sexta-feira, 17 de junho de 2016

Interrompendo a circulação dos carros para procurar beatas no bueiro das águas residuais

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As formalidades de requerimento pelo senhor Mancha do rendimento social de inserção revelaram-se um quebra-cabeças. Tinha entregue os papéis no balcão da segurança social na loja do cidadão em finais de Junho, um mês antes de lhe acabar o subsídio social de desemprego. Na altura, pensou que assim seria mais rápido e em Agosto, o mais tardar em Setembro, já estaria a receber a nova prestação. Mas, depois em meados de Julho, saiu dos seus alojamentos na torre de controlo rádio da rua do visconde e ficou sem saber ao certo para onde lhe enviariam as convocatórias. É claro, mudou logo o registo de morada no arquivo de identificação e para isso pagou três euros mais a viagem de metro. 
Era o pino do Verão, o calor tórrido, suava por todos os poros e, por isso, nesse dia decidiu ir de metro porque o arquivo de identificação ficava perto, a cerca de mais dez minutos de caminho, da associação de caridade aonde, na altura, ainda estava a ir buscar, todos os dias a pé, as refeições em taparuéres. Juntou ao agradável, à saciação da fome, o útil, o desfazer-se da sua colecção de moedas de um a cinco cêntimos com coroas de toda a zona euro pela qual a polaca, que fabrica colares a partir de moedas, poderia ter interesse mas que à funcionária do arquivo não agradou muito. Quando viu o monte de moedas pretas e teve de contar à mão os três euros, soltou um «ai vocês!». E o senhor Mancha sentiu-se um moço. O Mancha olhou para a funcionária, não era feia, tinha cabelo escuro, trazia um vestido comprido com alças que lhe realçava saborosamente as curvas do corpo, esse «ai vocês» soou ao Mancha como se fosse uma prima a falar com o irmão bandido, ainda assim pensou que se estivesse bem na vida, talvez a convidasse para uma bebida e, então, lhe contaria a história da sua vida… mas limitou-se a resmungar e vir embora já com o saco da comida e descer o monte a pé pensando no verdadeiramente importante: «Espero que me mandem a convocatória para a casa da dona Zelda…»
Mas não havia meios de a carta chegar. No início de Setembro e a contragosto teve de voltar a subir o monte. O antigo senhorio ligara-lhe a dizer que chegara uma carta. Era 'a' carta. Mas esta só dizia que faltavam documentos e que tinha dez dias úteis para os apresentar com risco de perder o acesso ao rsi caso não os apresentasse. O moço Mancha teve que ir a duas juntas de freguesia para lhe passarem o atestado de residência e provar que estava a viver em Portugal há mais de um ano. Mancha filosofou com meia dose de pragmatismo e outra meia de preocupação: «Ainda bem que sou português e que não emigrei como o pm sugeriu… ainda bem que a segunda junta de freguesia ligou para uma terceira anterior a confirmar que aí morei e produziu um documento onde eu tive de jurar pela minha honra que não saíra do país… imagina os sem-abrigo, como poderão eles receber o rsi?» 
Entregou finalmente todos os papéis em falta e ficou à espera. Passou a cena da bofetada, passou a consulta no hospital e, mais ou menos um mês depois da entrega dos documentos, quase nos finais de Outubro veio a convocatória. Na terça-feira seguinte, haveria de ir falar finalmente com a técnica de reinserção.

