Teorema:
A caminho da sopa grátis numa quinta-feira ao fim da tarde.
Xis: Eu vou pedir só meia sopa.
Zul: Estás de dieta.
Xis: Não tenho muita fome.
Zul: O teu estômago está a encolher, quanto menos comeres menos fome tens.
Xis: Não te entendo.
Zul: Vê os gordos. São capazes de ir ao restaurante à uma da tarde, comer do bom e do melhor, largar sem mágoa cinquenta broas. O que achas, mataram a fome não? Pois eles às cinco estão a comer outra vez, desta vez uma sandes de leitão e três finos. E à noite, bota e vira de novo.
Xis: Compreendo, eles quanto mais comem mais fome têm.
Prova:
No almoço de domingo.
Zul: Ó mãe, eu tirei muita massa, ela está boa, mas vou deixar ficar na borda do prato.
Pai do Zul: Pois, o teu estômago diz que não tem espaço.
domingo, 30 de junho de 2019
sábado, 29 de junho de 2019
Capas de Zines
Algumas das zines editadas por mim, desde 1996 a 2013
(na minha editora fictícia Edições Cassiber)
A zine do canto superior direito é a única em que eu apenas colaborei
(com o pseudónimo de Zombie)
e foi na realidade um folhetim editado pelas Produções Ganza em 1994
quarta-feira, 26 de junho de 2019
IQ Hospital
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A sala tem seis metros por três de largura. Num dos lados, existe uma janela com pequenos rectângulos de vidro e um sofá com o jornal que leio todos os dias e o sobretudo azul que pertence a Carlos. Na parede mais larga, estão várias estantes contendo os meus livros e frascos que poderiam ser soluções caseiras de nitroglicerina ou veneno, igualmente um aquário. Do outro lado, um quadro contendo uma tabela com vários nomes onde Carlos aparece repetido aleatoriamente tanto como nome como apelido, na coluna seguinte, às vezes, aparece a palavra tribunal. A sala é alta e termina numa porta de madeira pintada de branco. Estou sentado no sofá e discurso, ou melhor, descrevo a sala e associo cada objecto a algo que conheço. Numa secretária, está sentada uma mulher atraente, de cabelos ruivos e calças pretas apertadas que ouve o que digo, às vezes com aflição, às vezes com estranheza. De pé, uma mulher de bata branca.
É obviamente uma conspiração, o terrorismo psicológico que o sistema faz para, por meio de lavagem cerebral, obter a confissão da verdade. Não! Não estou interessado em confessar a verdade, nem estou interessado em lavagem cerebral. Eu sei que estou a pequenos passos da cela. Só confessarei se me aplicarem o soro da verdade.
Levanto-me e continuo a descrever a sala, tentando com isto desconstruir a conspiração, aproximo-me do quadro e leio os nomes, pessoas ficcionadas eu sei, e enfatizo o nome de Carlos que aparece em mais de metade dos nomes, mostro-lhes a evidência. O tempo vai passando. A porta abre-se e vejo aqueles que colaboraram nesta conspiração. Ele olha confiante, quase cínico, agradado talvez com a minha reacção. Ela... não sei, só olho para ele. Outros olham assustados e curiosos para dentro da sala. Quem são? Não sei dizer. Não são prisioneiros, pois senão não estariam aqui, estariam na sua cela, serão talvez actores para somar a tantos outros.
A certa altura, a mulher que está sentada e quase chorando, diz que vou ter de levar uma injecção.
Ora aqui está!, o soro, a evidência. Grito que não tomo, querem porventura ver se tenho tatuagens no
cu.
Ela e a mulher de bata branca olham-me, outra mulher mais velha aparece igualmente de bata branca. Peço um copo de água, porque estou com a garganta seca de tanto falar. Esta ultima mulher sai e reaparece produzindo um copo com água, pousa-o com cuidado na secretária enquanto eu leio o jornal. Finalmente, pego no copo e bebo um gole. Descubro a evidência, a água tem sabor, olho e descubro na água bolhas de ar. O que puseram vocês na água?
Ouço uma voz dizendo baixinho: "Foi por causa dos comprimidos que..."
A minha voz, a minha raiva, eu acalmo-me subitamente, o que puseram no copo resulta. Decidem-se por uma injecção no ombro esquerdo e dizem-me para os acompanhar. Entro numa sala mais ampla onde estão outros actores sentados em mesas de madeira, jogam cartas. Sento-me e olho para a televisão. Passa pouco das oito da noite, vejo no telejornal uma reportagem sobre uma greve e respectiva marcha sindical de protesto, todos vão alegres, um deles tropeça ou olha para o sapato desculpando-se por algo, assumindo algo ou tentando dizer que também tem problemas com o sapato. Não recordo a cor do sapato. Alguns minutos depois, dois homens de bata branca vêm ter comigo, dizendo-me para os acompanhar. No corredor longo, de um lado existem janelas, do outro lado portas pintadas de branco. Paramos numa que tem como epígrafe a palavra QI, ironizo "Coeficiente de inteligência".
Entro, ou melhor, forçam a minha entrada. Esta sala é mais baixa e termina em duas portas, abrem uma e vê-se a escuridão. Não quero entrar. Forçam-me, resisto, chamam reforços, serão agora talvez quatro os actores tentando segurar-me e, além disso, aquele copo de água e a dor provocada pelo torcer do braço esquerdo onde me picaram obriga-me a entrar.
Fecham imediatamente a porta desta solitária, ironicamente chamada QI.
Não sei quanto tempo aqui estive, sei que gritei e bati à porta para ir à casa de banho, mas ninguém respondeu, mijei na parede como um cão. Talvez uma noite ou uma noite dia noite.
Dias depois, sou chamado ao escritório onde me dizem que vou entrar naquilo que pode ser descrito como terapia ocupacional. Uma bata branca acompanha-me ao local, um pequeno barracão com duas salas. A mais interessante está apinhada de pinturas e trabalhos gráficos, tanto homens como mulheres pintam, fazem tapetes ou colagens. No entanto, esta sala está lotada. A segunda sala mais parece uma oficina. As pessoas fazem malha, lêem o jornal, discutem politica e futebol, cosem livros, fazem pequenos sacos de papel ou caixas de cartão e vêem televisão.
Sento-me e trazem folhas, lápis, etc. Decido fazer um desenho descrevendo o que vejo, a janela à minha frente não tem gradeamento e, então, esta prisão torna-se menos real e mais humana.
Passado algum tempo, entra uma mulher com muitos cabelos grisalhos e algumas rugas e senta-se a meu lado. Cumprimentamo-nos e ela começa a interessar-se por mim, pergunta-me o nome, ela chama-se Mónica e tem quarenta e dois anos, gosta do meu desenho e diz que também desenha, tinha estado alguns anos em Belas Artes mas não tinha acabado. Mostra-me os seus desenhos: figurações muito simples de mulheres a caneta de feltro preta e em geral do tamanho de uma carta de poker.
Uma mulher na idade dos vinte e tal anos, de cabelos castanhos, bata azul clara, entra indo falar com o guineense, responsável pela sala, e mais outros compinchas que lêem o jornal. Falam do bijou dela. Ela rí-se, eu também me rio e digo: "Ah... eu também gosto do bijou!" Venho a descobrir que tem um anel no dedo e que o bijou é o marido e, obviamente, não fica bem querer foder uma mulher casada e, ainda por cima, elegante. Ela ignora e diz que é hora do café. Dizem-me que se deve pedir ao responsável uma ficha vermelha de plástico, e saio com Mónica em direcção ao café.
Os empregados são simpáticos, existem batas brancas, azuis, masculinos e femininos, uma mesa de ping pong, quatro ou cinco mesas, o café é uma merda.
Sentamo-nos e começamos a falar enquanto fumamos.
Aborda-se os livros e os melhores autores e, já não sei porquê, digo-lhe que o meu escritor favorito é o Jean Genet. Ela responde instintivamente com uma expressão de espanto ou choque mas sem repulsa: "Sim, a prisão é uma grande escola!" É o suficiente para já a considerar uma amiga, afinal é a minha terceira amiga que conhece ou já leu Genet. Fala-me que é dependente de um fármaco líquido chamado Haldol, que lhe resolve um problema de saúde relacionado com ossos ou rigidez ou tremores do corpo. Diz também que não se considera uma condenada pois apenas vem todos os dias à terapia ocupacional porque quer, além disso o estado paga-lhe as injecções uma ou duas vezes por semana e ainda uma pequena pensão para a renda.
À noite antes de adormecer, esta conversa suscita-me questões metafísicas: é claro que é uma condenada, ela sabe-o, afinal está dependente para toda a vida de uma droga; porque são as pessoas boas ou as que fazem algo de humilde e interessante, aquelas que sofrem e vivem na miséria e morrem?, a gente olha para o mundo e só vê corruptos no poder ganhando bons salários, ajudas de custo e motorista do estado, falando merda ou respondendo evasivamente em talk-shows e etc, bem... vocês conhecem a história.
O dia é uma rotina e todas as rotinas são maçadoras. Acorda-se às oito, toma-se banho, come-se o pequeno almoço, vai-se buscar o tabaco guardado no escritório, alguns vão à terapia ocupacional, lê-se o jornal, dorme-se encostado ao radiador térmico, almoça-se, vai-se buscar lume para acender os cigarros, joga-se cartas ou dominó, vê-se televisão, alguns vão à terapia ocupacional, fuma-se cigarros, fala-se, dorme-se, janta-se às seis e vai-se para a cama às nove após se entregar o tabaco e sermos interrogados sobre os isqueiros que são proibidos.
Um dia, um senhor distinto por volta dos cinquenta anos aparece bem vestido com um relógio de ouro, senta-se, puxa de um cigarro, fala calmamente parecendo reflectir as palavras; dias mais tarde, tenta pegar fogo a si próprio na cama; outro dia, oferece o relógio de ouro.
Um dia durante a tarde na terapia ocupacional, faço um desenho do qual não gosto e que Mónica acha interessante. Resolvo ir fumar um cigarro à porta do barracão. Senta-se a meu lado um rapaz da minha idade que se identifica como António. Fala-me do tio que está preso por tráfico, fala-me que tem um esquema para arranjar ganza, é-lhe permitido sair durante uma hora todos os dias. Não sei porque aborda este tema, talvez por eu fumar tabaco de enrolar, todas as pessoas acreditam que todas as pessoas que enrolam cigarros enrolam ganzas ou pior. Mesmo sabendo que é um risco, entrego-lhe quinhentos paus para a minha dose.
É óbvio que tudo o que sei sobre o sistema prisional se torna claro quando ele só aparece no dia seguinte, parecendo ignorar o facto de eu lhe ter passado para as mãos quinhentos paus, aqui a ética não existe e nem se deve abordar o assunto. Mais tarde numa ida ao café a troco de uma ficha vermelha, ele aparece com um colega que despeja a sua razão em poucas palavras: "Estou aqui porque atrofiei com o teatro." António produz um charro, ou melhor, uma quase prisca, dou duas passas que não me batem, é obviamente mais um truque psicológico, primeiro roubei-te, agora faço passar-te por lorpa. Digo que me bateu.
Ao fim de três semanas, dizem-me alegres, com um sorriso nos lábios, que vou sair livre no fim da semana.
