quarta-feira, 10 de julho de 2024

Paga o que deves

Paga o que deves

 

O presidente tinha perdido o tino e já não era amado, o povo ria-se quando o via engasgar-se com as palavras em directo num qualquer canal de informação à hora do jantar, a mulher tinha-se dedicado às obras sociais da igreja e os filhos tinham morrido jovens numa viagem de finalistas do grupo de jovens da paróquia, a amante fugira com um pintor cheio de pinta e tostão e o gato fora atropelado pela trotinete da afilhada. O presidente não aguentara o desgosto e ficara senil, perdera o entendimento, e quem o seguia, quem o aconselhava, como vivia à sua custa, nada lhe dizia, deixavam andar, douravam a pílula, pintando-lhe um país cor-de-rosa cheio de ovelhas sorridentes e obedientes à sua voz de comando.

Mas havia um grupo de boémios, em minoria é certo, tocadores de violino e cavaquinho que o contestava e não queria esperar por novas eleições para o substituir. Era preciso deitá-lo abaixo, e para isso bastaria mostrar-lhe um espelho ou um jornal desportivo ou até o canal panda, orgãos com pouca audiência de facto, mas que já há alguns meses vinham fazendo tiras de banda desenhada e cartunes animados com a voz samplada e alterada no timbre do presidente, era preciso exponenciar uma revolução. Era preciso arranjar um filantropo bem parecido para financiar a operação, alguém que desse o nome e a pasta.

Decidiram-se pela Glória Filho de Cisne, hoje já avozinha mas bem conservada e dona de uma fortuna. Tratava o presidente por tu, tinham sido colegas na primária mas ele, já na altura, trocara-a por um pião. Ela seguira anos mais tarde para Hollywood, ele seguira para advogado e, após roubar legalmente as cotas de vários empresários, construíra uma multinacional e oferecera televisores e bolas de futebol, o que lhe valera a eleição.

Glória Filho de Cisne nunca se esquecera que o presidente sempre a desconsiderara e a gota de água aconteceu quando ele a deixou debutante numa paragem de autocarro, sozinha sem dinheiro para o Andante, porque uma loiraça viera num uber e o levara e com ele acabara por casar. Glória nunca percebeu e talvez nem fosse de perceber, demorou anos a esquecê-lo com a ajuda dos ansiolíticos mas hoje queria vingança e juntou-se à conspiração logo que dela foi informada.

Tinha sido fácil convencê-lo a assistir a uma conferência numa universidade e ele lá fora. Ia nu mas o séquito nada dizia, os boémios tinham alguém próximo do presidente a trabalhar com eles. O evento foi designado Dia Aberto do Jovem Empreendedor. Montaram o palanque no jardim da associação de estudantes e de um dos lados havia uma mesa com comes-e-bebes desde frisumo a vinho pêra-manca, desde lavagante e rosbife, passando pelo abacate e a patanisca, até aos digestivos, fortimel, café e croft e brinde de chocolatinho prensado para os mais audazes. Na outra lateral da assistência, comodamente refastelada em pufes e cadeiras Maria Amélia, havia uma exposição de cartazes com serigrafias a quatro cores mostrando títulos de transporte público, senhas agente único, passes mensais Andante, títulos de multa por falta de validação. Tudo obras díspares com uma frase em comum: «paga o que deves!»

O presidente sempre desejoso de conhecer os jovens locais chegou à fala com uma jovem que lhe disse: -- Sim sr. presidente, trabalhamos na inclusão, não podemos simplesmente mandá-los para as câmeras de gás, nem transportá-los como escravos para as estufas de Odemira, e nem todos são elegíveis para exportação para fábricas de tecido no Bangla Desh, aí, para isso teríamos de ter apoio oficial... assim, por enquanto, fazemos o que podemos.

-- Excelente ideia, disse o presidente entregando-lhe um cartão que retirou do bolso da lapela, contacte este número, parece-me uma ideia elegível para financiamento.

O jardim estava já razoavelmente composto, com todos na expectativa, o presidente já estava a postos para discursar, levanta-se, ajeita o micro, tosse uma vez e começa a falar: -- Caríssimos infantes portugueses e portuguesas, menos jovens e mais jovens, em duas palavras aqui estamos reunidos...

E de repente, começam todos os telefones a vibrar e a tocar, dezenas, centenas deles a tocar, todos eles a chamar, uma voz feminina dizendo: «Paga o que deves, conho!, paga o que deves, conho!»

O presidente sentindo-se interrompido e incapaz de continuar o discurso, sentiu o bolso das calças a vibrar. O seu telemóvel tocava também. Tirou-o do bolso, não conheceu o número mas atendeu. Na audiência todos os besouros se calaram.

-- Tá lá? Quem fala? Daqui é o presidente...

-- ROGÉRIO!, SEU PELINTRA, paga o que deves, deves-me dois euros há setenta anos, nem imaginas o que eu passei por causa de ti!

O presidente, ao ouvir aquela voz, lembrou-se e teve uma síncope. Meia hora mais tarde, seria levado ao hospital e à baixa psiquiátrica e ao seu saneamento de funções oficiais e internamento compulsivo no sanatório. Mas naquele preciso momento, as palavras que os boémios lhe conseguiram arrancar, e gravar para ficheiro e que posteriormente editaram em single de sete polegadas, foram:

-- Glorinha, filha, desculpa-me, eu na altura não andava com dinheiro, era tudo por telemóvel com a aplicação do meu paizinho, não te podia safar. Glorinha glorinha...

 

Claudio Mur

 

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