamente as palavras vão 

                         fazendo sentido.

Negoceia-se uma redução de dose.

Ao fim de um ano... talvez 0mg.

Depois... um período de três anos

                             em vigilância.

Sei que o doutor faz um boa acção:

uma prenda com veneno antes da 

                               sua reforma.

Só eu poderei descobrir o antídoto.

Ser auto-suficiente.


A celebração inclui Wilhelm Reich 

                               na Amazon.

Consegui um cartão de crédito.

Exercito o meu inglês.

Leio: ser bilingue pode impedir 

                              o alzheimer.

Ao jantar envio sms a dizer:

‘não trabalho segunda,

if I might be bold entre linhas

vamos querida para fora uns dias’

Confesso-me ousado, espero que

                                   ela goste.

Lembro: apaixonar-me por email é

                                rotina minha.

Aguardo resposta.

Ouço Legendary Tiger Man em vinyl.


sexta-feira, 5 de setembro de 2025

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Tom Zé - Se (1976)




Ah se maldade vendesse na farmácia
Que bela fortuna você faria
Com esta cobaia
Que eu sempre fui nas tuas mãos
Oh mulher
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) De quem?
(Se) O que?
Se isto for possível pois me contem
Como escrever de novo um jornal de ontem
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) De quem?
(Se) O que?
Eu beijaria os pés da Santa Máter
E reescreveria o seu caráter
Ah se maldade vendesse na farmácia
Que bela fortuna você faria
Com esta cobaia
Que eu sempre fui nas tuas mãos
Oh mulher
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) De quem?
(Se) O que?
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) De quem?
(Se) O que?
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) Se desse
(Se) Se fosse
(Se) De quem?
(Se) O que?
(Se) Sentisse
(Se) Mas como?
(Se) Porém
(Se) Por quê?
(Se) Ora
(Se) Não diga
(Se) Se fosse
(Se) ...

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Graffiti


A humanidade só será livre no dia em que o último capitalista for enforcado nas tripas do último estalinista 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Primeiras impressões de ZOV de Rui Manuel Amaral


Vou neste capítulo. 
Até aqui, os capítulos são como pequenos actos de uma peça de teatro. O palco pode ser ao ar livre ou ser um salão com uma fotografia projectada na parede do fundo como cenário, se tivéssemos muito dinheiro podíamos montar um cenário real, quero dizer, plantar árvores, requisitar estátuas, ou então,  encenavamos a peça em vários locais, um local um acto, que digo eu?!, um acto por dia, poder-se-iam arranjar excursões para o público seguir na comitiva dos actores.
Eheheh escrevo tudo isto porque estou a tentar entrar no espírito do texto, que é cómico e divertido, os actos até este capítulo são quase todos monólogos que me parecem vir da tradição do absurdo mas antes de Beckett, estou a pensar em Charles Cros.
Um destes monólogos é para mim memorável, e se eu fosse jovem talvez lhe chamasse de épico, o monólogo da mulher que fala ao homem que do início ao fim permanece calado e sem mexer um músculo, lembrou-me na vida real a Vallis dando-me um sermão e eu com a cabeça entre as orelhas afundado no sofá caladinho que nem um rato.

É um livro que aconselho. 

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Tuíte do fim do mundo

 Heureka! O meu pai de quase quatro vintenas de anos aderiu ao facebook!

Não sei se é o fim do mundo mas pediu-me para eu lho instalar no seu novo espertafone, está a ficar moderno.

Hoje, todo contente pediu-me para eu lhe tirar e colocar uma foto de perfil: ele e a minha mãe.

-- Mas ela não está bem perto de mim...

-- Também querias que ficasse em cima de ti?! Pelo menos, está a olhar para a camara e tu tens um olho que sim e o outro não!

O meu pai olha a foto no espertafone (ele não vê mãe ele não vê, aquilo é o novo brinquedo dele, filho) e responde: -- É dos óculos!

Agora, anda a ver as publicações dos sobrinhos, a dizer olha este é reaccionário, ou então este é o teu primo?, parece ele.

O meu pai inverteu a lógica. para ele um socialista ou um comunista é um reaccionário, já os de direita são Deixa-me comer em paz, deixa o Luís Trabalhar.