Na sexta-feira há tarde, despeço-me de Mónica, ela dá-me um dos seus desenhos esculturais e eu tento dar-lhe o meu melhor desenho, aquele que tinha feito no primeiro dia, mas o responsável impede dizendo que tudo o que eu fiz durante a terapia ocupacional ficará arquivado para futura análise por parte dos psicólogos da instituição.
Vamos fumar um cigarro. Ela menciona algo saído da boca de Mário de Sá-Carneiro como "se quiseres podes vir às quintas-feiras...", sinto-me perto dela, ternamente perto dela, beijamo-nos na cara e dizemos adeus.
Assim, ao fim de três semanas sou libertado de uma sentença de um ano, sem nunca me terem dito o porquê de ter estado dentro. Cansaram-se talvez de procurar debaixo da cama e decidiram enviar o rapazinho embora. O mundo será sempre feio enquanto for habitado por humanos e as utopias foram escritas por extraterrestres.
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Claudio Mur
em ''Anybody here who isn't paranoid must be crazy''
segunda-feira, 24 de junho de 2019
O senhor Falcão e a curiosidade
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Aqui há uns anos estava eu no rendimento mínimo e a morar num quarto sem acesso a cozinha, ia por volta do meio-dia à Rua das Cordas buscar o meu taparuere de comida social e comparticipada, aliás dois, um de conduto e outro de sopa, por um euro, tomava um café no café que se tornou habitual onde podia ver o futebol e falar com turistas. De vez em quando falava com pessoas novas, que apareciam e metiam conversa, falava com eles, fumava, bebia o café, estava lá um pouco mais de tempo e depois vinha para casa, comia a sopa, aquecia a sopa no microondas. Geralmente depois voltava para o café para um segundo café e ficava lá até às onze ou então vinha mais cedo para casa e punha-me a ler um livro antes de dormir. Basicamente esta era a minha vida. De manhã, acordava e costumava ir a uma pastelaria tomar o café e um bolo e com a ideia de ler o jornal, tentava ler o jornal, nem sempre conseguia, estava lá, depois vinha para casa ou andava ali pela zona, não tinha passe de transporte público, tinha que andar a pé, era assim que eu fazia, na altura estava a começar a voltar à pintura depois de alguns anos parado, anos em que tinha feito outras coisas, outros objectivos, outros entretenimentos, outras coisas mais importantes também, uma pessoa com quem as relações tinham terminado, contrato de trabalho não renovado, mudança de casa dos pais para alojamento próprio, sujeição a quartos sem qualidade e a vizinhos sem motivos de interesse, vizinhos que só te puxam para baixo, sujeição porque quem fica sem emprego não pode pagar a renda de uma casa inteira... estava a voltar à pintura que era a única coisa que eu tinha que achava poder apresentar ao mundo... a minha vida era muito básica, estava no rendimento mínimo, uma prestação social, duas palavras com uma carga não metafórica mas muito estigmatizante, a gente às vezes não aceita um trabalho porque tem medo de perder o rendimento mínimo, porque o trabalho correu mal, a gente vem para a rua e a gente fica sem nada porque nos cortaram o rendimento mínimo, isto quando há contratos oficiais e não contratos só falados, só de boca, muitas vezes os contratos são temporários, de um ou dois meses, a gente perder o rendimento mínimo por um contrato de dois meses, às vezes ao fim de quinze dias, mesmo ao fim de uma hora a gente perde o contrato porque fez qualquer coisa de errado, o patrão não gostou e mandou embora. Então, às vezes não se procura trabalho, deixam-se as coisas andar. Não será a melhor maneira de viver a realidade laboral ou a realidade de procurar emprego mas acontece a muito boa gente o desistir e conformar-se e tentar viver com o mínimo que tem ou que lhe dão. Resumo: estava no rsi, comia na assistência social, e passava o meu tempo no café ou na rua vendo os turistas que passavam, pintava nos entretantos, lia para me entreter, era assim que eu vivia.
Nestes dias era novo na zona, tinha ido para lá há dois meses, era relativamente novo e não conhecia ninguém, vivia das pessoas que ia conhecendo, com quem fazia contacto no café ou na pastelaria. Foi deste modo que conheci o senhor Falcão, também aparecia com livros na mão, a ler e nós acabámos por fazer contacto. Começámos a falar de livros, ele muito interessado em ouvir-me falar de livros e para mim, que sou uma pessoa que nem sempre tem os melhores ouvintes ou nem sequer ouvintes tem, poder falar de coisas além do futebol, poder falar de livros, para mim é bom poder ter uma conversa num café sobre os livros que estou a ler ou os livros que li, tirar ideias e receber ideias vindas de dentro dos livros, até o meu cunhado, que poucas vezes lê e quase só lê Tolkien, ou desse género, foi capaz de transcrever com palavras suas uma frase que leu: num livro um leitor vive uma vida imaginada e pode fazer da sua vida o que quiser... vim a saber que o senhor Falcão era psicólogo ou tinha sido psicólogo, dera aulas em universidades ou institutos, agora por acaso acabou por me dizer que também estava no rendimento mínimo, ele era mais velho que eu, cinquenta e poucos, também era um leitor àvido, falou-me de Kierkegaard, ficou muito pasmado por eu estar a ler no momento Gille Deleuze em inglês, o anti-édipo, nunca consegui arranjar a tradução em português, quando a vi custava trinta euros, ele disse-me que a tinha arranjado em livro usado com um super desconto porque lhe faltava a última página, fui uma vez a uma livraria que já não existe e encomendei, eles tiveram que mandar vir do distribuidor em Espanha, demorou dois ou três meses mas eu consegui lê-lo em inglês, ele estava espantado, eu falei-lhe que o estava a ler também para me conhecer melhor, para conhecer melhor o que se diz sobre a esquizofrenia, cheguei a comentar que Deleuze dá voz aos mecanismos da esquizofrenia mas também será um pouco irónico quando diz que nunca viu um esquizofrénico, cá para mim ele via esquizofrénicos por todo o lado porque o mundo em si assim o é, os mecanismos pelos quais se rege o mundo é a esquizofrenia, é a gente tentar-se aproximar do centro e ser afastado para a periferia, para a fronteira, para lá da fronteira, os esquizofrénicos são aqueles que tentam furar essa barreira ou são aqueles que se conformam e desistem deitados num qualquer canto.
Falámos de outros livros, eu também lhe disse que escrevia, mostrei-lhe algumas zines que eu próprio tinha editado e que andava a distribuir por um euro, dois euros, umas zines de texto e desenhos, acabou por me dar dois euros por uma zine que eu lhe tinha dado e ele dado a uma amiga que gostou e fez questão de pagar. Pronto, foram assim os contactos iniciais com o senhor Falcão, eu cheguei a numa consulta ter dito à médica que me segue que agora tinha um amigo que me dizia: torna-te muito doente e escreve; recordo que a médica não ficou impressionada com este novo amigo e eu próprio compreendi que, às vezes, as pessoas não se importam que outros tenham um colapso se entretanto puderem lucrar com isso, seja na forma de um espectáculo de variedades ou de uns versos loucos e perfumados, para algumas pessoas a loucura é bela, vão visitá-la ao hospital quando não a deixam morrer sozinha lá dentro, e dizem: «é a vida, a mim isto nunca me acontecerá mas os versos do poeta louco são únicos».
Entretanto, começámos a marcar horas no café para nos encontramos, «foi assim que começaste a ser namorado», é, parece que sim, falar e tal, tomar café, estavamos uma vez à noite, nove horas ou quê, estavamos a conversar já não sei de quê e aparece um tipo que começa a falar comigo e a dizer que me conhecia, eu olhei para ele e não o conheci de lado nenhum, ele começou a dizer: tu não és aquele de há vinte anos atrás, tinhas o cabelo comprido, tal, eu lembro-me de ti tal, começou a dar pormenores, e eu de facto comecei a ver que sim era um gajo que eu tinha conhecido quando andava na universidade, ele estava também bastante diferente, acabou por se sentar connosco e eu reparei que o senhor falcão ficou a sentir-se trocado, o gajo estava com uma garrafa de cerveja de dois litros num saco com latas de Red Bull, uma das latas entornou-se e ele andou a limpar o chão sem ninguém lhe pedir, todo ele num estado ultra ansioso, disse que tinha vindo de comboio, acabou por perguntar se eu não me importava que ele dormisse no meu chão, porque estava sozinho e já não tinha comboio para casa. Eu disse que não, que não, que não podia dormir, que o quarto era pequeno, não tinha condições. Ele estava a fazer o filme, a dizer que estava desgraçado, contou como ganhou muito dinheiro como serralheiro a argon e como estourara o dinheiro todo em coca, que tinha sido hospitalizado e que não podia beber, que podia morrer de um momento para o outro, a dizer que ia então dormir na rua... ah eu acho que ele não tinha dinheiro para pagar o dinheiro do bilhete do último comboio da noite, então eu sugeri comprar-lhe a cerveja, dar-lhe dois euros pela cerveja para ele ter dinheiro para ir no comboio embora, ele tentou fazer negócio, tentou que eu lhe desse mais dinheiro mas ele viu que eu não ia dar mais e aceitou os dois euros, vi-me assim, eu que não bebo, a sair do café com o senhor Falcão e com um garrafa de dois litros de cerveja na mão. o senhor Falcão estava um bocado incomodado por o nosso patois privado estar a ser corrompido por um estrangeiro que ele não conhecia de lado nenhum, disse-me até que eu tinha desempenhado o papel de um médico e ficou melhor quando eu decidi aceitar o convite para conhecer a casa dele.
Acabou por não se beber a cerveja, tinha uma grande estante de livros, tinha uma tv que só dava a cor castanha, era uma casa pela qual ele já não pagava renda, por estar quase devoluta, mas era uma casa só para ele, com dois quartos, uma sala, uma marquise para as traseiras, ele começou a falar-me de Ramakrishna, leu escritos indianos em francês, eu comecei a dizer-lhe que o meu francês era um bocado rústico e que há muito não praticava nem lia em francês, ela começou a falar na metodologia do amor, no transcendentalismo, depois quando eu lhe disse que tinha livros em francês do Genet, e que ainda não os tinha lido por não perceber bem as palavras, aí ele ficou interessado, acabou por me querer mostrar as traseiras para ver a vista do rio, aquilo era estreito, era um espaço estreito, só cabia uma pessoa, e ele quis quase que eu me encostasse a ele para eu poder olhar lá para baixo, ele com cara de dominador, e eu não disse que não, encostei um bocadinho, ignorei, olhei, só vi noite e escuro e voltei para a sala, sentei-me, havia charros a rolar, os meus e os dele, e eu comecei a ver: estou aqui a apanhar um bocado de seca apenas com o pretexto dos livros. Ele começou a ligar as antenas, a fazer perguntas sobre os meus gostos, falou-se do pintor Francis Bacon, ele sempre a associar, a insidiar-se, sempre interessado em que a coisa corresse bem, eu comecei a ver que a coisa começava a correr mal, comecei a disfarçar, a cortar as conversas, a ser insolente, a abolir as distâncias verbais e os modos de comunicação, comecei a dizer que o que me interessava no Genet era a mitologia do criminoso, do ser que assume que é mau, que faz maldades, que trai por motivo nenhum, sem razão aparente, ele começou a chegar-se mais no sofá, a fazer sorriso, e eu para disfarçar enrolava mais um charro, ele começou a dizer que mais charros não, que já tinha fumado a conta dele, e eu comecei a ver que a única coisa que me sustentava ali era poder fumar o charro, porque embora a conversa fosse literariamente interessante estava a ficar emocionalmente perigosa, eu comecei a entrar naquele estado em que começo a disparatar, em que começo a fazer de maluco ou a ser maluco, a fugir à pressão, é tornando-me guna que eu afasto o perigo das pessoas que se aproximam demais, em momentos de tensão eu, por vezes, reajo à tensão de um modo disparatado, estúpida, irracional, não têm explicação as palavras que eu digo quando estou numa situação de confronto, e eu neste caso comecei a ver que ele estava numa de fazer o papel de senhor perante mim, estava a querer pôr a asa e eu comecei a disparatar, a tornar-me desinteressante, sempre a fumar charro atrás de charro.
