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A verdade é que a minha história não é exactamente esta. Não tem tanto glamour nem tantas vítimas nem lolitas que nunca procurei. Tenho apenas a minha família à porta do hospital para me trazer de volta à casa onde nasci, devolvem-me a máquina fotográfica mas não as fotos do evento psicótico, não faço caso, são os únicos que me recolhem e também devo agradecer à minha vizinha que sem o querer provocará ciúmes em vallis, vivo numa extensão do hospital com a mesma cor de parede, sonho-me, escrevo-me lendo sobre este dia, a minha peça de teatro clandestina e imagino-me sozinho, como foi possível a peça ter sido levada à cena?, pensei que era único mas conheço já na vida real outros como eu, é preciso ver neles a semelhança de comportamentos para que caia na realidade de não ser único, sou um entre muitos iguais e isso também me salva embora a ingenuidade de contar aumenta a dose prescrita levando à produção de gaba, levando à moderação, à estabilização, à depressão, à hipertonia, à repressão emocional e ao ressabiamento. As palavras podiam ser outras e com mais definições mas são estas as que lembro de associar quando vejo outros como eu e projecto nas paredes as sombras e dou nomes aos frascos — fantasmas nos armários — e introjecto em mim toda a culpa dos males do mundo como se pelo meu
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próprio pensamento a culpa aconteça e seja minha.
A minha psicose é o mistério de não saber porque e como entro na frequência do vírus que zaine define nas suas leituras: «nós somos mágicos quando nos investimos nesse papel, senão a magia fica no guarda-fatos como uma camisa à espera de ser usada.» O medo, às vezes chego mesmo a reprimir pensar o que quer que seja, o medo desse vírus atacar no modo úlcera intestinal toda a família, babi yar, o fuzilamento dos errantes, de todos nós, eternos condenados a errar pelas avenidas do conhecimento traficando techno em timbuktu.
Da medicina nada há a esperar, apenas a droga legal usada como meio de repressão, vale a pena transcrever: anexus 51 quase nove da manhã, hoje o dia acorda às sete da manhã, hoje tenho de ir à médica, aquela que trata da minha cabecinha, além disso mal chego lá sou imediatamente atendido, fico até espantado, abro a porta e entro, está a doutora e uma assistente e já não sei o que ela diz primeiro, se o «você está com bom aspecto» ou se o «esta é uma assistente estagiária, importa-se que ela assista?», e eu falo do trabalho, depois ela faz uma pergunta com acentuação espanhola, ela é espanhola, eu não sei espanhol e não percebo, ela diz em português «então e o demais?», e eu falo de meu pai sempre a queixar-se a nós e não aos médicos «ele tem um parafuso na cervical e queixa-se de não conseguir engolir a comida, outras vezes queixa-se do peito», digo também que é uma pessoa antiga confiando a sua saúde e descanso mental aos comprimidos receitados, quero com isto dizer que se o médico lhes disser que está tudo bem, isso é a idade sabe?, a sina, vá lá vou-lhe receitar este medicamento mas sabe?, na sua idade…, então ela pergunta «e aquele relacionamento?»
Explico que desde aquela vez que estive aqui nós voltamos, agora já nem me recordo de anteriormente ter dito textualmente que já não namoro com ela mas falo que de um psicótico a gente às vezes ainda se ri mas de uma neurótica a gente diz qualquer coisa como «sai da frente», se não digo textualmente pretendo dizer: um psicótico faz rir com as suas parvoíces, uma neurótica faz desesperar com as suas desgraças, um psicótico a levar com uma neurótica é pior que uma neurótica levar com um psicótico, eu não quero ser junkie de comprimidos que só actuam como placebos e de efeitos secundários, ela diz quase soletrando que eu sou e s q u i z o f r é n i c o e que a medicação surte efeito, «você está melhor».