Sim pai, ainda bem que o Luis está a trabalhar, mas foi só por aquela senhora a quem ardeu a casa ter dito que o Luis estava na praia. Ainda bem que o Luis e a ministra da saúde estão a trabalhar, o que seria se não estivessem... quantos mais bebés tinham morrido se eles não tivessem a trabalhar.


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Caniche desalmado

Foram poucas as mulheres que se aperceberam que eu gostava delas e houve inclusive homens que pensaram que eu gostava deles, mas quando uma mulher vê que eu já não gosto dela ou eu digo a um amigo que ela já não me satisfaz, ela pensa que eu tenho outra, ele pensa que eu talvez goste mesmo é deles. Duplamente incompreendido, ela ligava a toda hora a querer-me de volta e ele falava de grupos que ajudavam jovens homossexuais.
Compreendes-te sozinho quando assumes perante uma audiência que a trocas não por uma outra, ou por um outro, mas por nada, por uma coisa, uma ideia, um exemplo: tomar um café e ouvir uma música escolhida em paz no teu quadrado com tecto. E não te descobrires como um matuto do sítio imigrado na cidade.
Vallis nunca percebeu. Shivana sim. Ainda bem. 
Vi Vallis há dias após dez anos e fiz cara agónica quando a reconheci mas hoje encolho os ombros ou lavo as mãos. Para Shivana desejo o melhor e que o Deus dela a proteja.

sábado, 2 de agosto de 2025

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Fado Samba (1988): dedicado a um amigo que faz anos e é amigo dos livros das Edições Cassiber


Meia noite nas esquinas e
Um pacote no verão
Estavam as pinhas à pina
Encastradas no varão

tantan tantan — tantan
tintin tintin — tintin
tão tão tão tão — tau tau
barbeia-te com omnisciência
a mosca ajuda-te...
                        intensa mente
livre livro libra libris...
                        lânguida mente

Menti ras mentindo menti ras mentin do.

Mentirias a quem? quem? quem? quem — quem?
Quem? Eu? Tu? Tu — Tu Tu?
Amanhã vou cortar o cabelo.

Um clitóris dois pentelhos
Uma vinhaça um sabão
‘bora lá torrar o escaravelho
Encaderná-lo em cartão.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Hipocrisia das gentes nacionais

Vejo muita gente preocupada com os ciganos, os árabes, os hindustânicos e dizem que eles vêm para cá para causar problemas, mas depois vemos no Jornal de Domingo na SIC jovens turistas em Albufeira bêbados a partir à cadeirada pessoas em bares que só existem para os servir.
Vejo muita gente a dizer mal das brasileiras e africanas e depois são elas que cuidam dos nossos idosos e limpam as nossas casas a troco de salários de miséria e muitas vezes sem direitos laborais, e é se querem, dizem os patrões e patroas, porque senão podem voltar para a terra delas.
Vejo muita gente queixar-se da insegurança nos bairros e no centro das cidades e dizem que a culpa é dos imigrantes mas depois esquecem-se de como era o Porto nos anos 80 quando podias levar com um balde de urina na cabeça ou ser esfaqueado por um português ou esquecem-se dos bandos de jovens suburbanos que invadem e destroem desde autocarros ou lojas ou batem em sem-abrigos quando vêm divertir-se à noite no Porto. 
Queixam-se que agora há ruas de Lisboa cheias de gente de pele escura, mas esquecem-se que a zona do Rossio sempre foi habitada por negros e que já no tempo do terramoto Lisboa era habitada por escravos de várias cores, mercadores de Itália e da Flandres, quem eram os Lisboetas? Os imigrantes que vinham das aldeias em busca de uma vida melhor porque os outros iam vandalizar as colónias e roubar-lhes o ouro e as mulheres.

domingo, 20 de julho de 2025

52


Keep friends with yr cousin cause shes gold and all you got from this living and all the rest are vultures

quarta-feira, 16 de julho de 2025

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Anedota do almoço

 Pai, estás a ouvir o jornalista?, o trampa está-se a preparar para pôr uma tarifa de 500%.

Ele está doente

Tens razão. mas quem sofre são os americanos e não ele, o holandès chamou-lhe paisinho, os árabes deram-lhe um avião de 400 milhões. Olha, uma notícia das redes sociiais que viralizou...