Aqui, ele talvez tivesse visto o que queria ver, ele como psicólogo talvez estivesse a fazer também um outro jogo, a testar os meus limites, para ver o que eu era na realidade depois do limite, o modo como a gente reage depois de se atingir o limite, isso define muitas vezes o nosso carácter, perdemos qualidades humanas e tornamo-nos bestas, eu sinto um bocado de revolta por eu próprio ser assim, por não ter melhor carácter, foi aí que ele se entendeu ao comprido no sofá e eu pensei: já fumei ganza o suficiente, o homem quer dormir, vou embora, já é meia-noite, vou para casa dormir, amanhã tenho coisas para fazer.
Vim-me embora, a pensar no caso, na minha prestação e no que tinha sido dito, e no que ele poderia ter querido com aquela conversa, pensei: olha, frustrei-lhe os planos. No dia seguinte, encontrei-o ao pequeno almoço na pastelaria, estava a ler Proust em francês, aquele da casa de Swann, não sei bem o nome do livro, e eu comecei a descobri-lo, ele muito terno para mim, e eu a sorrir, a manjar as suas ideias, a perceber que ele queria ser dominador, e eu não gosto de ser dominado. Não foi nada falado sobre o dia anterior, para ele era tudo já subentendido, como se eu e ele fôssemos iguais. Eu sorri, ignorei o subtexto, tomei o café, não consegui ler o jornal, vim-me embora. Ficámos assim.
Dois dias mais tarde, no mesmo café das seis da tarde, estou eu, ele, e outro rapaz que tem problemas mentais piores que os meus, porque a sua linguagem é sempre incoerente e a minha o é só em situações limite, estavamos lá, eu e o Né a falar, o senhor Falcão mete-se na conversa, a falar em inglês, a perguntar o que se passava para eu o ignorar, e acaba por terminar uma das suas frases a dizer «porque tu és um paneleiro!», eu olho para ele com cara de mau, e digo ao Né para irmos fumar um charro lá fora, fomos, deixamo-lo sozinho, estivemos lá fora cerca de dez minutos, voltamos para dentro, ignoramo-lo, ele acabou por se sentir ignorado, veio até à nossa beira para se despedir, eu apertei-lhe a mão naquela de o mandar embora, e foi assim a última conversa com o Falcão. Dois dias depois, no mesmo café, estava eu e uns colegas, ele entra, mete-se mais uma vez no meio de mim e dos outros, alguém protesta, eu digo «é um curioso!», foi o que bastou para alguém dizer «raios fodam lá os paneleiros!», foi assim que ele foi embora tão depressa como chegou, ainda olhou para trás para mim, ele quase chorava ele sofria, nunca mais apareceu no café, comecei a vê-lo na rua incomodando meninos de erasmus ou estudantes de artes, a tentar manter contacto com eles na rua, mas sempre caminhando um metro atrás, sempre com as mãos em concha levantadas, inclinado para a frente a tentar explicar qualquer coisa, a tentar cativar, como se fosse um pedinte sexual, como se estivesse a ressacar, tendo sido recusado por mim estando a tentar arranjar substituto para mim, eu passei por ele, ele não me viu, e eu pensei: olha como as coisas são, o senhor falcão, psicólogo, escritor talvez de livros até publicados em nome próprio, já que falcão é a alcunha que lhe dou, o falcão é afinal um desgraçado no rendimento mínimo, a vida tinha corrido mal, casamento falhado, os filhos não querendo saber dele, reduzido a cortejar na rua, é... é isto que tenho a dizer sobre a curiosidade.
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Claudio Mur
sábado, 22 de junho de 2019
sexta-feira, 21 de junho de 2019
«Eu não tinha a possibilidade de esconder quem era.»
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A marca de nascença é quem ela é. Se fazemos desaparecer a mancha Georgiana desaparece com ela.
Não fazes ideia do efeito que essa história teve em mim. Li-a a toda a hora, pensava nela a toda a hora, e, a pouco e pouco, comecei a ver-me a mim mesma tal e qual como eu era. As outras pessoas traziam a sua humanidade dentro de si, mas eu exibia-a no meu rosto. Essa era a diferença entre mim e todos os outros. Eu não tinha a possibilidade de esconder quem era. Isso não me era permitido. Sempre que as pessoas olhavam para mim, estavam a olhar directamente para a minha alma. Eu não era uma rapariga feia -- e sabia disso -- mas também sabia que seria sempre definida por aquela mancha púrpura no meu rosto. Não valia a pena tentar livrar-me dela. Ela era o facto nuclear da minha vida, e desejar que ela desaparecesse teria sido o mesmo que pedir que me destruíssem. Eu nunca iria ter um tipo vulgar de felicidade, mas, depois de ter lido aquela história, dei-me conta de que tinha uma coisa que era quase tão boa como isso. Eu sabia o que as pessoas estavam a pensar. Bastava-me olhar para elas, estudar as suas reacções quando viam o lado esquerdo do meu rosto, para saber se podia ou não confiar nelas. A marca de nascença era o teste da humanidade dos outros. A marca de nascença media o valor das suas almas, e, se eu apurasse as minhas capacidades, seria capaz de ver o íntimo dos outros e saber que género de pessoas eram. Por volta dos dezasseis ou dezassete anos, tinha já a afinaçção perfeita de um diapasão. Isso não quer dizer que não me tenha enganado acerca desta ou daquela pessoa, mas, a maior parte das vezes, não me enganei. só que, por vezes, não fui capaz de parar.
Como a noite passada.
Não, não como a noite passada. Isso não foi um engano.
Quase nos matámos um ao outro.
Tinha de ser assim. Quando ficamos sem tempo, tudo se acelera. Não podíamos dar-nos ao luxo das apresentações formais, dos cumprimentos, de uma conversa discreta acompanhada por bebidas. Tinha de ser violento. Como dois planetas colidindo algures num longínquo ponto do espaço.
Não me digas que não tiveste medo.
Tive um medo de morte. Mas acontece que eu não me meti nisto às cegas. Tinha de estar preparada para tudo.
Disseram-te que eu era doido, não foi?
Essa palavra não foi usada uma única vez. A coisa mais forte que alguém disse foi esgotamento nervoso.
O que é que te disse o teu diapasão quando lá chegaste?
Já sabes a resposta.
Ficaste aterrada, não foi? Deixei-te sem pinga de sangue.
Foi mais do que isso. Tinha medo, mas, ao mesmo tempo, estava excitada, quase tremia de felicidade. Olhei para ti e, por breves momentos, foi quase como se estivesse a olhar para mim mesma. Isso nunca me tinha acontecido.
Gostaste.
Muito, muito. Estava tão perdida que pensava que ia desfazer-me em bocados.
E agora confias em mim.
Tu não me vais desapontar. E eu não te vou desapontar. ambos sabemos isso.
Que mais é que nós sabemos?
Nada. É por isso que estamos os dois aqui sentados neste carro. Porque somos iguais, e porque não sabemos mais nada para além disso.
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'O livro das ilusões', páginas 106-107
Paul Auster
Tradução de José Vieira de Lima
Edição Asa
A marca de nascença é quem ela é. Se fazemos desaparecer a mancha Georgiana desaparece com ela.
Não fazes ideia do efeito que essa história teve em mim. Li-a a toda a hora, pensava nela a toda a hora, e, a pouco e pouco, comecei a ver-me a mim mesma tal e qual como eu era. As outras pessoas traziam a sua humanidade dentro de si, mas eu exibia-a no meu rosto. Essa era a diferença entre mim e todos os outros. Eu não tinha a possibilidade de esconder quem era. Isso não me era permitido. Sempre que as pessoas olhavam para mim, estavam a olhar directamente para a minha alma. Eu não era uma rapariga feia -- e sabia disso -- mas também sabia que seria sempre definida por aquela mancha púrpura no meu rosto. Não valia a pena tentar livrar-me dela. Ela era o facto nuclear da minha vida, e desejar que ela desaparecesse teria sido o mesmo que pedir que me destruíssem. Eu nunca iria ter um tipo vulgar de felicidade, mas, depois de ter lido aquela história, dei-me conta de que tinha uma coisa que era quase tão boa como isso. Eu sabia o que as pessoas estavam a pensar. Bastava-me olhar para elas, estudar as suas reacções quando viam o lado esquerdo do meu rosto, para saber se podia ou não confiar nelas. A marca de nascença era o teste da humanidade dos outros. A marca de nascença media o valor das suas almas, e, se eu apurasse as minhas capacidades, seria capaz de ver o íntimo dos outros e saber que género de pessoas eram. Por volta dos dezasseis ou dezassete anos, tinha já a afinaçção perfeita de um diapasão. Isso não quer dizer que não me tenha enganado acerca desta ou daquela pessoa, mas, a maior parte das vezes, não me enganei. só que, por vezes, não fui capaz de parar.
Como a noite passada.
Não, não como a noite passada. Isso não foi um engano.
Quase nos matámos um ao outro.
Tinha de ser assim. Quando ficamos sem tempo, tudo se acelera. Não podíamos dar-nos ao luxo das apresentações formais, dos cumprimentos, de uma conversa discreta acompanhada por bebidas. Tinha de ser violento. Como dois planetas colidindo algures num longínquo ponto do espaço.
Não me digas que não tiveste medo.
Tive um medo de morte. Mas acontece que eu não me meti nisto às cegas. Tinha de estar preparada para tudo.
Disseram-te que eu era doido, não foi?
Essa palavra não foi usada uma única vez. A coisa mais forte que alguém disse foi esgotamento nervoso.
O que é que te disse o teu diapasão quando lá chegaste?
Já sabes a resposta.
Ficaste aterrada, não foi? Deixei-te sem pinga de sangue.
Foi mais do que isso. Tinha medo, mas, ao mesmo tempo, estava excitada, quase tremia de felicidade. Olhei para ti e, por breves momentos, foi quase como se estivesse a olhar para mim mesma. Isso nunca me tinha acontecido.
Gostaste.
Muito, muito. Estava tão perdida que pensava que ia desfazer-me em bocados.
E agora confias em mim.
Tu não me vais desapontar. E eu não te vou desapontar. ambos sabemos isso.
Que mais é que nós sabemos?
Nada. É por isso que estamos os dois aqui sentados neste carro. Porque somos iguais, e porque não sabemos mais nada para além disso.