Mas ó doutora!, o meu problema é mais sociológico, o problema é que os psiquiatras nem chegam realmente a fazer perguntas e nós ingénuos de tão sinceros às vezes damos-lhe pretexto para carregarem no
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gaba, eles fazem-nos assassinar o real. Eu, às vezes, sinto-me como aquele adepto arrebatado de emoção que entra pelo campo adentro para roubar a bola e marcar golo e sai de algum modo ou doutro acompanhado pelo oficial de segurança que, puxando-lhe as orelhas, lhe tira a ilusão de ser um membro reconhecido como participante no jogo enquanto a audiência se ri dele: eheh olha o palhaço!, aonde é que ele pensa que ia?, entrar pela baliza adentro?!, eheheh. Os malucos nem nas margens estão mas aonde quer que estejam nem sequer serão um jogador em fora de jogo, serão mais aquela mosca abelhuda que incomoda e todos amedronta pelo suposto ferrão. Ninguém me respeita, merda. Não percebe isso?
Ela volta a perguntar como vai a relação com o meu pai. Eu respondo que agora vai bem, pensando em quantas vezes o disse morto ou o suicidei numa prisão dentro dos meus escritos, no fundo incorporei-o dentro do meu Eu. Digo à doutora que, agora, a minha relação com ele corre bem, afinal parte da culpa que lhe incutia era minha. No fundo só quero conversar com ele num poleiro a seu lado e à sua altura. No fundo as ofensas que lhe fiz machucaram-no mas também o fizeram reflectir no porquê de tais verdades porque numa ofensa o resíduo, a verdade e parte da razão vem ao de cima. Eu aceitei o meu pai, doutora, e uma das minhas maiores felicidades seria o meu pai compreender o meu modo de vida mas não sei se vou a tempo de ele me aceitar.
Agora o que digo é que anda muita gente por aí a achar-se de saudável e acima das paranóias, obsessões e modos de qualquer um se fazer gente e de não sucumbir à miséria existencial.
Segundo eles, devia haver alguém que se passasse da cabeça e metralhasse toda a assembleia. Segundo eles, o seu instrumento é mais válido que o do Outro,
os outros, sabe, todos eles,
Outrem devia pegar num facalhão comprado na fnac e fazer o que eles explicitamente hipócritas e covardes não fazem talvez porque deixem isso para os algozes,
sabe os maluquinhos!
(vá lá eu dou-te vinte euros e tu atiras a pedra ok tone?,
a verdade é que eu, tone, posso dizer que sou perfeitamente capaz de me vender por nada a quem nunca me convidou…
bastar vir-me a vontade-objectivo, iludo-me facilmente),
aqueles paranóicos a quem eles tentam explicar qual o caminho «saudável» a seguir e juram mesmo saber qual o caminho que se não deve traçar,
chamam a este caminho último a condição essencial da besta,
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mas doutora eles da besta só sabem o que muitos escritores paranóicos escreveram sobre,
e fazem mesmo crónica disso, como que a dizer perto «apoio o teu acto»
mas escondem a vontade que eles próprios sentem,
a mesma que o tal maluquinho sente,
e depois do acto consumado dirão talvez semi-perto «estou solidário amigo»
e quando o amigo depois da jaula mendigar o comer, o tecto ou apenas o sorriso
dirá talvez já bastante longe «eis mais um levado literalmente à loucura»
[dêem-lhe dólares]
e ao que se seguirá um tratado hermenêutica-mente-epi-stemológico
falando do péssimo estado da saúde pública… ou seja,
se eles atravessam a ponte é no sentido para longe
e não estou certo de alguma vez se terem posto na nossa pele
(eles preferem ler em livros e escrever depois acerca do homem das seis mil barbies)
e se estão do lado de cá da embaixada do equador
acho que fica ali para os lados do meridiano de green-nordic-witch…
[mas obsessivo?,
só se for de vez em quando na interpretação do leitor porque o escritor,
esse é um que quase sempre põe as vírgulas certas no lugar certo,
nunca escreve mal,
bem educado como se sente e saudável acima de todo o Outro diz apenas que
o leitor não interpretou correctamente e repete um pouco irritado
explicando a sua solução.]
Então… bota erro na frase para lhes comer o caco.
Eu para sorrir ironicamente preciso aqui de fazer uma analogia, sem muita justificação objectiva, e invocar o mago gaspar da troika: eu cá por mim acho que a culpa foi do peres, o palhaço deitou o muro abaixo e construiu um condomínio de luxo para os senadores do banco verem os barcos ou as corridas.
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manuelle biezon,
em «hobo em memória cache»
no volume «Várius: Contos morais»
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