Não acredito, deve ser mentira.

Ouve primeiro: um bordel, eles na notícia dizem um cabaré lá no Brasil, mostrou um recibo que passou a um turista. Tanto para bebida, tanto para o preservativo, tanto para o serviço, por assim dizer, completo, eu nem vi os valores, só vi as parcelas somadas e depois por baixo, mais Tarifa Trump de 50%, e entre parêntises, por ser americano!

Eheheh isso não é verdade não pode ser.

Mas é!, eu vi a foto do recibo. Bora lá taxar os camones! eheheh




domingo, 13 de julho de 2025

Para cansar o leitor uma última vez... até à próxima eheheh

 The end


É claro k a história continuou. 

Mas preferi vivê-la. 

Dei um não definitivo a todas as k s tornaram musas, 

até a própria deusa recebeu uma quase indiferença, 

à falta de melhor termo, quando jogou na malicia 

pensando talvez o passado em cristal,

pensando quando apareceu sem dizer uma palavra

que eu me lembraria do seu rosto nesse instante

e logo no instante seguinte

virou costas sentindo-se esquecida.

Nem me deu tempo de a reconhecer.

Fiz as malas, 

avisei toda a gente, 

fretei os colegas do novo trabalho 

e a carrinha para transportar alguns móveis

e mudei-me para a cama de vallis, 

ela de minha mãe recebeu uma camisa de noite azul 

sinal de k a tratava com flores de laranjeira. 

Se deixei musas e deusa foi 

pk deixei d acreditar em ilusões e 

fui viver a realidade de um amor proletário. 

Amámo-nos tanto 

e desejámos morrer e matar o outro tantas vezes

‘casámos’ duas vezes como Richard e Elisabeth

fomos rei e rainha de latão

não, não foi a morte que nos separou

isso seria trágico

mas talvez 

se eu digo Solteiro e saltarico para sempre.

até tu hoje possas cantar como eu:

Liberda de liberda de!


sábado, 12 de julho de 2025

Poema agressivo doente e ideológico e mal-educado

 café corin num rima con

pequim denxiaopin polpotin marine le pin

lenin estalin trotskin idi amin pin

hitlerin reaganin bushin obamin orbin pin

merkelin barrosin cavaquin coelhin pin

nem con Trumpin Putin Montenegin Venturin pin


pin pam pão pum mata pum


café corin rima con

mayakovskyn akhmatovin kropotkin e bakunin


no café corin u futuru num foi onte


quarta-feira, 9 de julho de 2025

Sopra Vento Sopra

 Ok... não sei como escrever isto.

e o leitor já desconfia das actualidades,

Ando há dias a pensar,

tenho-me lembrado de algumas frases-conclusão

mas tenho adiado,

tenho dito a mim próprio:

escrever um livro em forma de diário... praquê?

Ok, para ordenar as ideias ok mas...

já sei!, encontraste nos cadernos pequenos fragmentos

com sentimentos como:

‘era bom que o telefone tocasse’

mas...

ele hoje até toca, ou melhor tocava

e tu retiraste o volume ao toque de chamada

porque te era insuportável ouvir tocar

cons tan te mente

houve um dia que ela telefonou oito vezes

desde a uma às oito da manhã

por isso imagina o não poderes dormir

e então desliguei o som

porque não suportava

houve muita coisa que não suportei

mesmo que algum paraíso alguma magia tenha havido

mas durou um mês

terminou quando lhe disse que tinha dela pena

o dinheiro escasseou

a paixão terminou

ficou o peso da responsabilidade

de ter alguma culpa se algo lhe acontecesse

os anos seguintes foram desatinos

empréstimos a fundo perdido

choros ameaças

e pouco sexo

mas nem tudo foi mau e a verdade:

ela salvou-me

sem o saber fez-me ver que

vivi o meu passado como uma ilusão e que

tinha de perder a ilusão, tinha de me ‘desiludir’

para viver uma realidade de verdade

mas esta?!