-- Vejo aqui que ainda tem família, os pais e uma irmã solteira. Porque vive então num quarto?
-- A verdade é que não me dou muito bem com os meus pais, mas também é verdade que vivi sempre com eles e só há pouco mais de dois anos é que saí para viver em Vallis com uma senhora. Mas as coisas não correram bem e saí de lá. Como na altura tinha emprego achei que podia muito bem ter a minha residência e não voltar para casa dos meus pais. Como só ganhava o salário mínimo, arranjei apenas um quarto em Derza mas voltando a registar a minha residência em Tintus Rius. Compreenda… era mais seguro em termos de receber correio, em casas partilhadas e sempre a mudar de lado para lado…
-- Sim, compreendo. E o que aconteceu nesse trabalho?
-- Eu estive lá dois anos. No final do último contrato eles não renovaram. Se o fizessem, isso significaria eu ficar efectivo. Eu acho que era bom trabalhador mas eles não me quiseram, ficaram-me a dever dinheiro e tudo, depois sou esquizofrénico e torna tudo mais difícil…
-- Como assim?
-- Bem, não é fácil de explicar. Ao princípio, pensam que sou alemão…
-- Alemão?!
-- Sim, é uma maneira de falar, pensam que lhes vou dar dinheiro a ganhar, que vou dar ideias e empreender… mas depois começam a ver que não, a isso junta-se a minha dificuldade de comunicação, a princípio é tudo sorrisos mas depois, porque eu não comunico bem, começam a falar carrancudos como se eu não compreendesse ou não servisse, como se os tivesse enganado, aí começam as minhas dores de estômago, eu alimento-me mal, a pressão de não corresponder profissionalmente ao que me exigem provoca-me o que um médico de família disse serem úlceras nervosas, nem queria passar o p1 para eu ir fazer a endoscopia…
-- E agora, onde come as suas refeições?
-- Primeiro ia à associação de caridade na rua do Antero mas agora almoço de graça na ordem dos franciscanos e vou, todos os dias por volta da uma da tarde a uma associação na rua das cordas, buscar o jantar para a noite. Pago um euro por refeição.
-- E não vê os seus pais? Eles não o ajudam?
-- A última vez que estive com a minha mãe ela deu-me cinco euros! -- disse Mancha, sabendo que estava a mentir, porque infelizmente sabia: os candidatos a RSI não podem ter ajudas monetárias.
-- Cinco euros não é problema. Era problema se fosse, por exemplo, cinquenta euros…
Aqui, Mancha indigna-se: -- Mas como é possível viver só com o dinheiro do rsi?! Às vezes, nem para o quarto chega, não quero chegar ao ponto de apanhar beatas do chão, como imagina que teria vivido estes meses se não tivesse conta bancária…
-- Tem conta bancária? Não apresentou o…
Mancha sentiu-se mal, começou a recordar-se do espectáculo que vira um destes dias à porta dos franciscanos: um pobre, barbudo há quatro meses e a cheirar mal, a deitar-se na rua interrompendo a circulação dos carros para procurar beatas no bueiro das águas residuais. Acabou por dizer: -- Eu almoço dentro de meia-hora. Posso estar aqui ao meio-dia com um documento com o meu nib e o meu saldo bancário. Eu tenho internet em casa da dona Zelda, posso aceder online ao meu banco e imprimir o registo de movimentos…
-- Sim, faça isso, vá lá almoçar e depois traga-nos o papel, nós só precisamos de fazer uma conta…
Mancha saiu nervoso, apressado, ainda bem que o escritório da técnica, o seu quarto, a cantina da ordem… era tudo perto. «Não me podem impedir de fumar, não me podem impedir de fumar!», era tudo em quanto pensava, era o seu modo de dizer que não o podiam rebaixar à condição de miserável, tão miserável afinal como as quarenta pessoas que consigo almoçam todos os dias. Foi a casa, ligou o computador, acedeu ao banco online e gravou o extracto bancário para uma pen, fez um charro com um resto que lhe tinham arranjado há dias, saiu de casa e foi fumá-lo para a porta da caridade. 
Almoçou e ainda não era meio-dia e já estava outra vez no escritório com a técnica. Apresentou tenso a pen com o pdf, ouviu-a dirigir-se a uma colega na sala ao lado, ouviu-as falar «ele só gastou duzentos e cinquenta euros este mês e paga cento e cinquenta de quarto…», viu-a voltar ao seu encontro, ela com um sorriso dizendo: 
-- Senhor Mancha, pela conta que fizemos ao seu saldo devíamos cortar-lhe oito euros ao seu rsi de cento e setenta e oito… -- e continuou a falar como se estivesse quase espantada -- mas não o vamos fazer, vamos ignorar a sua conta e, com os oito euros, o senhor Mancha poderá ir buscar as suas refeições!
-- Obrigado! -- diz o senhor Mancha, desanuviado, voltando a sentir-se capitão. -- E agora, quando começo a receber?
-- Este mês não, conte para o próximo mês. Ainda lhe telefonaremos para ir ver o seu quarto. Venha agora aqui assinar o contrato de reinserção.
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Claudio Mur

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