quarta-feira, 12 de junho de 2019

Azul-de-terra

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-- Então, estás aí? Não te vi entrar…
-- Sou invisível!
-- Parece… então ‘tá tudo?
Apertamos a mão e eu peço um café.
O soldado desconhecido toca bateria ao balcão. Bebe um café ouvindo a voz do Jim.
Nunca fui soldado mas hoje sinto-me como um soldado. Bebo o meu café e vejo as pessoas passarem na rua.
Esta rua é como uma tela de cinema. Imaginem a Branca-de-Neve do João César Monteiro só som mas ao contrário: a porta do bar das oito pontas azuis é a minha tela onde se sucedem imagens.
Residentes e turistas que passam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita.
Se na Branca-de-Neve tínhamos de imaginar a imagem para que pudéssemos dar sentido ao som, aqui é outra vez ao contrário.
Mais uma vez a nuance, essa intemporal irrupção do real, se intromete na história mil vezes contada.
É apenas um quasi ao contrário.
Tenho as imagens – os turistas que passam à frente da porta.
Não precisamos de imaginar o som. Este é nos dado pelo leitor de cd do bar.
Começa five to one.
Eles têm as armas e nós o número.
Estas imagens-número, de vez em quando, passam no ecrã numa sequência nunca igual. Uma destas imagens-número pára no ecrã, olha para a audiência e decide entrar no bar.
Senta-se a meu lado.
-- Então, eu vi-te ontem.
-- Eu vi-te hoje.
-- Viste quando?
-- Agora!
O dono do bar serve um café ao meu amigo e muda o cd. Põe Led Zeppelin.
Começa com Your time is gonna come.
Quando começa a tocar Babe I’m gonna leave you, viro-me para o meu amigo, que me pede uma mortalha, e digo:
-- Este é o melhor álbum dos Led Zeppelin.
-- Sabes que quando eu estive com ele… não sabes nada dele?
-- Eles… parece que se voltaram a reunir.
-- Antes ou depois?
-- Ah depende… de que falas?
-- Eles lá… ocupávamos o tempo a desenhar, a fazer várias coisas.
-- Dá-me um cigarro. Tenho este pedaço para fazer um peixinho.
O dono do bar ri-se.
Eu acho que o dono do bar compreende o meu amigo. Já nos conhece.
O dono do bar sorri. Eu sorrio. O meu amigo sorri.
Tamborilo Dazed and Confused no tampo do balcão.
Fumamos o peixinho dele e eu faço o meu.
O discurso do meu amigo é incoerente. Ele diz que teve problemas de drogas e esteve algures em Lá. Mas eu sei que o problema dele não serão as drogas. Será mais um problema clínico potenciado pelas drogas. Tal como acho o meu problema. Por isso, é meu amigo e o dono do bar, que conhece todos os seus clientes, sorri. Está contente.
De súbito, levanto-me e venho até à porta. Sento-me na soleira.
Começo a sentir arrepios desconfortáveis. Olho para dentro do bar.
Estou agora dentro da tela do filme.
Olho para dentro e vejo o meu amigo a pagar o seu café.
Olho apenas de relance. Tenho calores frios na soleira da porta.
A imagem que deixou de ser turista para ser residente sai do filme-ecrã e volta a sentar-se ao balcão.
Sente o frio a subir-lhe à cabeça.
Começa a perceber que está à beira de entrar em blackout.
Tem a consciência de ainda não ter pago o café.
Sente a necessidade de pagar já o café.
Pensa: se fechar os olhos apago-me.
Olho em frente e vejo-me no espelho atrás do balcão.
Puxo da carteira e tiro uma nota de vinte euros. Para pagar.
Coloco-a em cima do balcão. Seguro nela e olho o dono. Ele está ocupado.
Pouso a nota debaixo da carteira em cima do tampo do balcão.
A minha mão segura todo o conjunto. Sinto o sangue a ferver de frio subindo braço acima.
O frio que me agonia a cabeça ao som de Heartbreaker começa a dar-me voltas ao estômago.
Tento controlar a minha aparência e, para isso, olho para o espelho.
Baixo a mão ao nível da cintura.
Já há alguns minutos que estou a sentir tonturas e dificuldade em me segurar sentado no banco de pé alto.
Acho que estou a controlar.
Olho para o espelho e estou a controlar.
Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos fecham…
-- Desculpe, deixou cair ao chão a…
Acordo do blackout momentâneo, olho para a terra. Azul. Vejo a nota de vinte euros e controlando o movimento apanho-a do chão.
Agradeço ao novo espectador sentado a beber um fino.
Volto a sentar-me. Faço sinal ao dono e pago o meu café.
Era a minha última nota na carteira.
Escrevo que afinal tudo correu bem, controlei e toda a gente me ajudou.
Levanto-me e venho-me sentar na esplanada.
Sou agora uma imagem sentada mas fora da tela, a audiência não vê a minha pose de estátua. Só as outras imagens, turistas e residentes que vão passando, vêem a estátua.
Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede. Olho para cima, para o céu.
Sou uma estátua que não pode fechar os olhos.
Se a estátua fechar os olhos apaga-se.
Sou uma estátua porque preciso de respirar ar puro.
O filme exterior cheio de frio revoluciona o frio interior dentro do filme dentro da minha estátua de cabeça e agonia o bloco de imagens no meu estômago…
O pior já passou. Olho para o céu. A estátua respira. O filme ouve Since I’ve been loving you.
Afinal não era o primeiro álbum dos Led Zeppelin mas uma colectânea de êxitos.
Estou quase pronto a terminar a minha sessão de cinema.
Já não assistia a um filme tão bom há… já nem me recordo de quando.
Já só falta dar um pú. Depois um arroto. Já está.
-- Desculpe, não sabe se estas bicicletas… não sabe de quem são?
-- Não… quer que pergunte? E aponto.
-- Sim, se faz favor.
Pergunto. Eles dizem que não. O dono do bar ao lado retira ele próprio as bicicletas que lhe impediam de aceder à porta.
Escrevo que hoje assisti a duas boas acções.
Ajudar este senhor a abrir a sua sala de cinema foi a segunda.
A primeira foi cumprimentar o meu amigo que esteve anos em Lá, este amigo com um discurso incoerente. Tentei fazer-lhe sentir que terá sempre um amigo na zona com quem se rir um pouco e fumar um intensificador de sonhos.
Levanto-me da esplanada.
Sinto-me renovado após o apagão. Caminho em direcção a casa.
Compreender é diferente do aceitar.
Escolho passar pelos pescadores.
Vejo o pipoca de azul precisamente no momento em que recolhe mais um peixe.
O seu sorriso indica contentamento.
Ao passar por ele também eu rio.
A vida corre-me feliz. Adoro as irrupções momentâneas do real.
Dou por mim a parafrasear silenciosamente: um dia vendeu um quadro e nunca mais lá voltou, uma ciência rara.
Viro-me para o pipoca de azul e digo-lhe na minha mais louca voz de felicidade:
-- Que haja peixe, que haja peixe!
Ele ri-se sem perceber mas acha graça.
Hoje não preciso de fumar mais.
Estou em paz.
Poderei aquecer o tupperware da caridade no microondas e ouvir o Pithecanthropus erectus do CharlesMinguseCharles Mingus e adormecer feliz.
Amanhã a miséria continua.
Sou o perdedor absoluto.
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Claudio Mur em «Azul-de-terra»
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