'
'O livro das ilusões', páginas 106-107
Paul Auster
Tradução de José Vieira de Lima
Edição Asa
El Bandjido
'El Bandjido'
óleo sobre tela
80cm por 60cm
2019
ZMB
As palavras pintadas no quadro vêm daqui:
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Ana, o nosso «anjo negro»
A Ana de Viana era uma amiga de alguns meus amigos que lhe chamavam o anjo negro. A música que nós ouvíamos era negra, caótica conflituosa depressiva, sagrada e hereje. Foi com esse sentido que associei a alcunha de anjo negro. Ela era da nossa idade, gostava de poesia, já não sei o que estava a estudar mas penso que era de letras, ela gostava de nós, dos amigos que se tresmalhavam dos cursos que estavam a tirar para começar a escrever palavras ou rabiscar desenhos ou tocar um instrumento, de todos os que mesmo fumassem um charro mas tivessem actividades criativas fora da academia, ela era amiga.
Nestes tempos, eu já a conhecia de vista, já com ela teria trocado palavras mas só em 96 a conheci, na véspera de Vilar de Mouros meti-me num comboio à noite para Viana do Castelo, o destino seria apanhar uma camioneta de Caminha para o recinto dos concertos. Não me recordo já como mas encontrei quando, passando da meia-noite, o comboio parou em Viana, estação terminal, e só havia ligação para Caminha na manhã seguinte, encontrei amigos e encontrei a Ana, estivemos nas esplanadas da cidade e acabamos, alguns de nós, a dormir em sua casa nessa noite. Estavam amigos dela em casa e falou-se de poetas e da revolução. Recordo-me de num quarto ter visto um lp de Leonard Cohen, o «Songs from a room», é o que me lembro, lembro-me que foi essa memória que me fez comprar o cd desse album e que entretanto se extraviou, tendo já sido substituido por uma nova cópia. Na manhã seguinte, apanhámos o comboio para Caminha e depois Vilar de Mouros. Foi o meu primeiro contacto com ela.
Passou-se um ano e eu estava em Julho ou Agosto a prescindir das férias grandes para terminar o meu curso em Setembro. Vivia numa casa velha num quarto onde pagava oito contos (40 euros) e fizera do quarto as minhas primeiras paredes para pintar. O meu colega Sizenando, um guineense, trouxe a Ana lá a casa, ela ficou admirada, não fazia talvez ideia que eu pintasse, talvez não gostasse eventualmente do que via mas não me imaginaria talvez capaz de ser um futuro engenheiro e ao mesmo tempo pintar. Ela era muito terna, as suas palavras tinham um tom carinhoso, era bonita embora tivesse uma doença que a obrigava a tomar cortisona, o que lhe inchava o corpo, era bonita, eu achava-a bela no seu interior, esse anjo mas que não era negro, era sim cheio de luz, resplandecia amor. Foi assim que lhe mostrei uns capítulos impressos de um livro que andava a escrever, disse-lhe a história, abri-lhe o meu coração, ela gostou do meu amor, mas depois eu disse-lhe que ia mudar tudo, confundir toda a história e ela aí já não gostou, não sei se lhe dei essas folhas A4, não me recordo já. No dia seguinte o Size perguntou-me se eu a tinha tratado bem, se a tinha levado a casa. Eu disse que sim mas menti, não lhe quis dizer que ela não quis companhia no caminho para casa.
Um ano mais tarde, recebi uma carta sua na Irlanda onde eu estava a estagiar, hoje tenho pena de lhe não ter respondido, mas estava numa situação em que não sabia por mais quanto tempo lá ficaria e acabei por não lhe responder, depois perdi a sua carta e a sua morada. Tenho pena.
Gostaria de voltar a falar com ela. Dela guardo carinho na minha memória.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
A presidente da Sociedade de Seres com Sexo
'
Só após a minha entrada no cemitério, já uma alma danada, descubro a competição inesperada.
Discutindo modos de comunicar penso em silenciosos compromissos,
A relatividade, o jogo de ela se fazer de difícil… até que o ciúme revele a neurose.
Saio com um sorriso e um aperto de mão… institucional mas sem a resposta concreta.
Penso que se existirem três caixotes com livros e cadernos meus,
Gostaria que neles estivesse incluído o ninja pescador… eu pesco.
Que personagem de filme és tu?, pergunto a mim próprio quando saio de casa.
Tenho que fazer uma preguiça avançada na web e descobrir
A verdade ir a mente tal vez encontrar alguma informação
Com palavras-chave e registos oficiais da presidência da SSS.
De tanto o gato ir aos ninhos um registo se torna possível:
“Alô alô this is a msg from sirius b netsent…
…tnesten b suiris morf gsm si siht ôla ôlA
War is a white cock’s man I prefer we go along the Cheyenne way if you like,
Tell M, your phone #, dear M? Oh the buffalo road!
Piano chaos hyper soft ware free wear fur production,
Please dear M, you’re so beautiful in yr black dress,
I like your blonde hair, your skin seems so soft,
Please tell me: do you have an email address?
Spot the differences.
Enviar em inglês porque o erro se torna um silêncio sonoro de mistério, uma faísca.
O cachecol começa a fazer-se necessário. Faz frio porque ela não responde.
Espero pelo stalker. Ele providencia o mais perfeito sublimador. Escrevinho portanto.
Chego a casa, chove no meu rés-do-chão. Devem esperar que eu entre de pistola!
A música retro é tocada ao vivo, uso o elevador da virgem negra. Sem dormir.
Os desejos de um dependente, ainda me chamarão de palhaço se entrar sem pistola!
Anestesiado pelo haldol os meus desejos são impossíveis de reter. Tento falar de:
Escrevinho: deviam ter um carimbo na testa a dizer incompetência: livro amarelo já!
Existe uma tentativa de comunicar, de partilhar ideias mas a minha boca está em off.
Quadros futuros tal vez mas, o medo de, por causa de um sorriso grátis, escolhas
Realizadas com consequências… sou hoje personagem de filme aborrecido:
Didgeridoo, queria eu como modo de comunicar. Sangue cozido aquecido com óleo
Numa frigideira, possuo eu este rendimento mínimo. Estabilidade, conforto? Possuo nada.
Falta a receptora, quem procuro? Quem procuram elas? Olha! Ela gosta do Gerês.
“Net line. Waiting for miss death, save my simple soul from being frisked.
Are you ok now? L’ oeil cloué n’est pas mort.
I smiled and said yes but I felt I wanted to fuck the world.
Yo bunny girl, tu es très jolie. Truthfully natas a sa’nt ann nás,
oh… nice talk with the family & friends, nice polen by lunch,
I am so happy today, everything went all-right!
Bullshit, the times, they are changing miss tambourine!
muzak muzak pintura bela ela escrevinha apressada ao ver que eu a vejo escrever
muzak ganza muzak bela guarda o meu sol e pinta-o querida com as tuas estrelas
muzak muzak muzak ad eternum escreve tu em vez dela a brutalidade do nosso desamor
Albert ayler encontrado morto no rio, em vinyl please, mas tu sais enquanto podes.
Vou colar cartazes. Prefiro o arlequim ao palhaço mas reduzo-me à insignificância.
Sou um reles palhaço. Pagam-me algum dinheiro. Volto.
A vontade – ser calmo, consciente; o desejo ambicionado – ter alguém, liberdade;
A ansiedade – não falhar; a essência final – a minha mo cha é social sexual política.
A minha mente esquece lembra imagina mente a minha mente revela-se uma mentira.
Exausto, durmo por fim. Acho que sei porque me sinto morto. Lembrança. Dor.
Não consigo dizer tudo. É tudo sem lógica narrativa. Falo de quê? Desabafo.
É tudo uma questão de linguagem, interpretar o esquisito cadáver. Culpa.
Porque ninguém quer verdadeiramente saber escrevo de graça. Quase confissão.
No entanto, nada é realmente gratuito, como tu sabes. Sinto paz, durmo por fim.
Listen listen listen listen listen: a tautologia impera.
Flyers flyers fetos de pan flyers flyers: para um comerciante árabe.
Kofi kofi kofi kofi kofi kofi kofi: em macau ana anda, sai dessa Lá.
Ganza agul green gang ganza agul: no redondo do distrito te oferecerei lápis lazuli.
Flyers posters pan fletos posters: combinam com o neon comercial dizendo: bobine.
Às vezes Coil, outras vezes Sonic Youth acompanham-me no passeio diário.
Às vezes a neve desterra os azuis dourados fugindo à medicação de templos militares.
Enquanto caminho para o vosso concerto imito a polifonia dos Virgin Prunes.
Digo assim aos meus botões:
“Não posso pedir mui to lalala lalaãa-a
em quin ze dias gastei o que re ce ce bi, em quin ze dias lalaãa-a
Excel lente des graça… atão mas se re ce ce beste tu lalaãa-a
dinheiro a mais e as contas não batem certo?
Em que gas tas te tu di nheiro?
Nã sei agora e ‘tou com von tade de ex plodir diante do gera dor lalaãa-a!”
Gosto do vosso concerto, gosto de coisas bonitas, gosto de qualquer ti: tonaite-ita.
Lovely circus artist. Orgulhoso assim me imagino aos vossos olhos.
Todas vocês sorrindo para a fotografia que fará parte do meu dote.
Com qual de vocês pintarei hoje um quadro intitulado Solstício de Inverno?
A boleia te decide. A tua porta. A revolução electrónica que se urge como linguagem.
A tua amiga mais interessante que se decide. Deixa-nos sós, a sós com a planta.
Oh sim claro, esta música… muito fixe! Mas quando perdes esse medo, tu bebé?
A nice sunday morning, o sol entrando pela clarabóia nos mil e um sótãos da língua.
Algo a lembrar de vez em quando: Os teus olhos mudam quando partilhamos a noz.
Mas a fotografia indicará o facto no final da manhã: estou sem emprego.
Ela poderá dizer contar acrescentar que sim viu dissemos contamos acrescentamos…
Breaking the waves, um filme sobre a fé, numa coreia da correia da tua carreira,
Tens medo, não tens vontade de não ter medo, queres escrever um livro sobre… eu sei,
Não tens vontade então não acreditas. Ponto final. Eu ouço música de headphone.
Sais a escrever na estação, vite vite! Digo-te a base do teu sofrimento:
Nós quando nascemos não temos nada a limpar e quando morremos acumulamos.
Eu queria lutar por nós e não apenas porque ela lutou por mim, talvez eu tenha dito.
Erro de palmatória: há coisas que se não deve ter a ansiedade, o desejo de explicar.
Eu explico em linha tanta coisa a tantas que me nunca pedirão linhas de guia.
E quando e se me pedirem já eu terei mudado para uma nova linha de comboio.
Sugaste-me a fúria adquirida. Eu explodi de ridículo. A catástrofe is creation.
Senti-me um dos teus pais. Tu, esmigalhada no meio dos meus dentes,
O teu olhar ignorando-me. Deixo a zine e uma mensagem-bomba que não envio, a
Quem? Quando tirares a merda da cabeça e precisares de um homem procura-me,
Estou mal disposto, não paro quieto, ando de um lado para o outro, é duro nos
Intervalos, preciso de um fix para anestesiar
A dor.
Mas se calhar sou eu que não sou verdadeira mente óme, homessa Pavese às vezes!
Confusão com fusão refundindo o género de Id, tanta vez pedindo a libertação de Id.