A verdade fica: ela disse que eu não lutei o suficiente

outra verdade: ou vai ou racha, tenho de

dar um passo em frente

ir morar de facto com ela

terminar o bacharelato: chama-lhe dispensa sabática

chama-lhe perversão de teres meio cérebro

ocupado por uma mulher invisível

e na verdade esta mulher real

(Vallis) quase me faz acreditar

num casamento sem aliança ou papel

mas fizeste esta relação temporária

porque depois de qualquer grave sempre discussão

sobre qualquer coisa comezinha

(aquilo que os poetas do sistema chamam a vidinha)

eu não suporto os teus olhos furibundos de polícia

espumando-se de raiva

então saio de casa para comprar pão

a dizer que era temporário

ou que será necessário utilizar

um plano de cinco anos soviéticos

para te fazer um upgrade à consciência e ao teu

‘environment’ em inglês

e tu hoje só sabes dizer ‘lol’

outras vezes dizias que eu queria liberdade

e eu te dizia que o amor não tem de ser uma prisão

mas tu ficas com ciúmes

deixei de gostar de te levar a sair

quando fizeste um recital inquisitório num espaço público

pareciam as galinhas a dar bicadas no garnisé

e para piorar

até o meu pai sustenta que o mau é o

garnisé porque dá bicadas no galo

que é ele.

enfim...

sem muita paixão

reagindo bruscamente

desligando o ouvido quando ela acusava

encharcando-me de axn

aguentei reflecti: pareço um otário

o fim próximo mas mesmo nestes momentos pensava:

eu estou a abandonar todos os meus interesses

para me dedicar à causa de a ajudar

a ter mais estudos, mais cultura, mais trabalho,

mais comida, uma bifana, uma cerveja de vez em quando

e com todos os avisos em contrário

ou vai ou racha

vá lá faz as pazes faz amor

mas como pode haver amor?

até de cobarde me chamou, de velho

e passou-se quando eu disse:

deves pensar que és uma topmodel...

tudo correcto

ela nos momentos de fúria esquece

todo o bem que lhe fiz

e só se lembra do mal

e ataca-me

e pôe-me como culpado de todo o mal

que lhe fizeram na vida durante e antes de mim

até tive culpa de ter tido namoradas antes dela aparecer...

ufa que vai longo

vou-me anulando até ao limite

o superego chega finalmente no último domingo:

andor desampara-me a loja

estou farto de me obrigares a ser mau contigo

porque tu és uma burra que não quer perceber!


Passo a desligar o volume de toque de chamada

dezenas de chamadas por dia

mensagens de chantagem suicida

pensa que tenho outra

porque toda a gente pensa quando não sabe os pormenores

compro-lhe um aspirador

e o que recebo em troca são mais do mesmo

eu quase já sem pena o amor a ir-se

quem me dera poder tomar um café em paz e sossego...

andor!

mas ela finória recaptiva-me quando me diz

precisar de ajuda para um trabalho de pintura na escola

e eu escrevo-lhe um email catita

e nesta noite esqueço tudo

digo a mim mesmo:

vou morar com ela,

que se fodam as dívidas!

Vou a casa dela à noite, peço-lhe desculpa

aceita-me de volta

eu quero vir morar contigo de vez.

E ela diz-me que tem de pensar

e eu digo que compreendo

e sei no fundo que o ‘tem de pensar’

significa que falta faísca, falta paixão

mas no dia seguinte ela telefona

e pergunta se eu estou bem

dá uma de madre superiora e pergunta:

ficaste chateado comigo?

‘sopra vento sopra’

Eis como se passa de cabrão a cornudo:

ela que foi abandonada por um marido

que lhe levou as filhas e o sustento

abandona-me e faz o joguinho da

femme fatale do bairro e ainda assim

precisa de dinheiro!?

(para fazer uma pedicure a dedos com micose.)

Como leio numa tradução brasileira de Erving Goffman:

‘um psicótico é tolerado pela mulher,

até que esta encontre um namorado.’


Rachou

o nosso amor velho imolou-se menino no quintal

e ficou esquecido

mijaram até em cima das cinzas

mas todos os Verões no terreno e com rega suficiente

cresce um valente chuchuzeiro

cujo fruto eu aproveito para fazer sopa.


mas não te preocupes por isso

não morrerá ninguém

eu não tenho ciúmes

e digo-te adeus para sempre

ao dedicar-te o livro como se fosses uma musa

e dizer:

o meu coração é teu

‘até que a morte nos separe.’



https://www.youtube.com/watch?v=vh_-AVsgzAs