quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Trar-lhe-ei esta noite a cabeça dele, num prato.

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-- Lá em Sevilha... nunca foi a Sevilha, señorita?
-- Nunca -- disse ela.
-- É uma terra de má reputação, por esse mundo. Imagina-se que os homens só sabem tocar guitarra e dar facadas; que as mulheres só têm paixões excepcionais; e que o sol que amadurece as laranjas e o moscatel das encostas faz rebentar nas cabeças vulcões de loucura extraordinários.
-- Chega a parecer uma terra abominável... que entretanto deve ser encantadora.
-- Tudo isto são coisas para pintar nos leques que os forasteiros de lá trazem, ao irem ver as festas da Semana Santa, ou tomar azucarillos nas barracas da feira de Setembro. Assim, o leque, que é um dos prestígios da espanhola, vai-nos desacreditando o país ao mesmo tempo. -- E olhando-lhe as mãos vazias: -- É por isso talvez, señorita, que nunca traz o leque que lhe dei...
Houve um rubor fugaz na face dela.
-- Deixei-o em casa. O tempo está começando a resfriar. Além de que o homem dos paradoxos estragou-me o seu brinde, garatujando-lhe no pano o quer que fosse.
-- Coisa profunda?
-- Não sei. O amor... toda a mulher é pérfida como a onda... comunhão das almas... e tutti-quanti... A sua mania mais grave é achar que me assemelho à grande esfinge.
-- Oh! Oh! mas é que eu vou já daqui contar-lhe tudo.
-- Oh! não se atreva... Demais, que era despersuadi-lo do conceito profundo em que se tem.
-- Na minha terra esfaqueavam-no. Quer que lhe armemos uma cilada, señorita? Um dos meus homens cursou o assassinato nas sierras de Guadalupe. Trar-lhe-ei esta noite a cabeça dele, num prato.
-- Em termos que se mudaram as cenas, e é o senhor quem faz de Salomé.
-- Já adivinhei que gosta dele.
-- Coitado! -- disse ela num tom de comiseração muito dolente.
E a conversa caiu. Pouco depois:
-- Há esta tarde uma burricada a Santo Estêvão, señorita. Quer ir té lá?
-- Não. Estou doente.
-- Prometo-lhe ser um burriqueiro admirável. O caminho da ermida é detestável. Mas eu terei cuidado em bem guiá-la.
-- Solicitudes suas... nem o tempo lhe chega para cercar de atenções as mais senhoras. Aquela francesita sobretudo...
-- Promete-me que vai.
-- Não posso ir.
-- Eu desejava entretanto que lá fosse. Sabe que o altar do Santo é praticado em rocha viva? e a rocha tem uma fenda, que mergulha no chão, e se prolonga, dizem, té uma caverna onde está encantada uma feiticeira que, mesmo enclausurada, vaticina.
-- Desconfio que ela conserva intacta a virtude, depois das consultas que o senhor lhe terá feito.
-- Iremos pois juntos ao altar de Santo Estêvão, já se vê, a ocultas de todos... e eu perguntarei então à feiticeira qual o motivo secreto dessa sua constante abstracção. Imagine, señorita, que a feiticeira respondia! -- exclamou ele fitando-a muito nas pupilas -- e me ensinava os remédios de curar-lha.
-- Mas se eu não estou doente.
-- Disse-me ainda há pouco que estava... e se o prognóstico da velha coincidir co meu prognóstico...
-- O que sucede? -- perguntou ela, parando de sorrir.
Já Paco Ximenez se havia levantado.
-- Sucede que a mamã terá de vir a Portugal.
-- Isto é demais!
-- A Santo Estêvão, señorita?
-- Se não chover -- disse Maria. -- Se não chover!
A verdade é que nunca estivera um dia prometedor de menos chuva.
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'Amores de Sevilhano'
,página 88-91

em
'O país das Uvas'

Fialho d'Almeida
Edição Clássica Editora, 12ªedição

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