Opções vezes três fusão com a dispersa são, saudavelmente necessitada do meu Id.
Voltando ao passado e escrevinhando: hoje: fui recusado. Sublimarei a maldade.
Farei da tua amiga a tua sucedânea, a minha libertação dessa negra sombra de XeR…
Em Lá. Mas eu em Derza, ler-lhe-ei o resumo das nossas duas imaginadas semanas.
Os resultados seguem iguais dentro de instantes:
Der neu zeit starts tomorrow night pintaremos a manta desses cães que não fumam,
Ma belle arrependo-me, tu es très jolie ma belle eu sei que sim,
Sleep tight with the fairies... oh psicose de procurar matar uma amora com nova
Amora, os últimos dias de um hashishin terminaram perdidos por opção voluntária
Em rolo de papel higiénico. Não consegui pintar o quadro com ela. Ela não quis.
Nem sequer preciso de utilizar a explicação de ‘poligénese literária’ do Umberto Eco
Para que me levante hoje da cama com a voz da Kim dizendo que quer ser levitada,
Para que me dirija a macau em frente do néon dizendo Bobine,
Para que peça simplesmente um galão e entre com uma palavra-passe na zon fon free,
Para que repare em mais uma fotoevidência da associação-comparação com merda,
Para que... passível de acontecer, desejei eu isto? Ah o desconhecimento de mim…
Eu sei que sou cruco mas devem querer que eu exerça o meu direito de me manter
Calado. No entanto e às vezes, sou tão humano quanto vós e escolho em consciência.
Somos todos perfilhações em volta de uma linha, inveja do que não possui ninguém.
Às vezes compramos, outras vezes trocamos, muitas vezes roubamos quem
Não aceita a nossa moeda.
Aqui seria de boa educação soletrar sem erro, transcrever uma perfilhação de Borges:
O Homem é um morto que, às vezes, tenta conversar com outros mortos que ele acha
Ilustres. A matéria que eu curso é psicofisiologia.
O que não posso pensar é que esses mortos ilustres queiram conversar com um morto
Sem qualidades.
Se eu ainda fosse a pitinha de uma dama de copas ou lhes pagasse a conversa hmm…
Quando a musa ainda gostava da minha conversa chego a falar-lhe da dama de copas.
A musa diz que a dama de copas é a pior espécie.
Quando lhe suspiro que essa música me parece falar de mim,
E que talvez esses sóis pareçam se transformar em luas para seduzir a dama de copas,
Como se a dama de copas fosse eu, como se todos quisessem inverter a história,
A musa refere o filme ‘boys don’t cry’ onde se passa o inverso: é o desejo dela morder.
Na música os Coil perguntam: What are you going to do if they don’t believe you?
(Um compasso de espera até eu me recuperar do unsafe mail trait.)
Logo cantam a resposta possível: The ink is still wet, make the most noise, the empty
Vessels ring through. Is it so awful to be seen, feel and fail?
Manuelle Biezon, personagem escrevinhada e aparecendo como se, a gata negra
Mura. Eu não sou Hölderlin, no entanto hoje o seu trabalho é legível, diz-me uma
Amiga. Diz que o literalismo homicida talvez se justifique, que hoje é válido
Procurar o peixe púrpura na varanda e tingir de vermelho as sombras e
O escurecer da manhã na melancolia da minha mente.
O mundo reverteu a sua polaridade, o fim do mundo já foi, eu também o escrevinhei.
O mundo dorme hoje de papo ao alto e com os pés de fora, a ruindade.
The world has turned upside down, yesterday is tomorrow only backwards.
Eu, todos os que cito, eu, personagem de filme? O Borges, cego? A biblioteca?
Talvez meu avô… talvez tu quisesses ter tempo, sabedoria para partilhar comigo.
Os avós, as mães, alguns tios gostam do trabalho que os ingénuos rebeldes dão.
Os irmãos perfilhados, os pais inventados dirão incomodados: volta para a tua rua,
Não te consideramos amigo, não sais a mim, quem é este gadjo?
Elas talvez procurem um macho viril exalando confiança, os dentes todos e brancos.
Mr. Cool acorda com dor pensando em quem o perfilhou.
No sonho quase diz sim à união de facto e se for preciso peço autorização oficial
Para namorar a sua filha, filha?!, filha de que sr.?
A mãe coloca-lhe com carinho o pequeno almoço, levanta a pressiana.
Não me respondes, não dizes sim?, pergunta Mr. Cool com remela nos olhos.
A sua noiva de facto é agora mais uma remela no resíduo de mais um sonho mau.
Não deixa de ser irónico, até insolente e porque em inglês os pássaros chilreiam:
‘Tanques pela bebedeira, so goodnight woman,
Eis uma senhora, uma lady finérrima em potência, vais
Partir muitos corações caso não sigas
O convento.’
Agora, como se eu fosse ela, escrevo em inglês, e porque os crucos têm motivos,
E não apenas o santo orgulho a proteger, para fingir a surdez a resposta dela,
Uma possível: I don’t feel like a sex object tonight, your site is still under
Construction. Mas imagino que ela possa apenas ter dito: Precisas de estabilizar.
No próximo mês não tenho tempo para tomar café. Muito ocupada.
Liberto-me com um telefonema ‘à outra’ e envio mensagem dizendo que
não sabia porque algo parecia correr mal
and sorry for disturbing your communication,
well I don’t see you for twelve days now…
can you imagine how I feel? Baby?!
She says she likes me, she says my energy is strong,
she doesn’t see me as a friend.
É quase um elogio! Mandarem-me à merda deste modo.
Choices. Options. Alone always but never alone. Lonely always.
I have only remembered after midnight.
O que tu fizeste te fazem hoje…
Nice fucking day birth her! Could it be a sign?? Would I like it?
Ela parecia o capuchinho vermelho que os meus dentes queriam sugar.
I have a future myself como caubói da meia-noite. Ridículo.
Hoje: o caubói do meio-dia hoje sustenta a minha ex-futura.
Nunca fiz o pedido nem importa se a boda deles foi só: talvez.
Confundo ela com ela e pensando em ela eu escrevo:
Devias pensar mais nos outros
Não és só tu que existes,
Não és só tu que trabalhas,
Tens medo de mim e mandas-me à merda
Dizendo que me respeitas, deverei eu lançar uma praga?
Qualquer dia não passarás de uma foto ardida
Sem cor nem cheiro.
Tudo isto se passa há muito tempo e
Tu sabes que eu confundo sempre a tua identidade nas falsas cópias que te sucedem.
Já nem sei se foste boa para mim, nunca soube o que queria ser com ti,
Só lutei por ti quando já não havia nós, nem eu, apenas as minhas nozes.
Queimei a tua imagem por descuido, hoje és a aura de um cêdê.
És a musa e mulher e mãe do meu sucedâneo, eu próprio igualmente um sucedâneo.
A presidente da sociedade de seres com sexo, a alcunha que lhe escrevo.
Mas a alcunha que ela veste com orgulho, esse nome ela não me explicou.
Se ela se desse ao trabalho ela, ela repetiria simplesmente como ela disse:
Não gosto de ti não gostas de mim. Ela ela ela sempre ela consome-te sim tu uh!
Quero ultrapassar o ponto de fuga,
Quero encontrar alguma amora e nenhuma mulher sucedânea,
Quero encontrar alguém maior e diferente de tu, uh o meu plano de fuga.
Mas dormir bem, certamente bem, ah esperança.
Gostarei de ir ao próximo ninho, oh phado.
Where’s the moon in my room? Apenas na minha cabeça porque:
As que de vocês por mim se interessam exigem devoção platónica. Nada de sexo.
Sei que tu sabes que não me deixarei ser facilmente pertença de nenhuma bengal u a.
The discovery of myself ecologically integrated
Around the world ao telefone imagino assim uma beleza,
Uma felicidade que não seja vista como triste, bacoca.
Imagino também um combate de boxe dadaísta entre o arbusto e o insano.
Este será decepado depois de enforcado, o canal história informa-me.
A honra de me despedir antes de ser despedido.
A amizade poderia ser suficiente se houvesse humor.
Hell inferno, na sala de jantar hmm heaven paraíso, em concerto de vez em quando.
Crazy singer ele?, eu? Nós!
Ao te oferecer nozes no hospital o cantactor perguntar-te-á sempre:
A menina salva, a menina dança, a menina fumará comigo?,
Eu não precisarei de recorrer ao sono literário para tu me dizeres
Sim
Até ao dia em que te fartes das minhas musas e do meu fumo nas tuas gavetas,
Até ao dia em que ameaces atirar os meus livros, os meus discos – os guarda-chuvas
Que troquei com o Satie – pela janela fora,
Até ao dia em que desejes rir-te de mim: como se, um morto revelado um peixe
Uivante – um oxímoro psicopata, um velho inquieto.
As amigas dar-te-ão toda a razão, dirão que isso não se faz a uma senhora.
Os homens dirão: Sempre foi un cabron muito mau, todo o asco tem o que merece.
A minha Gudrun é personagem de um livro de D. H. Lawrence: a mulher que nunca
Será de ninguém e que todos nós queremos possuir durante toda a eternidade.
Todo o homem alguma vez conversou com uma permutação da Nico.
Todas elas são diferentes, nós é que neste fim-do-mundo prolongado não reparamos.
Huysmans cansou-se do seu fin-de-siècle, entrou no mosteiro.
Na metáfora passei por Lá mas Eu não sou Huysmans.
A minha presidente da SSS nunca foi, tentou de algum modo parecer, a Christa
Päffgen. Fumo-a-des-ilusão-sou. Termino com o resíduo do meu solstício de
Inverno, uma psicofotografia destruindo toda a beleza da vossa linguagem.
Quero lá saber da língua! Quero uma mulher e não uma musa.
“I would like to dedicate to my sweet M so sweet flower, so it goes like dis:
I like when You make me smile in puss off y of panels,
Vegetable dishes laughing cocks le coq sportif with the river Flow in g organic,
Criminals imagining all the crippled people dancing cozy cozendo sewing,
Kiss mushy jazz Lie dead dad turning to her rehto rectus correct inter sect,
Fun like ass bin-assar-dor pain burn Being burned,
Ganga blue SG pallas less Callas a passa-r inha queer(?) queen…
Stay PLEASE call me On the phone my ears years,
Yr voice so sweet, yr my lovely flower, yr life-style my green tie on a still photo.
Smelling yr touch on a sunday Nico morning tin teen time thine and where?
Hands searching faith, Lights night neons of cum… I tell ya what,
A glass ov Port with a lemon-asphixiating heroin…
Querida caro dear beloved wanted darling sweet with sherries.
For you are murder, she said…”
Cansei-me. Não mais darei para o vosso peditório. Prefiro-me sozinho e bem casado.
'
Claudio Mur em
«A presidente da Sociedade de Seres com Sexo»
domingo, 16 de junho de 2019
Nana
'Nana'
de '7 canções espanholas'
Manuel de Falla
Duérmete, niño, duerme,
Duerme, mi alma,
Duérmete, lucerito
De la mañana.
Naninta, nana,
Naninta, nana.
Duérmete, lucerito
De la mañana.
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Opus 111
O que eu digo é:
há todo um modo de ser mulher que muita gente não conhece e se conhece não respeita.
Fazem mal. Não sabem o que perdem ao ignorar por exemplo:
Little Annie, artista, cantora e pintora visionária
quinta-feira, 13 de junho de 2019
O Adaga e o Osvaldo e nós
'
Ó meu filho, a concorrência é grande, tu perdes, «é isso que já pensei mas sei que no fundo gostas de mim», olha como ele é convencido, «porque eu faço por gostar de ti, se eu não gostasse de ti... já tive muitos motivos para rescindir a nossa amizade e não, eu voltei atrás, os amigos também se zangam mas não é por isso que...», mas tu sabes que és meu amigo, você é meu amigo, mas tem às vezes... segundas intenções, «eu queria transar», eita olha o palavrão, corta. «Quem é a morte?, se calhar sou eu» O outro diz que eu sou chave de cadeia, sou terrorista, e eu pensei, vem cá, mensageiro da morte, eu pensei: se eu sou terrorista, tanto mato como morro, eu não sou boa coisa, «ele te chama terrorista porque tu não és convencional, tu és diferente das mulheres com quem ele casou, as mulheres dele só não o mataram porque senão iam presas e tu és diferente», eu já aguentei muito, aiai lá vem eu «de pistola na mão» pois se toda a terrorista fosse como eu não havia morte, eu não mato ninguém coitada de mim, agora na hora da raiva acontece muita coisa e o que eu digo gosto de comprir, agora tenho de pensar duas ou três vezes, ah agora me fez lembrar o outro e a trança que o veado me fez, coitado do Osvaldo, aquilo é que foi um filme, eu vou te-matar, uuui aquilo é que foi um filme mesmo, coitado do Osvaldo, saíu, foi-se embora num disparo, parecia que ia perder o comboio, vê lá, eu só armo confusão, por isso é que prefiro estar em casa e não sair para lado nenhum. o Adaga me telefona e convida-me para jantar em casa dele, disse que o Osvaldo ia fazer o jantar para os três, o Adaga tratava do vinho e da cerveja, convidou também uma amiga dele, ele disse que ela estava curiosa para me conhecer, ele falava muito bem de mim para ela, até que lhe deu o meu número e ela até me telefonou, eu atendi e ela disse que estava curiosa por me conhecer, que o Adaga lhe falara muito bem de mim, falámos de outras coisas particulares e privadas do agora nosso amigo comum, e eu tudo bem, «na curiosidade ela te queria conhecer, faz-me lembrar o meu caso com o senhor falcão, um dia ainda te hei-de contar, ah ah os Xutos do início com o seu general Custer, sim mas tem respeito pelo atitude do «pequeno grande homem» quando se encontrou na tenda do general Custer na noite da batalha...», você ‘tá falando me’mo de quê mesmo ein?, «dum filme de Arthur Penn e do senhor Falcão e de mim, da curiosidade...» ah ok portanto, o Adaga convidou ela e eu disse: tem cerveja?, é que se não houver cerveja eu não vou.», ele disse que estava já resolvido esse assunto. Eu vou por fim jantar em casa dele, o Osvaldo está fazendo a janta, eu estou fumando, tenho o cabelo solto, até aí estava tudo bem, conversam um bocado comigo, dizem que eu desapareço e não ligo, não atendo o telemóvel nem respondo às mensagens e o mais... essa conversa e eu... olha pá, estou dando um tempo sozinha, quero estar no meu refúgio quietinha, falar com ninguém, ver ninguém... estava a dizer-lhes isto quando o Adaga... eu estou sentada, a janta está pronta, todo o mundo está já reunido para jantar, o Adaga vai e pega no meu cabelo e começa a penteá-lo, ele começa a pentear o meu cabelo e a fazer uma trança no cabelo, até aí tudo bem, o Osvaldo olha para ele, ele olha para o Osvaldo, aí de repente o veado manda uma boca, o Osvaldo olha para ele como se matasse oito, aí o veado se aproxima do Osvaldo que lhe dá um murro, o veado prensa o Osvaldo entre a porta e a pia de lavar a louça, pôe a mão no pescoço dele que fica ali fodido, sem respirar, prensado sem se poder mexer para um lado ou para o outro, tinha a porta né. Eu acabo por ir lá, atravesso-me no meio, e em vez de um ou outro tentar dar um soco, eu estou no meio e quem leva sou eu, aí, eu apartei a briga, e foi quando o Osvaldo saíu porta fora que parece que ia perder o comboio, nem jantou, ninguém jantou, bem... jantei eu, ah pois! eu fiz a festa, bebi o vinho pelos três, tomei a cerveja toda e dormi lá, não vou dizer que não porque sim dormi, nunca mais vi o Osvaldo porque roubaram o meu telemóvel, o Osvaldo saíu do meu «face» e eu perdi o contacto com ele, nunca mais me ligou, foi desde esse dia, fiquei lá em casa toda a noite e se calhar o Osvaldo ficou à espera que eu saísse também, não não não ficou nada à espera, eu não marquei de ir embora, eu fiquei lá para jantar, acabei de jantar, a conversa estava interessante, tinha vinho e tinha cerveja, fiquei na conversa, não havia mais transporte, fiquei lá, a amiga dele também ficou, dormimos os três na cama, eu fiquei na beira, eu só sei dormir na beira, ele ficou na outra beira, a amiga ficou no meio, mas a minha sorte é que ela não curte mulher, olha foi a minha sorte. o Adaga é muito esquisito, o Osvaldo pensava que ele queria comê-lo, o Osvaldo tinha às vezes receio quando lá ia a casa e afinal, o Adaga disse-me depois, eu gosto de dar nela e não de levar nela, ele é adaga e não agulha, compreendes?, e afinal o Osvaldo gostava de mim, nunca mais o vi, tenho pena.
'
anónim@s do século XXIII
quarta-feira, 12 de junho de 2019
Azul-de-terra
'
-- Então, estás aí? Não te vi entrar…
-- Sou invisível!
-- Parece… então ‘tá tudo?
Apertamos a mão e eu peço um café.
O soldado desconhecido toca bateria ao balcão. Bebe um café ouvindo a voz do Jim.
Nunca fui soldado mas hoje sinto-me como um soldado. Bebo o meu café e vejo as pessoas passarem na rua.
Esta rua é como uma tela de cinema. Imaginem a Branca-de-Neve do João César Monteiro só som mas ao contrário: a porta do bar das oito pontas azuis é a minha tela onde se sucedem imagens.
Residentes e turistas que passam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita.
Se na Branca-de-Neve tínhamos de imaginar a imagem para que pudéssemos dar sentido ao som, aqui é outra vez ao contrário.
Mais uma vez a nuance, essa intemporal irrupção do real, se intromete na história mil vezes contada.
É apenas um quasi ao contrário.
Tenho as imagens – os turistas que passam à frente da porta.
Não precisamos de imaginar o som. Este é nos dado pelo leitor de cd do bar.
Começa five to one.
Eles têm as armas e nós o número.
Estas imagens-número, de vez em quando, passam no ecrã numa sequência nunca igual. Uma destas imagens-número pára no ecrã, olha para a audiência e decide entrar no bar.
Senta-se a meu lado.
-- Então, eu vi-te ontem.
-- Eu vi-te hoje.
-- Viste quando?
-- Agora!
O dono do bar serve um café ao meu amigo e muda o cd. Põe Led Zeppelin.
Começa com Your time is gonna come.
Quando começa a tocar Babe I’m gonna leave you, viro-me para o meu amigo, que me pede uma mortalha, e digo:
-- Este é o melhor álbum dos Led Zeppelin.
-- Sabes que quando eu estive com ele… não sabes nada dele?
-- Eles… parece que se voltaram a reunir.
-- Antes ou depois?
-- Ah depende… de que falas?
-- Eles lá… ocupávamos o tempo a desenhar, a fazer várias coisas.
-- Dá-me um cigarro. Tenho este pedaço para fazer um peixinho.
O dono do bar ri-se.
Eu acho que o dono do bar compreende o meu amigo. Já nos conhece.
O dono do bar sorri. Eu sorrio. O meu amigo sorri.
Tamborilo Dazed and Confused no tampo do balcão.
Fumamos o peixinho dele e eu faço o meu.
O discurso do meu amigo é incoerente. Ele diz que teve problemas de drogas e esteve algures em Lá. Mas eu sei que o problema dele não serão as drogas. Será mais um problema clínico potenciado pelas drogas. Tal como acho o meu problema. Por isso, é meu amigo e o dono do bar, que conhece todos os seus clientes, sorri. Está contente.
De súbito, levanto-me e venho até à porta. Sento-me na soleira.
Começo a sentir arrepios desconfortáveis. Olho para dentro do bar.
Estou agora dentro da tela do filme.
Olho para dentro e vejo o meu amigo a pagar o seu café.
Olho apenas de relance. Tenho calores frios na soleira da porta.
A imagem que deixou de ser turista para ser residente sai do filme-ecrã e volta a sentar-se ao balcão.
Sente o frio a subir-lhe à cabeça.
Começa a perceber que está à beira de entrar em blackout.
Tem a consciência de ainda não ter pago o café.
Sente a necessidade de pagar já o café.
Pensa: se fechar os olhos apago-me.
Olho em frente e vejo-me no espelho atrás do balcão.
Puxo da carteira e tiro uma nota de vinte euros. Para pagar.
Coloco-a em cima do balcão. Seguro nela e olho o dono. Ele está ocupado.
Pouso a nota debaixo da carteira em cima do tampo do balcão.
A minha mão segura todo o conjunto. Sinto o sangue a ferver de frio subindo braço acima.
O frio que me agonia a cabeça ao som de Heartbreaker começa a dar-me voltas ao estômago.
Tento controlar a minha aparência e, para isso, olho para o espelho.
Baixo a mão ao nível da cintura.
Já há alguns minutos que estou a sentir tonturas e dificuldade em me segurar sentado no banco de pé alto.
Acho que estou a controlar.
Olho para o espelho e estou a controlar.
Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos fecham…
-- Desculpe, deixou cair ao chão a…
Acordo do blackout momentâneo, olho para a terra. Azul. Vejo a nota de vinte euros e controlando o movimento apanho-a do chão.
Agradeço ao novo espectador sentado a beber um fino.
Volto a sentar-me. Faço sinal ao dono e pago o meu café.
Era a minha última nota na carteira.
Escrevo que afinal tudo correu bem, controlei e toda a gente me ajudou.
Levanto-me e venho-me sentar na esplanada.
Sou agora uma imagem sentada mas fora da tela, a audiência não vê a minha pose de estátua. Só as outras imagens, turistas e residentes que vão passando, vêem a estátua.
Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede. Olho para cima, para o céu.
Sou uma estátua que não pode fechar os olhos.
Se a estátua fechar os olhos apaga-se.
Sou uma estátua porque preciso de respirar ar puro.
O filme exterior cheio de frio revoluciona o frio interior dentro do filme dentro da minha estátua de cabeça e agonia o bloco de imagens no meu estômago…
O pior já passou. Olho para o céu. A estátua respira. O filme ouve Since I’ve been loving you.
Afinal não era o primeiro álbum dos Led Zeppelin mas uma colectânea de êxitos.
Estou quase pronto a terminar a minha sessão de cinema.
Já não assistia a um filme tão bom há… já nem me recordo de quando.
Já só falta dar um pú. Depois um arroto. Já está.
-- Desculpe, não sabe se estas bicicletas… não sabe de quem são?
-- Não… quer que pergunte? E aponto.
-- Sim, se faz favor.
Pergunto. Eles dizem que não. O dono do bar ao lado retira ele próprio as bicicletas que lhe impediam de aceder à porta.
Escrevo que hoje assisti a duas boas acções.
Ajudar este senhor a abrir a sua sala de cinema foi a segunda.
A primeira foi cumprimentar o meu amigo que esteve anos em Lá, este amigo com um discurso incoerente. Tentei fazer-lhe sentir que terá sempre um amigo na zona com quem se rir um pouco e fumar um intensificador de sonhos.
Levanto-me da esplanada.
Sinto-me renovado após o apagão. Caminho em direcção a casa.
Compreender é diferente do aceitar.
Escolho passar pelos pescadores.
Vejo o pipoca de azul precisamente no momento em que recolhe mais um peixe.
O seu sorriso indica contentamento.
Ao passar por ele também eu rio.
A vida corre-me feliz. Adoro as irrupções momentâneas do real.
Dou por mim a parafrasear silenciosamente: um dia vendeu um quadro e nunca mais lá voltou, uma ciência rara.
Viro-me para o pipoca de azul e digo-lhe na minha mais louca voz de felicidade:
-- Que haja peixe, que haja peixe!
Ele ri-se sem perceber mas acha graça.
Hoje não preciso de fumar mais.
Estou em paz.
Poderei aquecer o tupperware da caridade no microondas e ouvir o Pithecanthropus erectus do CharlesMinguseCharles Mingus e adormecer feliz.
Amanhã a miséria continua.
Sou o perdedor absoluto.
-- Então, estás aí? Não te vi entrar…
-- Sou invisível!
-- Parece… então ‘tá tudo?
Apertamos a mão e eu peço um café.
O soldado desconhecido toca bateria ao balcão. Bebe um café ouvindo a voz do Jim.
Nunca fui soldado mas hoje sinto-me como um soldado. Bebo o meu café e vejo as pessoas passarem na rua.
Esta rua é como uma tela de cinema. Imaginem a Branca-de-Neve do João César Monteiro só som mas ao contrário: a porta do bar das oito pontas azuis é a minha tela onde se sucedem imagens.
Residentes e turistas que passam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita.
Se na Branca-de-Neve tínhamos de imaginar a imagem para que pudéssemos dar sentido ao som, aqui é outra vez ao contrário.
Mais uma vez a nuance, essa intemporal irrupção do real, se intromete na história mil vezes contada.
É apenas um quasi ao contrário.
Tenho as imagens – os turistas que passam à frente da porta.
Não precisamos de imaginar o som. Este é nos dado pelo leitor de cd do bar.
Começa five to one.
Eles têm as armas e nós o número.
Estas imagens-número, de vez em quando, passam no ecrã numa sequência nunca igual. Uma destas imagens-número pára no ecrã, olha para a audiência e decide entrar no bar.
Senta-se a meu lado.
-- Então, eu vi-te ontem.
-- Eu vi-te hoje.
-- Viste quando?
-- Agora!
O dono do bar serve um café ao meu amigo e muda o cd. Põe Led Zeppelin.
Começa com Your time is gonna come.
Quando começa a tocar Babe I’m gonna leave you, viro-me para o meu amigo, que me pede uma mortalha, e digo:
-- Este é o melhor álbum dos Led Zeppelin.
-- Sabes que quando eu estive com ele… não sabes nada dele?
-- Eles… parece que se voltaram a reunir.
-- Antes ou depois?
-- Ah depende… de que falas?
-- Eles lá… ocupávamos o tempo a desenhar, a fazer várias coisas.
-- Dá-me um cigarro. Tenho este pedaço para fazer um peixinho.
O dono do bar ri-se.
Eu acho que o dono do bar compreende o meu amigo. Já nos conhece.
O dono do bar sorri. Eu sorrio. O meu amigo sorri.
Tamborilo Dazed and Confused no tampo do balcão.
Fumamos o peixinho dele e eu faço o meu.
O discurso do meu amigo é incoerente. Ele diz que teve problemas de drogas e esteve algures em Lá. Mas eu sei que o problema dele não serão as drogas. Será mais um problema clínico potenciado pelas drogas. Tal como acho o meu problema. Por isso, é meu amigo e o dono do bar, que conhece todos os seus clientes, sorri. Está contente.
De súbito, levanto-me e venho até à porta. Sento-me na soleira.
Começo a sentir arrepios desconfortáveis. Olho para dentro do bar.
Estou agora dentro da tela do filme.
Olho para dentro e vejo o meu amigo a pagar o seu café.
Olho apenas de relance. Tenho calores frios na soleira da porta.
A imagem que deixou de ser turista para ser residente sai do filme-ecrã e volta a sentar-se ao balcão.
Sente o frio a subir-lhe à cabeça.
Começa a perceber que está à beira de entrar em blackout.
Tem a consciência de ainda não ter pago o café.
Sente a necessidade de pagar já o café.
Pensa: se fechar os olhos apago-me.
Olho em frente e vejo-me no espelho atrás do balcão.
Puxo da carteira e tiro uma nota de vinte euros. Para pagar.
Coloco-a em cima do balcão. Seguro nela e olho o dono. Ele está ocupado.
Pouso a nota debaixo da carteira em cima do tampo do balcão.
A minha mão segura todo o conjunto. Sinto o sangue a ferver de frio subindo braço acima.
O frio que me agonia a cabeça ao som de Heartbreaker começa a dar-me voltas ao estômago.
Tento controlar a minha aparência e, para isso, olho para o espelho.
Baixo a mão ao nível da cintura.
Já há alguns minutos que estou a sentir tonturas e dificuldade em me segurar sentado no banco de pé alto.
Acho que estou a controlar.
Olho para o espelho e estou a controlar.
Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos fecham…
-- Desculpe, deixou cair ao chão a…
Acordo do blackout momentâneo, olho para a terra. Azul. Vejo a nota de vinte euros e controlando o movimento apanho-a do chão.
Agradeço ao novo espectador sentado a beber um fino.
Volto a sentar-me. Faço sinal ao dono e pago o meu café.
Era a minha última nota na carteira.
Escrevo que afinal tudo correu bem, controlei e toda a gente me ajudou.
Levanto-me e venho-me sentar na esplanada.
Sou agora uma imagem sentada mas fora da tela, a audiência não vê a minha pose de estátua. Só as outras imagens, turistas e residentes que vão passando, vêem a estátua.
Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede. Olho para cima, para o céu.
Sou uma estátua que não pode fechar os olhos.
Se a estátua fechar os olhos apaga-se.
Sou uma estátua porque preciso de respirar ar puro.
O filme exterior cheio de frio revoluciona o frio interior dentro do filme dentro da minha estátua de cabeça e agonia o bloco de imagens no meu estômago…
O pior já passou. Olho para o céu. A estátua respira. O filme ouve Since I’ve been loving you.
Afinal não era o primeiro álbum dos Led Zeppelin mas uma colectânea de êxitos.
Estou quase pronto a terminar a minha sessão de cinema.
Já não assistia a um filme tão bom há… já nem me recordo de quando.
Já só falta dar um pú. Depois um arroto. Já está.
-- Desculpe, não sabe se estas bicicletas… não sabe de quem são?
-- Não… quer que pergunte? E aponto.
-- Sim, se faz favor.
Pergunto. Eles dizem que não. O dono do bar ao lado retira ele próprio as bicicletas que lhe impediam de aceder à porta.
Escrevo que hoje assisti a duas boas acções.
Ajudar este senhor a abrir a sua sala de cinema foi a segunda.
A primeira foi cumprimentar o meu amigo que esteve anos em Lá, este amigo com um discurso incoerente. Tentei fazer-lhe sentir que terá sempre um amigo na zona com quem se rir um pouco e fumar um intensificador de sonhos.
Levanto-me da esplanada.
Sinto-me renovado após o apagão. Caminho em direcção a casa.
Compreender é diferente do aceitar.
Escolho passar pelos pescadores.
Vejo o pipoca de azul precisamente no momento em que recolhe mais um peixe.
O seu sorriso indica contentamento.
Ao passar por ele também eu rio.
A vida corre-me feliz. Adoro as irrupções momentâneas do real.
Dou por mim a parafrasear silenciosamente: um dia vendeu um quadro e nunca mais lá voltou, uma ciência rara.
Viro-me para o pipoca de azul e digo-lhe na minha mais louca voz de felicidade:
-- Que haja peixe, que haja peixe!
Ele ri-se sem perceber mas acha graça.
Hoje não preciso de fumar mais.
Estou em paz.
Poderei aquecer o tupperware da caridade no microondas e ouvir o Pithecanthropus erectus do CharlesMinguseCharles Mingus e adormecer feliz.
Amanhã a miséria continua.
Sou o perdedor absoluto.
'
Claudio Mur em «Azul-de-terra»
em
Feist sang «Let it die»
dedicado a Lady Alfa e à sua personalidade invulgar,
e depois, é uma mulher do norte ponto de !
terça-feira, 11 de junho de 2019
Jarboe Kali [repost]
lyrics by Jarboe:
I am she whom the winds fear
I am she who brings the fire
I am she the lightning and thunder
I am this shower of life
I am she: the mouth of flames
Into the light I fall into grace
Into the light I fall into the mouth of flames
sábado, 8 de junho de 2019
Ultimato
Não sei definir senão por vontade de fixar a própria ideia fugidia o motivo pelo qual alguém escreve. Escreve-se geralmente para si mesmo, eu escrevo para me estruturar, para poder fazer o meu caminho com um mínimo de esperança em não me perder no futuro. Mas depois, há uma opção que se faz: ou se continua a escrever para a gaveta ou se partilha com os mais próximos ou, se houver essa oportunidade, com a edição pública em papel. Neste acto de partilhar o que se pretende? Valter Hugo Mãe diz recentemente que os escritores escrevem para serem amados. Outros como a Maria Agustina (segundo a citação feita por Diogo Vaz Pinto no jornal i) escrevem para entrarem em confronto, para discutir uma ideia, incomodar as gentes com a nossa ideia, impô-la talvez. Entre estas duas opiniões há todo um abismo mas o que distingue VHM de Agustina é a ideia de deus [sic]. Ouvi na rádio esta semana dizer uma coisa muito simples, parafraseando a Agustina: a mulher nunca está só, quando não tem um homem, tem deus com ela. E o problema de VHM talvez seja não ter ainda encontrado alguém que lhe faça companhia e não ter um substituto para deus que não seja o ser amado pelos seus leitores. VHM é um solitário, a pessoa VHM tem razões que eu não conheço, eu estou apenas a especular e a tentar arranjar pontos de contacto entre uma pessoa-poeta e eu-leitor, eu que também sou um solitário e que tenho na minha vida diária pouca gente com quem falar além dos triviais futebóis.
Eu não tenho deus mas tento ter livros e música. A música oferece-me cenários para epifanias em que eu me liberto por breves momentos da miséria existencial que é a solidão. Os livros e também a leitura de blogs oferecem-me ideias com as quais eu interagir criando assim as minhas ligações com o mundo. Aprendo muito, a blogosfera está cheia de perspectivas e é melhor saber as notícias do dia nacional pelos blogs do que passar o dia colado à tv. Ficamos também a conhecer às vezes pessoas e o seu pensamento, criam-se afinidades na vida real, sabem-se os bastidores do ódio mútuo entre pares. Os blogs são como um mosaico de uma classe de certo modo culta em que se fantasiam situações, se esfaqueiam os inimigos, se partilha altruísticamente conhecimento, se distribuem beijinhos aos necessitados. Os livros são a ideia fixa e partilhada, o blog é a ideia em constante movimento, mutação e partilha. São dois dos meus passatempos quando não estou a pintar. Gosto de ver evoluir o pensamento de um escritor ou blogger, o modo como ele age ou reage, gosto de perceber se ele é sincero e genuíno ou usa truques baixos, gosto porque me vou instruindo e aprendendo acerca da condição humana, vou arranjando modos de eu próprio me completar e não ter de silenciar a minha voz.
Encontro muitos pontos de contacto e às vezes compro livros.
Partilho em baixo um excerpto de um texto de Diogo Vaz Pinto que me parece um ponto de contacto entre a sua escrita e o meu modo de viver, é mais um dos exemplos em que um esquizofrénico como eu sente que há quem o descreva, que alguém escreveu com as palavras certas a minha vivencia. Por muito que irrite as pessoas, «Ultimato» é um grande livro de poesia em prosa, e não sei mesmo se o próprio DVP não se irritará com este elogio (agradecimento), mas ficou dito.
'
Além, vivo mortificado a doce e lenta, musical gangrena. Dei por mim sem recreio, só já uma silhueta. Magoado com as minhas dúvidas, recortei a minha figura, de costas, em ponto cada vez mais pequeno. Sei o que vais dizer: oiço-te como um rádio que trago, às vezes tiro as pilhas. (Melhor que esmagar o grilo.) Irado, logo vou responder com os horrores todos que puder invocar. De seguida vamos passar uns dias sem pôr uma só frase direita, nem um grão de sentido que nos denuncie, desabafo nem porra nenhuma. Até que comece a passar por nós o movimento das coisas, sem desvio, a sua rotação, a água insistindo, querendo fazer curso. Como se estivéssemos no caminho, siderados, ouvindo bichanar esse vastíssimo mecanismo que parasitamos.
É o que sei de pior, como se ganha balanço dentro das próprias ilusões, e perdendo o pé se vem correndo lá do fundo, para se ultrapassar. Pior, trespassar, o que derrota toda a perspectiva. Os outros parecem restos frios de nós, pelo reflexo tão conotado que nos devolvem. E não pedimos segundas chances, convencidos de que se formos adiante poderemos fazer-nos sair. Como pondo fogo no bosque onde nos cercámos. Um tratamento desesperado para essa praga imensa da nossa criação. E no fim, num gesto último de decência, só queremos ser o anjo mandado lá de cima para se exterminar e à obra monumental dos seus erros raivosos, ressentidos, delirando com quantos dentes lhes armam a boca.
'
página 89-90
«Ultimato»
Diogo Vaz Pinto
edição Maldoror
quinta-feira, 6 de junho de 2019
As prendas do Giuliani
O meu amigo e vizinho poeta,
pensando que eu estava chateado com ele por eu ter um dia destes recusado fumar um charro dele,
veio oferecer-me uma saca cheia de livros.
«Ó Giu, olha a minha estante, ainda não li metade dos livros que tenho, e desses nem metade tenho aqui, não vês que não tenho espaço?»
«Sou eu que ofereço, não podes recusar!»
Escolhi estes nove, tinha-lhe comprado por um euro, há cerca de um mês, um da mesma colecção:
François Mauriac «Os anjos negros».
Estes são os que aceitei desta vez, os outros ficaram para ele vender a alguém:
Raymond Radiguet «O baile do conde de Orgel»
Blaise Cendrars «O ouro»
Panait Istrati «Os cardos do Baragan»
Georges Bernanos «Um crime»
Georges Simenon «A sonsa»
Georges simenon «Bairro negro»
James Hilton «Adeus mr. Chips»
Fortunato Seminara «Vento no olival»
Somerset Maughan «A casuarina»
Da mesma colecção há muito tempo que tinha comprado «O estrangeiro» de Camus
terça-feira, 4 de junho de 2019
sábado, 1 de junho de 2019
Dandy, monk and clown
O texto abaixo faz parte do meu segundo livro (editado apenas em pdf) e é uma reflexão sobre a opinião, pública ou daqueles que comigo se cruzaram até 2002, e que me marcaram ao ponto de eu me estilhaçar e ser internado. Até 2002, havia sido internado por duas vezes e das duas vezes havia uma mulher diferente no meu coração, a primeira havia sido minha namorada uns anos antes e a segunda era uma antiga amiga que eu andava a tentar cortejar. Quero deixar claro que não as culpo de nada do que me aconteceu posteriormente e foi até necessário que «eu caísse»: ao menos ganhei raízes. Agora se eu não as culpo, houve quem as culpasse e na sombra lhes fizesse mal. A mim, insultavam-me, ofendiam a minha auto-determinação, a minha vontade de viver sem ninguém ter nada com isso. Destas duas vezes, os insultos deles surgiam nos cafés, nos comboios, em aulas teóricas. E eu ficava calado, não compreendia o porquê e chegava a casa agoniado e alienado com a estupidez de, por exemplo, quem nunca apreciou oferecer um minete à mulher. O que eu na altura se calhar deveria ter feito era usar os pulsos contra aquela manada de ótarios que vai às putas por um menu de broche e cona (o extra é mais caro) mas seria apenas eu contra a manada. De modo que me vinguei escrevendo o primeiro livro (também apenas editado em pdf) onde ficcionei e confundi ainda mais toda a minha história, disse: se eu sou o mau, o mau vai viver para vos atormentar.
E foi assim que houve, da terceira e quarta vez que fui internado, novas mulheres por quem me interessar, mas se anteriormente eu era jovem, belo e de grande potencial futuro, agora era apenas um gajo sem emprego, a quem tinham caído os dentes e o cabelo e portanto já não era (e hoje também não) um gajo atraente e com sex-appeal. De certo modo ressabiei e larguei a condição de vítima inocente, a opinião pública agora via-me como um palhaço alegre, ria-se de mim e eu ressabiei, disse: vocês vão pagar e comecei a escrever cartas bomba, é obvio que não entreguei nenhuma em papel, lembro-me no entanto que enviei alguns emails e comentários em blogs nos quais se tinha alguma razão logo a perdi devido aos insultos utilizados, isso deu-me moral para começar a discursar pelas ruas sózinho, falando, insultando para o ar, tornei-me bandido, tão criminoso como a opinião pública.
A actualidade é pacífica, continuo um gajo com má imprensa porque sei que as minhas palavras tornam feios os meus pontos de vista, mas estou sossegado. a minha pulsão sexual diminui, a minha vida amorosa está tão estabilizada que é inexistente: o amor faz-me mal, foi isso que aprendi com os meus erros. além disso, tornei-me conservador, já não quero morrer, mas sei que morrerei em solidão. também já aceitei que, para a opinião pública, as dores do outro são mais aflitivas que as minhas, vejo isso todos os dias comparando-me com os meus vizinhos, eu estou bem melhor do que eles, eu queria fazer alguma coisa por eles mas eles próprios estão-se marimbando para as minhas tentativas de ensino, tudo neles gira à volta da doença do dinheiro que não têm, eternas vítimas que não lutam por si, eternos conformistas que se limitam a aceitar as esmolas, a sua mente não vê mais longe do que isto. E depois quando uma mulher me renega porque outro homem precisa mais de companhia que eu, eu digo: vai à tua vida e não me ligues mais, nada mais há para dizer, não vou fazer chantagem emocional para que comigo fiques, talvez não te ame e logo não me humilharei nunca mais por ninguém. São sempre palavras que eu digo definitivas, que eu quero defnitivas, mas são sempre temporárias. Eu cedo sempre e o que disse antes logo perde a validade porque, se o amor me faz mal, eu quero amor, dar e receber em igual medida mas não sou eficaz, não descobri ainda a maneira de continuar a dar liberdade ao amor e impedir que ele me fuja.
'
Da primeira vez, o mundo está contra mim porque tenho um segredo tenebroso escondido na minha mente. Frequentemente, em comboios surreais ou aulas teóricas insólitas ouve-se falar de limpeza com a língua antes do acto, ou que se já se sabe da verdade em determinada altura e só falta saber a realidade após essa altura, isto porque alguém foi descoberto, posto a nu e agora fala com ódio. O mundo é tão odioso nos sua repressão ou supressão de sentimentos ou memorias moralistassexuais indesejadas! Então, não acredito na realidade que está a acontecer, é demasiado incrível tudo o que acontece, sou um céptico à procura de microfones, lutando contra a realidade, impondo a minha presença perante este mundo, este público estranho e acusador. As vozes dizem talvez: «Que nojo, está apaixonado por uma mulher nojenta e bruxa!»
Da segunda vez, o mundo está já em paz comigo, o mundo é hilariante, cómico, isto porque eu já aceitei a realidade de mim próprio e da minha relação com os seres humanos e parece que eles, se não compreendem, pelos menos aceitam a minha realidade. As vozes dizem agora: «oh que fixe, ele está apaixonado por uma mulher grande e bonita!» Então, acredito, sou um crente, na minha realidade e na minha relação com o mundo, sou um andarilho cómico espalhando a minha langonha na web, rindo-me de tudo, tudo é bonito, não compreendendo ou não querendo saber que esta realidade é uma ilusão.
Deixo ao vosso critério escolherem qual das duas situações é a mais aceitável e a mais "real". Pergunto como será a próxima vez? Que sensações e realidades existirão? O que dirá o público e o jornal? Ai minha noxa xenora minha xanta engráxia... o que dirão eles, as pessoas? Talvez me passem a adorar e me tirem uma fotografia anónima, turística ou talvez me chamem de doce vampiro ao tentar sugar a identidade e propor-me como alternativa para a mulher que no momento me atrai visualmente. Não, nada disso se passa, apenas bater no fundo e ter de começar de novo morrendo da cura, o cinismo e a misantropia são o evitar de assuntos sociais e origina reflexões, reacções e revoluções. Ascetismo, eliminar a vontade?, bela merda! Será que devo eliminar o desejo, a ambição de me superar a mim próprio? Afinal de contas, quando morrermos esta vida, vamos ser julgados, como eles dizem, mesmo que nos flagelemos numa cela escura a la santo agostinho e tenhamos visões êxtaticas devido à supressão voluntária da comida ou que mais outras tretas e supostas técnicas os místicos e outros teóricos que se fossem mais espertos fariam apenas mutus libers e não apregoariam ao mundo o quanto bons são e o quantos céus e anjinhos belinhos e deuses ou deus poderão lamber o cu se de facto forem bonzinhos ou contribuírem para a causa de corpo, alma e dinheiro, cegamente, sem discussão, como em Auschwitz ou Nuremberga ou Jenin ou Washington ou Moscovo ou todas as outras ditaduras disfarçadas de democracia ou sociedades ditas de secretas e detentoras, como dizem, de toda a verdade e um só ponto de vista, arrogando-se o direito de dizer que tudo foi provado pelo método científico postulado por Francis Bacon quando às vezes nem sequer o fogão sabem acender.
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Claudio Mur em 'Manual de Sobrevivência'
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